[_Abandonado]

      Estava frio. O cheiro de terra molhada entrou por suas narinas e o fez despertar lentamente. Abriu os olhos e tudo que viu foi escuridão. Escuridão e frio era tudo que ele reconhecia naquele instante. Tentou se sentar, porém suas costas doíam. Não somente suas costas, mas sua nuca. Uma dor estranha como se uma agulha estivesse cravada no local. Lentamente aproximou a mão esquerda, suja de terra, até a nuca e apalpou cuidadosamente temendo que um descuido seu fizesse o objeto invadir ainda mais o seu corpo.
     Não havia nada.
     Sentou-se devagar sentindo sua lombar fisgar e voltou a se deitar. Percorreu todo o lugar a sua volta com os olhos. Só havia árvores e escuridão. Não fazia a menor idéia de onde estava. Mexeu os pés e ficou aliviado ao notar que não havia perdido os movimentos deles. Provavelmente havia levado um tombo. Mas como teria parado ali. Fez um esforço a memória e só lembrava que estava em Minas Gerais à trabalho. Estava pesquisando contos populares para o seu livro de estréia na nova editora. A cobrança o enlouquecia. Estava com um tremendo bloqueio cultural. Não conseguia se sentar a frente de seu Lap-Top e escrever algo descente. Iniciava as histórias, contudo, na vigésima página perdia o fio da meada e deletava o arquivo. Sua vontade era escrever uma história sobre o espaço. Adorava ler sobre as estrelas, sobre a imensidão das galáxias. Era um assunto que muito lhe cativava.
     Uma segunda tentativa de se levantar foi frustrada devido a uma outra fisgada, desta vez na nuca. Estava imóvel. Tentou novamente se lembrar de como fora parar ali. Lembrou da noite anterior vagamente. Estava sentado em um bar bebendo vinho e revendo algumas fotos tiradas dias antes quando chegara a cidade. Depois lembrou que uma senhora o abordou vendendo pedras coloridas que mais pareciam disquinhos de chocolate que ele comprava nos ônibus do Rio de Janeiro. Não recordava se havia comprado ou não. O frio não o estava deixando pensar direito. Recostou sua cabeça na terra fofa e decidiu dormir um pouco.
     Adormeceu.
     Um clarão o fez abrir os olhos. Havia amanhecido e o céu se encontrava cinza. Não sentia tantas dores nas costas, mas sua nuca continuava lhe incomodando. Cogitou a idéia de algum inseto ter-lhe picado após se pressionado com o peso de seu corpo. Sabia que era assim que os insetos agiam. Quando intimidados, inserem seus ferrões sem querer saber se foi voluntariamente ou sem querer. Conseguiu se sentar. Pôde reparar que se encontrava em uma espécie de floresta. O frio continuava, mas agora podia ver precisamente onde acordara. Virou a cabeça para seu lado esquerdo e teve a impressão de ver alguém escondido dentre dois arbustos.
     Levantou-se rapidamente.
     Suas vestimentas estavam diferentes das que lembrava. Estava sem blusa, e sabia que tinha dormido com uma blusa azul-marinho, presente de sua esposa. E sua calça jeans já gasta pelo tempo, se transformara em uma calça camuflada do exército. Não deu muita atenção a mudança e se pôs a correr na direção da silhueta. Reparou que a floresta era mais extensa do que imaginara. Era repleta de caminhos que se cruzavam, alguns feitos de terra batida, outros de grama seca e outros de asfalto. Seja onde estivesse, a civilização estivera ali. Asfalto. E grama provavelmente não cultivada há alguns meses. Aquilo lhe acendeu a esperança de descobrir como fora parar ali.
     Correu por mais alguns instantes até que cansou. Colocou as mãos sobre os joelhos e respirou fundo. Precisava pegar leve. Não queria que acontecesse de novo. Não pela quarta vez. Só tinha vinte e seis anos e já havia acontecido quatro vezes nos últimos dez anos.Culpava-se pela morte de sua mãe. Provavelmente ela morrera devido ao estresse causado por seu problema.
     Ao erguer o pescoço, notou que bem a sua gente havia um lago. Aproximou-se devagar e sentindo pontadas no peito. Respirou fundo novamente e parou em frente ao lago. A água era verde e o chafariz despejava um filete verde de água dentro do reservatório.
