O Segredo da Tumba Secreta
O Segredo da Tumba Secreta
Ana Esther
A Irmã Vladimira havia acabado de vestir seu hábito com o mesmo esmero de sempre e fez suas preces, como de costume, ajoelhada em frente ao seu singelo oratório. Acrescentara dessa vez uma oração desesperada, sentia como se sua própria vida estivesse em questão, como se o seu pequeno mundo estivesse por ser invadido.
Sua minúscula cela era, naturalmente, despojada de qualquer luxo ou símbolo mundano. Havia, no entanto, uma estante recheada de livros antigos que colecionara ao longo dos anos. Nas quatro paredes havia crucifixos de madeira e nos quatro cantos do quarto, réstias de alho que a Irmã Vladimira renovava mensalmente. Sua cela era a única que possuía um espelho de tamanho médio, o qual se encontrava pendurado face à janela.
Estava na hora, não podia chegar atrasada à reunião com a Madre Superiora e as outras irmãs responsáveis pela administração do Convento. Era a sua última chance de impedir a aprovação das reformas na Ala Sul do Convento de Nossa Senhora, na Transilvânia. Sabia que não teria muita força para fazer valer sua opinião pois as outras irmãs pareciam até entusiasmadas antevendo, uma vez acabadas as obras da reforma, a abertura da Ala Sul para a hospedagem de turistas. Insistiam ser essa uma maneira digna de obterem uma renda extra para a manutenção do Convento. As irmãs, simplesmente, não entendiam a estranha resistência da Irmã Vladimira com relação ao projeto.
Ao final da reunião, Irmã Vladimira retornou a sua cela em estado de extrema preocupação. Nada mais poderia fazer contra a reforma da Ala Sul. O projeto fora aprovado por todas as irmãs, com exceção de seu próprio voto. As obras teriam início na semana seguinte com tempo de duração previsto de três meses, após os quais, as próprias irmãs se dedicariam à decoração dos quartos para receber bem aos hóspedes. Sozinha em sua cela, Irmã Vladimira fixou seus olhos nos quatro crucifixos e certificou-se de que as réstias de alho estavam em seus devidos lugares. Medo. Seu coração apertado confirmava a necessidade de tomar uma atitude para a sua proteção. Teria que iniciar, imediatamente, algumas obras com suas próprias mãos. Não podia perder um segundo sequer, teria que acabar sua ‘obra particular’ antes do início da reforma oficial. Nesta mesma noite poria seu plano emergencial em prática, redobraria o cuidado de todas as noites, até então, para não ser vista e, com a ajuda de Nossa Senhora, tudo haveria de se resolver para seu bem e segurança.
À noite, depois das rezas coletivas, todas as irmãs se recolheram as suas celas, inclusive a Irmã Vladimira. As luzes do Convento se apagaram, como sempre, às 22:00 horas, até mesmo a luz da cela da Irmã Vladimira. Esta, no entanto, não se preparara para dormir, ao contrário, continuava bem ativa verificando se carregava consigo tudo o que necessitava para levar seu plano avante. Certa de que estava tudo em ordem, pegou sua maletinha e abriu cuidadosamente a porta de sua cela e a trancou. Já estava muito acostumada a fazê-lo sem causar barulho algum.
Seguiu, pé ante pé, pelos longos corredores do convento até chegar a Ala Sul. Conhecia tão bem o caminho que, há vários anos, não precisava mais de luz para se orientar até chegar à passagem secreta. Ela era a única dona do segredo e assim teria de ser até o último de seus dias. Irmã Vladimira havia se inteirado sobre os detalhes da obra e percebera que a porta para o túnel principal de acesso ao Portal das Almas Proibidas seria descoberta durante as obras de restauração. Abriu e fechou em seguida a passagem, então pôde, finalmente, acender sua lanterna e caminhou tranqüilamente pelo túnel secreto até atingir o Portal das Almas Proibidas. Esse portal não poderia, por nada neste mundo, ser descoberto. Era seu segredo de morte.
As antigas e pesadas portas de madeira do portal abriam-se facilmente após a introdução da Chave das Almas que a Irmã Vladimira possuía. Havia centenas de buracos da fechadura espalhados pelas duas abas da porta para confundir algum incauto. Novamente, a Irmã Vladimira detinha o conhecimento de qual era o buraco exato da fechadura. Uma vez aberta a porta e transposto o portal, Irmã Vladimira retirava o seu hábito de freira ficando apenas com suas roupas de baixo. Já havia um cabide especial onde ela pendurava o hábito e o colocava em um prego na parede. Semi-vestida como ficara, a freira seguia pelas trilhas subterrâneas de areia batida envoltas por um ar úmido com odor fétido que, de início, fazia arder as narinas. Irmã Vladimira estava muito bem acostumada com aquela atmosfera repulsiva e amedrontadora do local pois percorria esse trajeto todas as noites desde que entrara para o convento. Aliás, ela não entrara para o Convento de Nossa Senhora na Transilvânia por coincidência, havia planejado tudo detalhadamente afim de ser designada para aquele convento especifico. Agora, lá se encontrava ela realizando seu ritual noturno no 46o andar do Salão das Almas Proibidas.
