Irmãos de sangue

— Jordin, preciso de sangue.

Na obscuridade da caverna, vi meu irmão Gaspard olhar para as tochas que vagavam do lado de fora, na floresta. Os aldeões patrulhavam com determinação para nos destruir, revezavam-se há semanas, não permitindo uma oportunidade de fuga. Nenhuma.

— Acalme-se, Gaspard.- o modo como os olhos dele chispavam preocupava-me. Eu mesmo sofria os efeitos da falta de sangue em meu corpo. Sentia-me delirante. Talvez os meus olhos também chispassem como os dele.

Os aldeões conversavam entre si, gesticulavam e balançavam as tochas em nossa direção. Embora a luz do fogo brincasse em suas faces, não eram capazes de alcançar-nos onde estávamos. Eles apenas sabiam que era na caverna que nos havíamos refugiado.

— Jordin, vamos fugir? Agora, enquanto ainda temos alguma força.

Será que havia ainda alguma força em nós? Se havia, eram só fiapos daquela força que permitira , anteriormente, que corrêssemos como o vento, saltássemos sobre as copas das árvores e sobre as chaminés das casas da aldeia. Na situação atual, um simples pensamento parecia me exaurir.

— Gaspard, não vejo como sair daqui sem ser dilacerado vivo por eles - encarei-o e percebi que tudo o que ele esperava de mim era uma resposta positiva. Vê-lo desesperar-se daquele jeito estava me matando. - É verdade, não vejo como!

— Então, vamos ficar sentados esperando a morte? Assim, acuados como ratos?

Fiquei imaginando quantas vezes não acuamos da mesma forma nossas presas. Quantas vezes deixamos de aterrorizar alguém. Se sobrevivêssemos, será que deixaríamos de fazer coisas assim? Era óbvio que não. Então, por que ele se queixava desse jeito? Nunca ele parara para pensar nos sentimentos de uma presa sem salvação?

Tive que pensar em minhas próprias dores. Pensei em como havia vivido até agora. Acho que, assim como os humanos, os vampiros também sentem medo da morte e quando a hora se aproxima também desejam ter agido diferente de como agiram. Mas, se houvesse uma segunda chance, duvido que algum vampiro fosse ser diferente.

Duvidei que Gaspard estivesse tendo os mesmos pensamentos que eu. Ele era o irrecuperável. E eu não acreditava na existência de um vampiro que não o fosse.

Os aldeões decidiram incendiar a floresta. Era outono e a chuva não caía há algum tempo. O solo estava coberto de folhas secas e as árvores estavam ficando nuas. Sabiam que estávamos na caverna, não se encorajavam a nos atacar ali dentro, pois acreditavam que num combate físico a vantagem seria nossa. Já um incêndio...

O fogo seria catastrófico. O corpo vampiresco é mais combustível do que aparenta.

Eu sabia que dadas as nossas condições até mesmo uma criança armada com uma foice poderia nos ferir gravemente antes que pudéssemos escapar do resto da turba enfurecida. Mas, se eles pusessem fogo no mato e jogassem algumas tochas incendiárias aonde estávamos, seria uma questão de tempo até que nós mesmos ardêssemos em chamas. E se, por acaso, arrastássemo-nos para fora da fogueira, eles no retalhariam.

— O que faremos, Jordin? - perguntou-me aflito, vendo as tochas sendo baixadas até os montes de turfa, folhas e gravetos secos . - O que vamos fazer agora?

Ele se levantou e avançou em direção à boca da caverna; não cambaleava, mas seus movimentos eram muito lentos e incertos. Antes que pusesse um pé fora de nosso esconderijo, segurei-o e o puxei para as sombras.

— Aonde pensa que vai? - estava cansado e minha voz saía desprovida de convicção. - Acha que conseguirá passar por eles? Se virem você, vão transformá-lo num monte de escombros. Quero dizer, se tiver um pouco de sorte.

— Devemos esperar, então? Aproveitar o espetáculo?