     Chegou mais perto ainda para estudar as possibilidades de beber um pouco daquela água. Estava com sede e fome. Suportava a fome, mas não a sede. O lago era cercado por pedras ovais lisas, de material parecido com os da pedra sabão só que aparentavam ser mais resistentes. Pegou uma em suas mãos e pôde notar que estavam quentes. Parecia que algo estava sobre algo fervendo. Vagarosamente colocou sua mão esquerda dentro d’água. Ela estava morna. Algo interessante se tratando de um lago artificial no meio de uma floresta. Parecia uma daquelas piscinas térmicas que visitara quando estivera nos Estados Unidos. Apesar da coloração duvidosa, colocou suas mãos em forma de concha e encheu com um pouco do líquido. Como se ao bebesse água há anos, engoliu tudo e repetiu tudo por três vezes até saciar sua sede. Feito isso começou a andar pelo local.
     O lago era cercado por cinco caminhos. Não sabia qual seguir. Apesar da situação singular, sorriu ao lembrar do filme “O mágico de Oz”.Pensou consigo em como seria interessante se alguma dos caminhos à sua volta fosse de tijolos amarelos e se aparecesse um espantalho, um homem-de-lata e um leão para ajudá-lo. Sua distração foi interrompida por um estampido, seguido pelo barulho de galhos caindo. Virou-se imediatamente para trás, de onde vinha o barulho. Duas árvores se envergavam como se um peso descomunal lhe fosse colocado na altura de suas copas. O homem não conseguia ver o que as entortava. Não parecia haver nada sobre elas. Se houvesse, seria algo invisível.
     Foi se afastando de ré. Estava assustado. A floresta parecia sussurrar em seu ouvido. Estava entrando em pânico. Nesse instante, sua nuca doeu ainda mais. Seus olhos foram ficando pesados. Suas pernas moles. Queria correr, mas não conseguia. Parecia um sonho. Um daqueles pesadelos em que somos seguidos e não conseguimos correr.
     De repente ouviu um chiado. Como se alguém falasse através de um rádio-transmissor. Conseguiu abrir seus olhos cerrados. Estava tudo embaçado mas pôde reconhecer um par de botas militares sujos de lama e com um líquido azul respingado em alguns pontos do calçado.
    A voz da pessoa a sua frente era firme. Parecia falar espanhol e as vezes latin. Não conseguia reconhecer o que era dito pelo homem a sua frente. As únicas palavras que escutara fora: “Cem anos”.
Sentiu que algo se encostava a sua nuca. Seus olhos mesmo pesados lutavam para tentar enxergar o rosto dele. Não conseguia definir ao certo a fisionomia, mas sentia que estava tocando sua nuca. Parecia que estava espremendo um cravo ou coisa parecida. Sentiu uma picada.
     Adormeceu.
     Uma chuva fina começou a cair sobre a floresta. As árvores dançavam conforme o vento. As árvores que estavam envergadas continuavam envergadas.  O rapaz estava sonhando. O sono estava profundo. Estava sonhando com sua família. Sua esposa, seu cachorro vira-lata chamado Dix e sua falecida mãe. Todos os três o observavam deitado em uma cama de lençóis brancos. Ao redor da cama, havia também silhuetas negras ao redor da cama. Sua mãe sorria enquanto acariciava sua testa.
     -Me desculpe,mãe. Eu não queria. - se desculpava ele.
     Sua mãe era uma mulher bonita, e neste sonho aparentava estar bem mais nova do que quando a vira pela última vez, quando ele tivera sua quinta parada cardíaca. Seu último contato com ela fora na sala de cirurgia. Estava abatida, e tinha olheiras profundas. Suas pálpebras inchadas entregavam que estivera chorando.
     -Você não teve culpa filho. Você é especial. Desde que você nasceu eu sabia que seria especial. O Homem de verde havia me avisado. - repetia ela enquanto acariciava sua nuca.
     Sentiu vontade de chorar. Sua esposa continuava calada. E seu cachorro permanecia imóvel apenas olhando para as silhuetas que cercavam a cama.
     Acordou de supetão. Ainda estava de dia, mas a chuva havia apertado. Deslocou seus olhos para as árvores tortas. As duas se tocavam frente a frente por suas copas, criando uma espécie de umbral. Ficou observando aquilo, aquela cena era curiosa. Como duas árvores daquele tamanho envergariam de maneira tão harmônica?
     Levantou-se.