Quando a Irmã Vladimira, finalmente, retornou ao Portal, vestiu seu hábito e trancou a imponente porta. Voltou pelo túnel até a passagem secreta e a transpôs. Era esta passagem que ela teria de esconder dos trabalhadores quando eles atingissem aquele ponto da Ala Sul. Irmã Vladimira aproveitou para tirar as medidas necessárias e pensar no material que sua pequena obra requereria. Precisaria umas três noites para acabar o trabalho. Se tudo saísse como ela planejara, teria tempo suficiente antes do início da reforma.
De volta em sua cela, Irmã Vladimira fez a lista do material e deitou-se exausta, seu dia havia sido de intensa apreensão. Seus sonhos foram cortados pela angústia de ser descoberta e ter seu segredo horrendo revelado. Isso significaria o seu fim e quiçá a liberação da, até então dormente, maldição. Era vital que ela tivesse sucesso em sua missão de manter incógnita aquela passagem secreta.
Pela manhã, Irmã Vladimira participou de todas as suas atividades normais junto as outras freiras. Pediu permissão especial à Madre Superiora para que, após a missa na catedral, ela pudesse fazer uma visita ao cemitério. A Madre Superiora, mesmo estranhando um pouco o pedido –as visitas da Irmã Vladimira ao cemitério sempre ocorriam nas datas de óbito de seus familiares e amigos- aquiesceu. Deixando a catedral, Irmã Vladimira rumou ao cemitério, que ladeava o prédio da igreja, para que as suas colegas a vissem no local. Contudo, após alguns minutos ela saiu de lá, consciente do risco que corria, e dirigiu-se ao centro do vilarejo. Entrou no banheiro público da estação de trem, trocou suas roupas de freira e vestiu roupas discretas que havia adquirido para momentos como esse em que ela precisasse de disfarce. Saiu rapidamente da estação e foi para o centro comercial local, mais especificamente, a loja de material de construção, portando consigo a lista que preparara na véspera. Trouxe o pacote consigo e foi diretamente ao cemitério onde o escondeu dentro do mausoléu de sua própria família. De lá tornou a entrar na igreja que, a essa hora, ficava praticamente vazia. Em um recanto escuro recolocou seu hábito de freira e apressou-se em direção ao convento.
Nos dias que se seguiram a Irmã Vladimira esgueirava-se pela Ala Sul e sem que ninguém suspeitasse, realizava sua pequena obra para esconder a passagem secreta para o Portal das Almas Proibidas. Vieram os dias conturbados da reforma. Aos poucos os trabalhadores foram adentrando a Ala Sul e a modificando. Mesmo em meio à confusão dos materiais de construção espalhados pelo corredor, Irmã Vladimira não interrompia suas visitas noturnas ao Salão das Almas Proibidas. À medida em que a conclusão dos trabalhos se aproximava e nada de anormal era detectado, ela recuperava sua tranqüilidade e confiança, seu plano funcionara.
As obras chegaram ao fim, os trabalhadores se retiraram do convento. Todas as irmãs se dedicaram à decoração dos quartos e à divulgação da abertura da Ala Sul do convento como pensão para moças. A Madre Superiora percebeu a mudança no comportamento da Irmã Vladimira pois ela demonstrava, além de interesse, alegria em colaborar com as outras irmãs, um grande contraste com sua resistência inicial.
A inauguração da pensão foi marcada pela chegada de um grupo de moças que veio à região para participar do Congresso de Folclore da Transilvânia de 2001. Foi um ótimo teste para a Irmã Vladimira que pôde, de maneira definitiva, certificar-se que conseguiria continuar sua rotina noturna sem que a descobrissem –a maldição permaneceria contida. A presença das hóspedes acrescentou mais vida e entusiasmo às irmãs e as obras de caridade se revigoraram. Todo o medo da Irmã Vladimira se dissipara.
