Sonho

Sonho

Já passava da meia-noite quando Eduardo foi se deitar. Tinha sido um dia daqueles e a cabeça, mais do que o corpo, pesava e doía. Fazia tempo que o trabalho não lhe era tão cansativo e ansiava hoje, muito alem dos outros dias por uma chance, uma oportunidade que lhe trouxesse melhores ganhos ou, ao menos reconhecimento profissional.

Tomou banho, um banho demorado e quente e optou por não se barbear. Queria todo o tempo do mundo ali, debaixo daquela água quente para relaxar. Saiu do chuveiro algum tempo depois, com uma leve sensação de conforto, enxugou-se e ainda nu, foi até o quarto e na cômoda, e apanhou um analgésico. Ingeriu o comprimido com um gole de uísque que havia trazido consigo quando entrara em casa. Tinha apanhado a garrafa no pequeno bar da sala do apartamento e levado ao quarto, antes de entrar no chuveiro. Sabia, ao chegar em casa, que uma boa dose de uísque lhe faria bem.

Depois de ter apanhado a toalha e se enrolado nela, deitou-se e ligou a TV. O noticiário da madrugada dava as manchetes do dia e Eduardo começou a imaginar se iria trabalhar no dia seguinte. Pensou em si mesmo e no trabalho e a cabeça deu uma pontada. Não estava conseguindo relaxar. A mão esquerda automaticamente apanhou o controle remoto no criado mudo e os dedos ágeis começaram a procurar algo mais interessante. Uma chamada lhe chamou a atenção em um dos canais e pela programação anunciada, Eduardo se deu conta que era a véspera de sua folga semanal e não teria que trabalhar. Com uma repentina sensação de alivio e contentamento, começou a percorrer novamente os canais. Já podia aumentar um pouco o volume já que a dor estava colaborando e cedia aos poucos, dando ligeira trégua às suas terminações nervosas. Pensou em assistir algo pra se divertir. Gostava muito quando tinha a oportunidade de assistir àqueles filmes de terror antigos. Principalmente dos filmes de Bella Lugosi e Alfred Hitchcock. Tinha sorte de ter um canal como esse, especializado nessa programação, na TV a cabo. Varava noites assistindo maratonas de filmes antigos, principalmente os que tinham a ver com vampiros. As noites em claro vendo filmes ou lendo sobre o assunto já tinham lhe rendido boas cochiladas em frente ao monitor do computador e quase fora demitido numa das vezes. Estava assistindo a esse canal e às chamadas da programação quando o anúncio de um dos filmes da programação lhe chamou a atenção. O canal iria exibir um dos mais conceituados filmes de terror de todos os tempos e o que ele mais gostava. Bram Stoker tinha escrito sobre aquele vampiro tão famoso e ele já tinha visto a adaptação para o cinema mais de uma dezena de vezes. Era o programa perfeito para a noite perfeita. Percorreu mais uma vez os canais, displicente, e parou novamente no canal que havia anunciado a exibição. Pouco depois, Eduardo, assistia ao filme que acabava de começar. As primeiras cenas o fizeram lembrar-se, inclusive, de certa ocasião na casa de um amigo. Jantaram, beberam e farrearam até altas horas. No final, um dos amigos em comum com o dono da casa sugeriu que fizessem um ritual. Segundo ele, o ritual atrairia uma entidade e poderiam, uma vez que ela estaria subjugada, pedir que a criatura lhes atendesse um desejo. Como o assunto da noite tinha sido totalmente ligado às criaturas da noite e afins, e o álcool já era o facilitador da noite, todos concordaram. O ritual terminou com um bando de marmanjos, rindo e se divertindo com o monte de non sense que eles haviam proferido. Um deles, o que havia sugerido o ritual e cujo apelido era "cowboy" - sempre andava com essas botas de salto e biqueira de metal - fez todos os procedimentos coberto com uma enorme capa preta e medalhões e amuletos de diversos tipos, tamanhos e formas pendurados no pescoço. Eduardo se lembrou daquilo e sentiu uma enorme vontade de rir sozinho. Lembrou-se inclusive de ter desejado, no clímax da situação, se tornar um vampiro. “Pelo menos não vou precisar mais trabalhar” falou e os amigos caíram na gargalhada. “O que umas doses de uísque e um baseado não fazem com a cabeça da gente” pensou já de volta do devaneio e ao filme. Ele só havia se esquecido de um detalhe. O analgésico e a bebida daquela noite estavam fazendo efeito e essa combinação fazia com que fosse cada vez mais difícil manter os olhos abertos. Aliado ao cansaço adormeceu.