     Uma visão curiosa o fez desacreditar em sua sanidade. Além dos limites das duas árvores, havia um prédio conhecido dele. Olhou para os lados. Achou estar vendo coisas. Achou por um instante que a água do lago estaria lhe causando tais delírios. Crendo em sim, começo a correr em direção ao prédio. Quando passou por debaixo do umbral das árvores tortas sentiu todos os ossos de seu corpo se estalar. Não acreditou. Ao passar totalmente, estava em casa, precisamente na porta de seu quarto. A porta se encontrava entreaberta e era possível notar a luz do abajur ligada. Odiava quando sua esposa esquecia o abajur ligado, ainda causaria um incêndio. Cautelosamente entrou no quarto segurando a porta para que ela não rangesse e acordasse sua esposa. Para sua surpresa não havia ninguém no quarto. Apenas sua cama desarrumada. Aproximou-se e começou a procurar pelo quarto. Não havia ninguém. Foi até o banheiro e lá também não havia ninguém. Apenas uma toalha molhada no cabideiro. Ao voltar para o quarto levara um susto. Ao redor da cama e casal se encontrava sua esposa e mais dois homens vestidos de verde. Se aproximou dos três, mas foi interceptado por alguma força invisível. De onde estava, podia ver uma enorme mancha com o formato de seu corpo no lençol. Uma mancha marrom e com contornos prateados. Não sabia o que era mas era a silhueta de uma pessoa. Já havia visto uma cena parecida em um documentário de televisão sobre as vítimas da bomba de Hiroshima. Muitas das pessoas desintegradas pela força da bomba tinham até o presente suas silhuetas marcadas no solo. Mas aquela silhueta era dele. Mas porquê?
    Ao erguer sua cabeça para o teto, numa tentativa de falar com Deus. Viu algo que lhe chamou ainda mais a atenção. A mesma silhueta se encontrava na mesma direção da silhueta na cama. Estranhou aquilo. E nesse instante sua nuca doeu. A dor mais forte do que as anteriores. Sua esposa foi se desmaterializando assim como os dois homens de verde. Foi então que o cenário inteiro se desfez e ele estava outra vez na floresta, sob as árvores tortas.
     Sentou-se em uma pedra e começou a chorar. As lembranças de sua mãe estavam cada vez mais intensas. E parecia que a floresta ria de sua dor. Recordou rapidamente de seu primeiro ataque cardíaco aos dezesseis anos de idade. Estava no Museu da Quinta da Boa Vista, no bairro de São Cristóvão, zona norte do Rio. Na sala dos asteróides ele sentiu uma leve tontura e uma pressão em seu peito esquerdo. Quando acordou, estava sendo carregado sobre uma maca, por diversos homens que pareciam militares. Podia escutar alguns falando em latim. Outros em espanhol. E ao fundo podia escutar sua mãe chorando. Levantou a cabeça pesada e levou seus olhos trêmulos e marejados até o lugar de onde vinha o barulho do choro dela. Viu um homem forte se aproximar com uma espécie de papel laranja e entregá-la. Uma das pessoas que empurravam a maca comentou sobre uma troca.
     Voltou a si. Nunca havia se lembrado tão bem daquela situação. Passara-se dez anos. Sua mãe contava que ficara internado dois meses e muitos duvidavam que sobrevivesse. Um barulho o fez acordar para o presente e deixar as lembranças de lado. As árvores não estavam mais tortas. Um vento frio passou por ele. E pôde sentir alguém se aproximar lentamente pela sua retaguarda. Virou-se imediatamente.
     Um homem de estatura baixa e queixo quadrado o observava. Atrás dele milhares de luzes piscavam. Era como uma platéia observada pelas câmeras onde vemos milhares de flashs explodindo por toda a arquibancada.
     -Se sente melhor, Daniel? – perguntou o homem com um português misturado com um sotaque estrangeiro desconhecido.
     -Onde estou? Que lugar é esse?-perguntava desesperado.
     -Fique tranqüilo,isso já vai acabar. Você já fez todos os seus testes.
     -Testes?
     -Sim, testes, e eles vão liberar você. Este não é seu lugar. Seu organismo não se adaptou ao meio ambiente local como eles acharam que se adaptaria.
     Tudo estava ainda mais confuso.
     -Essa sua dúvida é normal. Afinal, injetaram algumas substâncias que seu corpo terreno não se adaptou. Daí as alucinações.
     -Do que está falando?
     -Meu nome é Shualon. Estou designado a preparar sua volta para casa. Mas para isso o senhor terá que colaborar e entender.
     -Quanto mais você fala,menos eu entendo.Explique de uma vez.-insistiu Daniel tentando se levantar mas caindo logo em seguida.