O Natal chegou e a pensão do convento estava lotada com as modelos que participavam de um desfile sobre a moda através da história, uma promoção da Secretaria de Cultura. A atração especial que reunia os devotos era a famosa Missa do Galo, à meia-noite, que aconteceria na Catedral, um momento belíssimo com a participação do Coral Folclórico local. Tanto as hóspedes quanto as irmãs, compareceriam todas à missa. A Irmã Vladimira ficara encarregada de acompanhar as moças hospedadas na Ala Sul e informá-las dos aspectos culturais e detalhes históricos sobre a cidadezinha.
A missa fora emocionante, tocara o coração de todos os atendentes, as modelos, porém, notaram uma certa insistência da Irmã Vladimira em apurá-las para retornarem ao convento. Ela tinha pressa pois não poderia falhar, uma noite sequer, sua visita ao Salão das Almas Proibidas. Sua pressa chamou a atenção das modelos mas imaginaram ser excesso de zelo da freira. Ao retornarem ao convento, freiras e hóspedes instalaram-se em seus quartos.
Sentindo o silêncio total no corredor, Irmã Vladimira dispôs-se a arriscar-se e caminhar até a passagem secreta. Só que não sabia que estava sendo vigiada, pela primeira vez. Rovena, uma das modelos, havia ido à cozinha buscar uma jarra d’água para levar para seu quarto e, ao retornar, viu a Irmã Vladimira saindo de sua cela parecendo assustada. Rovena teve curiosidade de saber o que a freira faria pois ela vinha agindo de maneira suspeita desde a missa. Decidiu seguí-la para saber o motivo de tanta pressa.
Como a Irmã Vladimira não havia acendido a lanterna, caminhar no corredor escuro além de difícil, era de arrepiar os cabelos. Nem assim Rovena desistiu e pôde, então, ver a freira se esgueirando através de um alçapão no final do corredor. Rovena simplesmente não conseguiu encontrar a abertura do alçapão, por mais que procurasse. Resolveu ficar esperando até que a freira retornasse.
Após quase uma hora de espera, Rovena desistiu. Melhor seria retornar na noite seguinte pois, provavelmente, a Irmã Vladimira deveria repetir o feito. Rovena recolheu-se ao seu quarto, mas não conseguiu pegar no sono. Foi possível escutar um discreto ruído no corredor, era a Irmã Vladimira voltando a sua cela meia hora depois. Rovena mal podia esperar o outro dia para investigar as ações da freira. Havia algo muito temível por trás de todo o segredo da Irmã Vladimira para que ela se arriscasse tanto. A modelo estava determinada a descobrir o mistério.
Durante o dia, Rovena teve poucas oportunidades para observar a Irmã Vladimira pois ficara muito envolvida com as festividades natalinas no vilarejo e os ensaios para o desfile. A freira, no entanto, não demonstrou nenhum embaraço ou medo. Quando chegou a noite e a hora de se recolherem aos quartos, Rovena ficou de prontidão torcendo para que a Irmã Vladimira tornasse a descer pelo alçapão. Não demorou muito para a moça confirmar sua expectativa, um ruído quase imperceptível denunciou a aproximação da freira. Dessa vez Rovena não perderia tempo, precisava ver exatamente onde ficava o alçapão.
Tomou todo o cuidado para que a freira não a escutasse. Irmã Vladimira estava tão acostumada a não ser percebida que seguiu despreocupada até o alçapão secreto. Rovena posicionou-se de maneira a enxergar a freira apertando um tijolo na janela que acionou uma alavanca destrancando, assim, o alçapão por onde ela, mais uma vez, sumiu. Rovena esperou alguns instantes e foi diretamente até o tijolo mágico. Deslumbrou-se ao ver o alçapão destrancado permitindo que ela também sumisse da Ala Sul. A escuridão no túnel a cegara totalmente por alguns segundos, até que foi possível vislumbrar mais adiante a luminosidade da lanterna da freira. Sempre cuidando para não ser percebida Rovena aligeirou-se para aproveitar a luz e não se perder. De repente, a luz tornou-se mais forte e Rovena notou que a freira tentava abrir uma porta cheia de fechaduras. Quando a freira passou pelo Portal e o fechou atrás de si, a moça desesperou-se, sua espinha congelou, escuridão absoluta. Vencendo o temor e tateando a parede ela chegou até o Portal onde encontrou a maçaneta de metal na porta. Devido à displicência da Irmã Vladimira, Rovena, encontrou a porta somente encostada e pôde abri-la com facilidade. O cheiro fétido invadiu-lhe as narinas e Rovena quase gritou de puro asco, mas conteve-se. Já chegara até ali, não desistiria. Distinguiu, ao longe, a lanterna da freira e foi em sua direção. O cheiro era insuportável. Quando a luz da Irmã Vladimira parou, foi possível a Rovena situar-se e a visão que teve a fez estremecer: era um cemitério subterrâneo, uma tumba ao lado da outra, niveladas em sucessivos degraus. Rovena aproximou-se sem ser percebida e, no 46o degrau, o nome na tumba em que a freira se ajoelhara lia-se ‘Vlad Dracul, o Empalador’.