Eduardo dormia pesadamente. O trabalho e a bebida tinham-no extenuado de tal maneira que se o estouro de uma manada de elefantes passasse naquele momento em seu quarto, dificilmente ele acordaria. Mas o toque daquela mão, gélida como o toque da morte despertaram-no imediatamente. A mão fria e úmida tapava-lhe a boca e quase que totalmente as narinas, dificultando-lhe a respiração. Quando seus olhos se acostumaram com a escuridão viu dois olhos vermelhos como sangue em meio a uma cabeleira comprida, injetados de uma fúria quase que inumanas, flutuando próximos ao seu rosto. Quis gritar, mas a mão gelada, cujos dedos traziam unhas pontiagudas e finas e o punho ornado pelo babado da camisa de algodão branco estilo século XVI, estava em sua boca exatamente para impedir que fizesse isso. Tentou lutar, mas percebeu que suas mãos, punhos e braços tinham sido puxados para cima, em direção à cabeceira da cama e estavam presas por uma espécie de amarras etéreas como se mãos vigorosas as retivessem. Estava ali, torso nu, tendo como vestimenta apenas uma toalha de banho, à mercê de algo que desconhecia completamente. Eduardo só pensava em uma coisa. Seu instinto primevo, aquele que nos guia, nos alimenta e nos preserva gritava, dentro de sua mente, tal quais mil vozes. A única coisa que é capaz de fazer um ser humano dar o próximo passo, neste exato momento roubava o pavor insano da mente de Eduardo e lhe dava clareza de pensamento e forças para lutar: Sobrevivência.

Enquanto lutava, tentou gritar de novo, incomodado pelo hálito de morte que vinha do ser que lhe tapava a boca. Foi quando a criatura falou:

- Saudações Eduardo, quanto tempo não? – O ser acariciava o rosto de Eduardo com a ponta dos dedos finos e compridos, roçando as unhas pontiagudas na pele quase sem cor.

- Mmm... pff...q...mmm...

- Ah! Quanta indelicadeza a minha! Solto sua boca e você conversa comigo, está bem? Mas tem prometer que não vai gritar certo? – A criatura sorria com o canto da boca irônica e Eduardo pôde ver um dos caninos enormes refletidos na claridade que vinha da rua. – Promete que não vai gritar?

Eduardo balançou a cabeça em sinal de concordância. Queria gritar, mas obedeceu. Nem que tivesse fôlego para bradar por socorro, o medo tinha lhe travado a garganta. A criatura então soltou vagarosamente a boca de Eduardo e pôs-se em pé aos pés da cama. Ele tomou ar desesperado e tossiu um pouco por ter respirado depressa demais.

- Isso, respire. Acalme-se Edu. Você está em boa companhia! – Ao dizer isso a criatura soltou uma risada que fez o sangue de Eduardo gelar em suas veias. Ficou pálido e mais aterrorizado ainda quando o ser, como um relâmpago, saiu de sua posição ereta e colou novamente seu rosto ao de Eduardo.

- Então Eduardo – e pronunciou seu nome pausadamente, silaba após sílaba - Está pronto?

- Pro...pro...pronto pra-pra..quê? Eduardo só conseguia balbuciar. As palavras saíam forçadas de sua boca e o hálito da criatura – um misto de metal e carne - faziam com que os sons não passassem de um sussurro.

- Ora! Você não se lembra? Foi você quem me chamou!

- Chamei...?

- Ah! Mas como sou indelicado! Permita-me apresentar-me! Meu nome é Vlad! Vlad Coriescu! Ao dizer isso a criatura já estava em pé novamente e gesticulava teatralmente enquanto dizia o próprio nome, fazendo mesura ao pronunciar cada parte de seu próprio nome. Ao pôr-se de pé, dava a impressão de ser puxado por cabos. Equilibrava-se aos pés da cama de Eduardo, a camisa banca contrastando com as calças negras e coladas ao corpo. Nenhum ser humano normal faria esses movimentos com tanta leveza e rapidez como a criatura fazia. Eduardo entendia cada vez menos. Num átimo de lucidez, como se seu cérebro tivesse sido ligado naquele instante, uma palavra surgiu em sua tela mental.

- E você é um...um...?

- Sim, Eduardo, exatamente isso que você esta imaginando. Um vampiro!

- Oh Deus!...Eu...eu...não chamei você! Eu não...quer dizer...eu...nem lhe conheço! – Eduardo estava cada vez mais confuso – Vampiros não existem! – Conseguiu dizer, por fim.

- Ah! Edu, Edu...sinto em lhe desapontar. Mas existimos sim. Alias, estou bem aqui, “mortinho” da silva. Vlad caiu na gargalhada. Um riso que era capaz de silenciar uma multidão. Porque no fundo de sua alma, ele sabia que Vlad estava dizendo a verdade.

