dizem que Deus reservou a noite para as trevas
Dizem que Deus reservou a noite para as trevas. Deviam dizer que Deus reservou a noite para ela.
O céu escuro, pontilhado de prata das estrelas, iluminava sua face virada na direção do céu. O mar cantava o som das sereias e ela ainda sentia sua pulsação acelerada. A mão que segurava a faca ainda não relaxara.
O vento soprou espalhando seu cabelo sobre o sorriso demoníaco que pincelava seus lábios, suas veias pulsavam sangue, morte. Resolveu caminhar na areia para relembrar cada ínfimo pedacinho da noite. Sua mente ainda repetia numa sucessão doentia os acontecimentos desde o pôr-do-sol daquele dia.
Fechou os olhos e permitiu suas narinas a se encherem de maresia. Visualizou os olhos dele nos seus. Lembrou-se de como o seduziu, de como o trouxe até o píer, de como o beijou, o lambeu, se deliciou com seu corpo. Reviveu o calor da pele dele na dela. A cada peça de roupa tirada, uma nova emoção aflorava de suas células.
Ele não fazia idéia, mas ela acordara com sede de sangue. Uma sede insaciável. E pra ele, não havia escapatória.
Quando se encontraram no bar, seus olhares se cruzaram e ele imaginou que havia achado a presa da noite. Mal cogitou a hipótese da sai curta, a meia arrastão e o enorme decote não serem simplesmente inocência, e sim, inteligência. Inteligência de uma predadora em caça. Em menos de meia hora já o conduzia para abeira do mar. “No píer é calmo, ninguém vai nos atrapalhar”. Ele caíra como um gatinho na armadilha da cadela de lábios vermelhos.
Ela fez questão de deixar a impressão de que era ele quem comandava, permitiu que ele a tratasse como uma vagabunda qualquer. Que a segurasse pelos cabelos e a fizesse chupá-lo a força, contra sua vontade. Ela entrou no ritmo, se fazendo de santa, deliciando-se ao pensar que ele não sairia dessa impune. Depois que ele gozou em sua boca, fez questão de cuspir no mar qualquer vestígio do gosto dele. Estava na hora de brincar, a hora da diversão.
Pegou-o pela mão e o levou até o lugar onde guardara sua faca afiada, seu instrumento favorito de prazer. Verificou se a essência de prazer estava ao alcance de suas mãos, e com as mesmas, tirou suas roupas e as dele. Nus, eles se esfregavam no chão de madeira apodrecida da ponte. Estava escuro o suficiente pra que ele não visse o lampejo assassino nos olhos da menina.
Ela sentia o desejo dele reascendendo e tirou uma camisinha do bolso da saia dobrada ao canto. Aquele desgraçado não iria deixar nada que lembrasse ele em seu corpo, apenas em sua mente. Cavalgou com entusiasmo no cara desconhecido, usou-o como quem usa uma boneca inflável, arranhava suas costas com a intenção de machucar, mordia seu pescoço com o instinto de uma fera pronta pra se deliciar da carne de sua presa.
Quando ele começou a pulsar ritmicamente dentro dela, puxou o vidrinho de essência de prazer e a virou inteira goela a baixo do rapaz. Quase que instantaneamente os movimentos dele aceleraram, e proporcionaram tal prazer à menina em cima dele, que quase se igualou ao que ela sentiria depois que tudo aquilo acabasse. E junto com seu tesão esvaíram todas as forças do garoto. Ele tombou pra trás e suspirou molemente. Chegara a hora da sua parte favorita.
Levantou-se e o observou de cima. Comparou-o com um bicho ingênuo, idiota qualquer, que não conseguia olhar além do seu próprio umbigo. O forte ego daquele rapaz o mataria agora. Voltou a sua posição anterior, com as pernas abertas sobre o ventre masculino, divertiu-se ao lembrar que mesmo que quisesse ele não seria capaz de correr, gritar ou reagir. Estava imóvel, entorpecido com o coquetel de drogas que ela o fizera tomar. Beijou-lhe a boca novamente, mesmo que ele não realizasse qualquer movimento de volta. Assustou-o com seus sussurros maliciosos, viu um lampejo de medo nos olhos entorpecidos do rapaz. Debruçou-se sobre seus tórax e mediu-lhe o pescoço. A faca sentiu a espessura da pele, ela não conseguiu conter o sorriso.
Delimitou a área a ser cortada. “sem perfurações demais, apenas sangue, muito sangue” disse a si mesma em voz alta. Os olhos dele esbugalharam de pavor, pois apesar de não estar muito consciente, o rapaz ainda estava acordado, e atento. Era uma presa imobilizada pelo veneno do seu predador, não havia modo de evitar aquilo. Antes de segurar a faca diante dos olhos dele e preparar-se para o golpe fatal, falou-lhe com olhos de menina moça, inocente “a culpa não é sua, é do mundo”. Sem dó, piedade ou remorso, recortou-lhe a garganta com precisão cirúrgica. Observou o sangue escorrer pelo seu pescoço até a madeira mofada em baixo de ambos. A luz que fugia dos seus olhos verdes invadia-a de maneira sufocante, e penetrava-a de maneira mais excitante do que qualquer homem pudesse ser capaz de fazer algum dia. Ao sentir sua pele quente de encontro a uma pele que esfriava a cada segundo, sendo invadida de morte, morte que ela causara, todas as suas células vibravam de prazer. Aquele aglomerado de carne embaixo de suas pernas, que um dia fora chamado de homem, agora perdia a última centelha de luz. Fora-se uma alma, um corpo, um espírito. O que sobrou ali não passava de carne. Seu pulso acelerou ao perceber que o dele acabara. Deitou a cabeça sobre seu peito, que não fazia mais o vai e vem ritmado da respiração, e ouviu o mar ecoando naquele tórax vazio. Gozou de satisfação. Estava no céu, no seu paraíso particular.
Ainda nua, livrou-se do corpo enrolando-o em pesadas correntes de cobre e jogando-o no mar. Suspeitava se algum dia achariam-no, mas não se importou muito com isso, já matara outras vezes, em alguns casos até acharam vestígios dos seus crimes, mas nunca suspeitaram dela. Não dela. Vestiu-se e agarrou a faca firmemente entre os dedos. Sentiu que ela ainda estava quente, ainda pingava sangue, lambeu pra sentir o gosto enferrujado e sorriu ao engolir aquilo com prazer. Ao encaminhar-se para a beira do mar, descendo do píer, lembrou-se da última vez que passara ali com sua presa da noite. Ao sentir a areia pinicando seus pés descalços, olhou novamente para o local que usara de matadouro. A lua iluminou suas feições bem no momento em que mais parecia um anjo do mal do que uma menina. O anjo que subira do inferno pra realizar todos seus sonhos terrenos. Não havia nada que satisfizesse mais o demônio do que o prazer na maldade, e isso, ela tinha de sobra. Percorreu toda orla da praia, e quando o sol despontava à leste refez o caminho para casa. A noite havia acabado, era hora de Deus iluminar o caminho.