O GATO QUE RI
Esse não é o gato de Alice, personagem do escritor Lewis Carroll, mas, também esse lugar não se parece nem um pouco com o país das maravilhas, não há livros espalhados pelos cômodos. Nem mesmo um livro infantil para ser folheado pelos moradores pode ser encontrado na casa. Mas, e as crianças e as alegrias da infância? Morreram!
Brígida mudou para a casa há mais ou menos 15 dias e já presenciou fatos constrangedores, mas, como não via perspectivas para a sua vida, depois da discussão com o seu pai foi ficando por ali. Ele a colocou, literalmente na rua, ela tinha que se contentar e passar sem ser notada, ou quase..., naquele lugar de horrores.
Não tinha escolhido ser homossexual! Desde muito pequeno lutou com aquele sentimento constrangedor, evitou ficar perto dos seus primos por medo de ser descoberto, ou, que notassem algo diferente em suas maneiras e atitudes.
Por inúmeras vezes pensou, repensou..., como tinha surgido o problema, talvez no momento da sua concepção. Será que algo grave ou traumatizante aconteceu durante a gravidez para a sua mãe.
Mas! Conjecturas, não podem explicar todo o sofrimento que o acompanha.
A casa fede! O seu quarto como todo o resto da casa cheira a secreções; humanas e também dos gatos e cachorros. O odor entra pelas narinas parecendo grudar em todas as células do seu corpo. Água, ali, tem o mesmo valor do ouro.
Rosita, um homem alto, gorducho, com a pele do rosto repleta de marcas e cicatrizes anda de um cômodo a outro, travestido de mulher! Abusa das cores e dos perfumes baratos. Suas unhas rubras e postiças revelam a sua falta de higiene! Na cabeça um turbante alaranjado, com flores azuis esconde a sua calvície.
Pelas fendas das paredes. Rosita pode saber tudo o que acontece em cada cômodo da casa. Privacidade?! Não existe para nenhum dos moradores.
O lugar e a dona causam arrepios. Pela casa mais de uma dezena de olhos espiam a todos. Brígida sente sempre um mal estar, e, um pavor constante ao ser fitada por um par daqueles olhos.
O seu primeiro cliente, um senhor idoso, com clara manifestação de Mal de Parkinson, sentou na sua cama e desfiou o rosário da sua vida.
Mostrou-lhe as mãos tremulas, chorou ao falar da dificuldade de caminhar, da dificuldade de se equilibrar e de engolir e, que esses sintomas estão ocorrendo progressivos no decorrer de anos. Contou que vive solitário, e, mesmo tendo um dinheiro razoável, não consegue alguém para lhe fazer companhia. Contou que não é homosexual, portanto, não está a fim de um relacionamento sexual, apenas quer a sua amizade e desabafar os seus infortúnios..
Brigida ouve suas lamurias por mais de duas horas. Sempre fora paciente com todos, principalmente, com os seus pais. Sabe das suas dificuldades para compreender a sua sexualidade.
O homem foi generoso, lhe deixou um dinheiro sobre o travesseiro, com uma piscadela e falou alto:
_Vou acertar com Rosita este nosso encontro.
E assim o fez! E deixou um bom dinheiro nas mãos do dono do prostíbulo, para que Brígida não fosse incomodada por ninguém. Comprou dessa maneira o sossego do rapaz.
Seu benfeitor nas primeiras semanas aparece sem avisar. Brígida o ouve, ouve e ouve.
Rosita não suporta mais a lenga- lenga do velhote, enfim, quer de toda a maneira ver Brígida com outros clientes. Afinal, como profissional do sexo a sua obrigação é de realizar as vontades de quem procura na sua casa a oportunidade de extravasar desejos e fantasias.
Naquela noite seu benfeitor não veio. Rosita veio com sua conversa fiada. Nessa profissão temos que visar o prazer, não se pode ver o sexo ligado ao amor. Aqui as pessoas se importam com elas mesmas, com a sua satisfação pessoal
Brígida descobriu por Natasha, um travesti sabe tudo, e, também o mais antigo morador da casa, que Rosita antes de cair na vida tinha estudado e formado em Letras. A falta de livros na estante foi devido loucura de um cafetão. O tal proibiu a leitura dizendo fazer mal as meninas, pois idéias estranhas de liberdade as influenciavam. Um dia os levou ao quintal e ateou fogo. Rosita no desespero sofreu um ataque cardíaco.