- E como entrou aqui?

- Como entro todas as vezes onde me chamam. Pela porta. Brincadeira! – Vlad gesticulou banalizando a situação – Mas isso não vem ao caso. Eu vim mesmo é para atender ao seu pedido. Você me chamou porque quer se tornar um de nós, está certo?

- Eu!?! – Eduardo soltou a exclamação num misto de indignação e desespero, a voz sumida, forçada a sair da garganta – Eu não chamei ninguém!

- Oh! Meu caro! Chamou sim! E quando alguém nos chama é porque está bem certo do que quer. E se está tão certo do que quer, é porque não tem volta. E como não tem volta, tem que ser feito! – Vlad se atirou na direção do pescoço de Eduardo e agarrou seus cabelos, puxando-os para trás. Isso expôs o pescoço de Eduardo e conseqüentemente a jugular. Vlad parou os caninos a milímetros da pele do pescoço. A língua insidiosa saiu da boca e lambeu a pele fresca. Inalou o ar em volta e as narinas dilataram com o cheiro do sangue dentro das veias de Eduardo e a boca salivou com a possibilidade que se aproximava de sorver abundantemente o jorro vermelho.

- E...es....espere! Eu...eu...não chamei você nem vampiro nenhum. Eu não quero morrer! Por favor! Eu sou muito jovem ainda! Oh! Deus! Por favor, Vlad! – Eduardo começou a chorar. Em meio ao choro desesperado, lembrou-se do ritual e do amigo que o havia executado e tentou argumentar – Não fui eu! Meu amigo é quem quer virar um vampiro! Por favor! – De olhos fechados, Eduardo implorava.

- Ora, ora, ora! Um bebê chorão! – Vlad agora encarava Eduardo. Sua voz chamara a atenção e o fizera abrir os olhos – Tenha vergonha! Seja homem! Honre isso que você carrega entre as pernas! – Ao dizer isso, desferiu violento tapa no rosto de Eduardo. O golpe o calou e o trouxe de volta à realidade. O que era desespero tornou-se fúria. O que era medo, transmutou-se em coragem insana. Eduardo começou a se debater e a tentar soltar-se. Urrava, sem se preocupar com vizinhos ou com quem quer que fosse. Gritava e se debatia. E Vlad, de braços cruzados, de pé ao lado da cama, ria desbragadamente.

- Pobre Edu. Não gaste suas forças. Isso só aumenta a adrenalina e melhora o gosto do seu sangue. Isso só vai apressar as coisas!

- Seu desgraçado! Vamos! Acabe logo com isso! Mate-me de uma vez! Agora! – Eduardo urrava as palavras, salivando e cuspindo impropérios na direção de Vlad que, passivo só observava, entediado, as unhas de uma das mãos, polindo-as de vez em quando na manga da camisa. Esperou Eduardo ficar cansado o suficiente e parar de berrar, para poder falar novamente.

- Edu...Edu... Você acha mesmo que é isso que vai acontecer? Você acha mesmo que eu sou um tipo de “anjo da morte” por encomenda? Ora, tenha um pouco de bom senso! Isso me ofende e ofende toda a linhagem de meus ancestrais! – Vlad parecendo estar ofendido e ironizava a situação, fingindo afetação – Mas, - o sorriso de lado, malicioso – não o culpo. Afinal de contas, vampiros não existem, não é mesmo?

Com um gesto, Vlad suspendeu Eduardo no ar. Os braços ainda imobilizados, foram torcidos para trás e ele foi posto em uma posição cujo destaque era sua jugular. Os músculos doíam por causa da posição e pelas tentativas de se mover.

- Es...pe...re! – foi o que Eduardo conseguiu dizer – por...que? – acrescentou.

- Você é bem lento pra entender as coisas mesmo não? – Vlad parou Eduardo no ar, apressando a explicação, com ar impaciente – Seu amigo fez o ritual e você fez o pedido. Satisfeito?

- Eu? Mas... – Eduardo parou um instante, e de repente tudo parecia claro como cristal. Ele e seus amigos, naquela reunião, tinham feito uma espécie, do que ele acreditava ser, um ritual para atrair uma criatura da noite – e isso incluía vampiros – e fazer com que essa criatura lhes concedesse um desejo. Não tinha a menor idéia do que estava fazendo e nem achava que seu amigo – o cowboy, quem dera a idéia e tinha executado o ritual – sabia o que estava fazendo e se aquilo daria mesmo algum resultado. Os "pegas" que tinha dado e as doses que havia tomado tiraram-lhe todo poder de crença em qualquer tipo de cerimônia naquela noite, por mais séria que fosse. Se tivesse se casado com alguém, com padre e tudo, ele não saberia. Muito menos atrair um vampiro. Mas pelo visto, era verdade. E tinha dado certo. E havia constatado isso da pior forma. Agora só restava uma coisa. Aceitar e morrer.