Que visão demoníaca, uma freira, seminua, em roupas de baixo, reverenciando a tumba do verdadeiro Drácula... Rovena não resistiu desta vez e gritou:
- Sua freira pervertida, então é isso que a traz aqui, sua necrófila!
O susto que se apossou da Irmã Vladimira foi indescritível. Jamais desconfiara que alguém viesse a segui-la até ali. Um tanto quanto estonteada, nem balbuciar podia, ficara totalmente muda encarando Rovena que a desafiava.
- Descobri o seu segredo e vou contar tudo à Madre Superiora. Aposto como ninguém sabe da existência deste cemitério, não é?
- Não! Por favor, não. Rovena, não podes revelar esse segredo a ninguém senão a maldição de Vlad Dracul será liberada e ninguém, nem mesmo eu, sabe das catastróficas conseqüências.
Rovena riu do desespero da Irmã Vladimira e renovou sua intenção de delatá-la. Irmã Vladimira implorou que a escutasse antes de fazer o que dizia. A curiosidade por inteirar-se daquele mistério tomou conta de Rovena que instigou a freira a lhe contar os detalhes de sua estória. A Irmã Vladimira respirou fundo reunindo forças para, pela primeira vez, dividir com alguém a terrível carga.
- Venho até aqui, ao Salão das Almas Proibidas, todas as noites desde o dia em que foi aberto o testamento de meu pai que deixara uma carta para mim a qual mais ninguém poderia ler. Na carta, meu pai, me revelava o segredo de sua família: somos descendentes diretos do temível Vlad Dracul. Assim como eu faço agora, meu pai passou toda a sua vida visitando-o aqui neste túmulo. Um sacrifício necessário para impedir que a maldição de Vlad Dracul se concretizasse. Tocou a mim seguir o ritual de meu pai e, é por isso que eu me tornei freira para poder dedicar minha vida a esta tarefa tão árdua e penosa. Sempre retiro meu hábito de freira antes de aqui chegar para não cometer pecado ao rezar pela alma de Vlad Dracul, meu ancestral que não obteve permissão para ser enterrado em solo sagrado. Aliás, todas as outras tumbas deste cemitério secreto pertencem a pessoas que desafiaram a Santa Igreja com pecados imperdoáveis.
- Muito bem, Irmã Vladimira, uma estória comovente, eu até acredito na senhora. Mas por que não revelá-la a ninguém? Que maldição é essa?
- Oh, a maldição. Se eu deixar de vir aqui rezar pela alma pecadora de Vlad Dracul, ou se este lugar for violado por pessoas não escolhidas, a maldição de Vlad Dracul o libertará das trevas e ele retornará ao mundo dos vivos para executar sua vingança macabra.
Ao ouvir as palavras sentidas da Irmã Vladimira, Rovena quase perdeu as forças. Ela própria havia violado o Salão das Almas Proibidas sem haver sido convidada. Correria perigo? Seria verdadeira essa estória da maldição que a freira lhe contara? Tremendo, Rovena sentiu um odor pútrido intenso vindo da tumba do degrau 46 –a de Vlad Dracul. Juntamente com o odor, um vapor espesso escapava por entre as frestas da tumba. Rovena paralisou. A Irmã Vladimira arregalou os olhos incrédula.
O vapor maligno concentrou-se em torno da bela cabeça de Rovena sufocando-a, lentamente, até que a moça caísse morta no chão úmido e gelado. Um sinal indubitável da veracidade da maldição de Vlad Dracul. Estarrecida, a Irmã Vladimira teve a confirmação de que seu destino estava selado. Retornou abalada até o portal, vestiu seu hábito de freira, trancou o portal, caminhou cabisbaixa pelo túnel secreto sem mesmo acender sua lanterna, subiu de volta ao corredor da Ala Sul e trancou o alçapão atrás de si. Certificando-se de que realmente ninguém a via, retornou a sua cela solitária. Olhou com grande angústia as réstias de alho nos quatro cantos da peça, deitou-se na cama fria e conformou-se, amanhã seria outro dia.
*Este conto é parte integrante do meu livro Terapia Ocupacional - Contos (2004): Conto 20, págs. 100-109.