     -Não faça esforços. Vou lhe explicar tudo, para que o senhor saiba como agir quando chegar em casa.
     -Minha esposa deve estar desesperada. Onde ela está?
     -Sinto muito,mas sua esposa morreu há cem anos.
     -O senhor é louco! O que fizeram com a Vitória?Onde está minha esposa.
     -Daniel, o tipo de vida de sua esposa não é compatível com as leis aplicadas ao seu organismo. Você foi selecionado dentre muitos, há pelo menos trezentos anos locais atrás. Sua missão era conhecer, estudar, formalizar uma vida nesse lugar. Sua mãe local sabia disso, você foi emprestado a ela.
     -Como assim?Eu tive uma vida. Lembro-me muito bem e tudo.
     -Lembra muito bem de tudo a partir de seu primeiro ataque cardíaco, não é?
     Daniel gelou. Sabia que o homem estava certo. Praticamente não lembrava de sua infância. Calou-se para que o homem continuasse.
     -Guilhermina, sua mãe, perdera um filho. Morrera aos dezesseis anos de parada cardio-respiratória. Imediatamente meu superior ofereceu-lhe um novo filho, com suas mesmas feições. Em troca, queria que nas datas marcadas ela levasse o novo rapaz ao hospital para exames e testes. Precisávamos saber se seu organismo estava reagindo bem ao clima.
     -Então todas minhas paradas cardíacas foram pré-programadas?
     -Sim.Assim como todos seus pensamentos essenciais e alguns sentimentos. Sua mãe sabia. Mas o povo local tem uma coisa que é difícil se igualar. Um sentimento que os mantém muito ligado:o amor. Ela não agüentou a culpa de substituir um filho morto por alguém tão diferente. Morreu por não superar essa dor.
     -Eu sou normal. O senhor é louco. Tire-me daqui dessa floresta. Eu quero ir para casa.
     -O senhor já está em casa. Voltou para casa na noite passada, quando uma senhora ofereceu-lhe aquelas pedras coloridas. Ela era sua condutora.
     -Mas como assim? Acabou de dizer que isso fora a cem anos. Minha esposa estava viva nesse dia. Onde o senhor está com a cabeça? De que planeta você veio?
     O homem ficou em silêncio. E esse silêncio deu medo em Daniel.
     -Vim do mesmo planeta que você. - disse apontando na direção das árvores que voltava a estarem tortas. - E o domínio do tempo aqui é diferente do da Terra.
     Um zumbido ensurdecedor tomou o local. Depois um barulho parecido ao das bobinas de um avião começou a soar. E vagarosamente dois objetos ovais, um sobre cada copa surgiram como se por mágica. Eram duas naves.
     -Bem vindo, Daniel!
     Milhares de naves parecidas foram surgindo por toda floresta. Homens vestidos de verde surgiam também dentre as árvores. Seres esquisitos brotavam do chão como se erguidos por um elevador.
     -O senhor será o nosso guia para entender como funciona a sociedade naquele planeta. O senhor sempre foi um de nós. Sua vontade de escrever e desvendar galáxias era seu corpo querendo voltar para casa. Se ficasse mais anos por lá, morreria e toda pesquisa teria sido em vão.
     Daniel não acreditava. Sua pele começara a descamar. Seus cabelos negros e lisos caíam conforme ele passava a mão sobre eles.
     -Assim como você ainda há muitos de nós dentre eles prestes a voltarem. O planeta Terra corre perigo! É o planeta mais próximo em relação a vida ao nosso. Caso ele se extinga, nós assumiremos o controle com tudo que você e os outros aprenderam sobre ele. Sua profissão de escritor deve ter-lhe ajudado muito.
     A pele de Daniel estava cinza. Seus olhos estavam grandes. Sua fisionomia estava completamente diferente. Viu seu reflexo no lago. Parecia um personagem dos filmes de ficção científica que assistia prazerosamente. Uma espécie de chip eletrônico caiu da parte traseira de seu pescoço agora cinza e viscoso.
     -Isto fica conosco.- disse uma das criaturas cinza.
     As dores na nuca passaram nesse instante.
     Apesar da confusão, Daniel finalmente sentia que estava em casa.
     Os homens de verde o aplaudiam. Em cima de um simples escritor até então, estava depositado o futuro de uma civilização.

FIM
Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 16/05/2009
Reeditado em 12/06/2012
Código do texto: T1597412
Classificação de conteúdo: seguro
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