- Faça com que seja indolor. – Foi só o que conseguiu dizer ao fechar os olhos, conformado.

Vlad aproximou-se novamente do pescoço de Eduardo e parou de novo a alguns milímetros de sua pele. No entanto, desta vez, aproximou a boca do ouvido de Eduardo e sussurrou algumas palavras. Elas fizeram o coração de Eduardo quase parar. Os olhos arregalaram-se e a boca abriu-se, mas nenhum som saiu. Depois, passado algum tempo entre o cair de uma lagrima e a própria eternidade – Eduardo nunca saberia descrever quanto tempo – ele sentiu os caninos afiados penetrarem. Rasgando a pele, cada vez mais fundo. Mordeu os lábios. Aos poucos, o sangue, que fluía pelo corpo, era drenado e com ele, Eduardo sentia sua vida esvaindo-se. Relaxou a musculatura e deixou-se cair. Viu de soslaio os braços de Vlad envolvendo-o e sustentado o corpo, que agora caía inerte. Pequenos espasmos percorreram seu corpo, já fraco e quase ausente de sangue.

Tudo agora era névoa. Vlad tornou-se um borrão na escuridão do seu quarto e o que antes era a dúvida da morte, tornou-se a dádiva do esquecimento. Como surgiu, tudo sumiu e o nada preencheu o quarto, a mente e a alma de Eduardo.

O sol já ia alto quando Eduardo acordou. Olhou para o relógio na cabeceira da cama e constatou que já devia estar no trabalho há mais de uma hora. O gosto de óleo de motor na boca e a dor causada pelo que devia ser um prego enfiado em sua cabeça não o deixaram lembrar que ele estava de folga nesse dia. Esquecera-se completamente. Levantou sobressaltado e enfiou-se debaixo do chuveiro frio para acordar. Enxugou-se de qualquer forma, apanhou a mesma roupa do dia anterior e saiu.

Pouco antes, enquanto calçava seus sapatos, teve uma visão. Ou o que parecia ser uma, considerando o estado de consciência que Eduardo se encontrava. O corpo agia. Banhara-se, trocara-se, mas a mente não estava acompanhando. Naquele momento, foi como se tudo tivesse se encaixado e o impacto tinha tido a força de dois icebergs se chocando. Eduardo viu todo o ocorrido da noite anterior passar em sua cabeça, como um filme sendo reprisado, só que com a reprodução acelerada. Viu Vlad, viu seus caninos e sentiu seu hálito fedorento novamente. Sentiu de novo seu sangue sendo drenado e sua vida se apagando como uma vela ao vento. As imagens eram intercaladas com as lembranças do jantar com os amigos e o ritual do qual participara. E uma frase ecoou na mente - “Desejo concedido, irmão.” – sussurrada como um canto amaldiçoado, carregado pelo vento.

E então, como veio, tudo foi embora. Eduardo passou a mão na testa como que para afastar aquelas lembranças horríveis do pesadelo que acreditava ter sido aquele episódio e enxugou o suor. Terminou de calçar seus sapatos, apanhou as chaves do carro. Já no corredor, chamou o elevador e desceu para apanhar o carro na garagem. O percurso entre o elevador e seu carro era feito praticamente no escuro. Por um defeito da iluminação da garagem, as lâmpadas naquele percurso nunca acendiam quando era preciso e, por conta disso, Eduardo já tinha tropeçado inúmeras vezes nessas ocasiões. A cabeça ainda doía e as imagens do “sonho” da noite anterior não o deixaram perceber que agora ele enxergava perfeitamente o caminho até seu carro. Sua visão era perfeita. Apanhou o carro, ligou e saiu. A sombra num dos cantos da garagem encolheu-se à passagem do carro de Eduardo. As feições, sombrias por natureza, tornaram-se ainda mais negras. Eduardo passou com seu automóvel e saiu do prédio. Ganhou a rua e parou no semáforo na esquina próxima. Quando o sinal ficou verde, Eduardo arrancou com o carro e saiu da sombra do prédio onde morava. O sol, que já ia alto, fez o seu trabalho e o carro de Eduardo ficou desgovernado. A polícia só encontrou um carro abandonado e um punhado de cinzas no banco do motorista. Nas sombras, aquela feição endurecida só se deu ao trabalho de mover os lábios finos e frios num sussurro, enquanto se afastava, envolta por uma capa negra, ao som de botas de cowboy estalando no chão: “Pobre tolo!”

FIM