E a lenga-lenga de Rosita; continuou. Você sabe a profissão é antiga, pois os historiadores contam de uma prostituta chamada Shamhata, e da sua relevância em um papel importante na lenda suméria de Gilgamesh, a mais antiga narrativa épica do planeta (2500 a.C.).
_A verdade é que você não tem escolha. Hoje vai ficar na sala aguardando a clientela.
Do seu quarto podia olhar o jardim publico e seus canteiros bem cuidados. No centro do jardim, uma imponente estátua de mármore de carrara, agora acinzentada, pela poeira do carvão da queimada da cana parece lhe encarar.
Uma jovem grega com cabelos encaracolados, as mãos no peito segurando um ramo de violetas. Aos seus pés um anjo com uma das pernas levantadas agarrava um golfinho. Quem será que a esculpiu? Quem pode ser a jovem? E assim, as suas amarguras e medos se tornam menos doloridas ao olhar no rosto sereno da mulher e do seu anjo.
Neste estado contemplativo percebe a mulher no interior da estátua. Introspectiva, mas ao mesmo tempo de bem com a vida. Seus olhos escancarados no belo rosto transmitem doçura, mas, deixa passar uma desconfiança misturada com medo, e, um que, de uma paixão avassaladora.
É noite, e a bela mulher desce pé ante pé a escada do sobrado lilás, trás um embrulho nos braços envolto em um lenço alaranjado, e, uma bolsa pendurada no ombro. Ela vai até a esquina e entra em um carro parado em frente da farmácia. O carro desaparece na noite escura.
De repente, o carro está acidentado e o corpo da mulher retorcido, jaz por sobre o asfalto, tombado por cima um trapo de cor laranja. O sangue escorre.
_Acorde! Levanta! Sua piranha!
_Rosita! Pare! Ela esta ardendo em febre precisa de um médico.
_Essa vagabunda desde que pôs os pés aqui nunca trabalhou. Agora deu para ficar doente. Não a quero mais aqui!
_Vá chamar o meu motorista. Ela precisa de um médico!
_Aqui, não vou permitir médico. Eles vêm com aquela falação de exames preventivos, preservativos, doenças sexualmente transmissíveis..., deixam as meninas assustadas, durante dias elas perdem a excitação, e assim, o tesão esfria como pé de defunto!
Alguns dias se passam. A infecção abrandou. O corpo começa a dar mostra da cura. Brígida acorda, e não reconhece o quarto. Tudo muito limpo e organizado. Um aroma de violetas está suspenso no ar. A luz do sol inunda o ambiente, a luminosidade ao mesmo tempo em que irrita os seus olhos, lhe dá vontade de levantar e gritar de alegria.
Sentado ao seu lado o senhor do Parkinson, lhe dá as boas vindas, e explica o motivo dela se encontrar ali na sua casa, no quarto que foi da sua querida esposa.
A empregada aparece com uma sopa, Brígida come sem muitas conversas. Esta faminta.
Depois de tomar a sopa o seu benfeitor a deixa sozinha para que possa descansar. A sopa quente lhe dá um calor aconchegante. Nunca em toda a sua vida percebeu o mundo ao seu redor como agora. Sente a vida com tanta intensidade e alegria, como nunca.
Sonha com a mulher do sobrado lilás. Ela está voltando. Desce do carro. Anda até a casa, entra, sobe pela escada, abre a porta do quarto e joga o embrulho aos pés de Brígida. Um pedaço de um corpo humano cai sobre o seu colo.
O jovem salta da cama. Anda até a janela sufocado pelo pesadelo. Respira! Respira ofegante! Anda pelo quarto e para na frente da estante para ler os títulos dos livros. Assim, percebe a foto do seu Benfeitor sorrindo ao lado da mulher e do filho sendo ninado no colo envolto por uma mantilha laranja. Brígida, então descobre na mulher a figura esculpida na estátua, a mulher dos seus sonhos!