Afastei-me dele e vi as chamas crescendo, iluminando a noite. Elas dançavam sobre a vegetação, lânguidas como predadores famintos, avançando para nós.

— Eu digo que NÃO! -ele me assustou e seu grito alertou os aldeões.

— Gaspard...

— Nós não vamos morrer assim! É ridículo!

Uma tocha fora lançada, voando diante de nossos olhos. O fogo dela iluminou momentaneamente o rosto de meu irmão, fazendo-me ver em detalhes as veias saltadas sob a pele branca, como rios caudalosos, mas secos. O fogo brilhou em seus olhos negros e pareceu morrer ali.

O inveterado.

O crepitar crescia cada vez mais . De lá de fora vinham os gritos dos aldeões:

— Demônios!

—Assassinos, assassinos!

— Morram! Morram, crias do Inferno!

— Morte aos Amaldiçoados!

Não havia mais tempo. Dentro em pouco, a caverna se tornaria um crematório.

Eu o salvaria, eu o tiraria das garras da Morte.

— Gaspard, beba o meu sangue.- aproximei-me dele e inclinei a cabeça- expondo o pescoço para que o mordesse rapidamente- Ande logo, o tempo está passando!

Ele vacilava. Os cantos da boca tremiam como quando ele chorava na infância.

— RÁPIDO!

As chamas caminharam para dentro. Um bando de morcegos saiu voando e guinchando, contornando-nos. Senti o pânico tomar conta de mim.

— Rápido, o que está esperando?

Ele se atirou sobre mim e me abraçou. Senti suas lágrimas molharem o meu ombro.

— Irmão-ele sussurrou contra o meu pescoço- sempre irei amá-lo. Nunca se esqueça disso.

Os dentes cravaram-se em minha carne e o sangue fluiu através dos orifícios, sendo sugado em seguida para o corpo de querido irmão.

O mundo tornava-se frio e negro, eu nada notando do calor do fogo ou de sua luz. Deixei de captar os sons e perdi a sensibilidade dos membros.Deixei-me cair, enquanto ele bebia as últimas gotas de meu sangue.

Gaspard olhava para mim e dizia palavras que não consegui ouvir. Ele segurava minhas mãos e isso foi a última coisa que vi. Meus olhos fecharam-se.

Jordin acordara lentamente. Ainda estava muito debilitado pela nossa pequena e quase fatal aventura no interior. Se não fosse por ele, eu não estaria aqui, escrevendo em meu diário, sentado em uma cadeira macia e confortável, em um quarto aconchegante de Paris.

Ele fora um louco me obrigando a beber seu próprio sangue.Acho que durante todo o tempo acreditou que estivesse dando a vida por mim. Mas eu não seria louco de deixar que morresse.

Após beber-lhe o sangue, carreguei-o para fora da caverna. O fogo queimou-me um bocado, mas fui bastante rápido para fugir no meio dele.

Os malditos aldeões haviam montado guarda para impedir nossa fuga; no entanto, a floresta era grande demais para tal estratégia e embrenhando pelo mato consegui passar pelos guardas despercebidamente.

Acredito que muitos tenham morrido aquela noite. Fora um tanto difícil para mim, um vampiro, escapar ao incêndio. E mesmo que não estivesse com Jordin em meus braços, teria sido complicado. Uma tora em chamas atingiu meu rosto e ele ficou meio destruído. Vi a enorme fogueira lançando fagulhas ao céu e gritos vindos dela. Acho que pelo menos alguns morreram.

Devo minha vida ao meu irmãozinho e cuidarei dele como ele cuidou de mim. Nesse estado, ele não será capaz de caçar, eu mesmo lhe trarei algo. Sei bem do que ele gosta e não o decepcionarei quanto a isso.

Talvez ele esteja um pouco traumatizado. É o que me parece. Talvez esteja avaliando nossas vidas. Ele sempre se deixa corroer pela consciência. Sim, deve ser isso.

Talvez eu devesse fazer o mesmo. Ou não.

Andhromeda
Enviado por Andhromeda em 14/05/2009
Reeditado em 26/05/2012
Código do texto: T1593546
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