Profecia Primordial

“...a rota dos meteoros é próxima à Terra, mas, segundo os astrônomos, não há perigo de colisão. A rota foi descoberta a cerca de três meses pelos pesquisadores da NASA, através do telescópio espacial Hubble. Os meteoros devem passar pela Terra no ano de 2012”.

- trecho extraído da reportagem “Poeira Espacial”, do Jornal Hoje, no dia 12/07/2009

Johanesburgo, África do Sul. 21/12/2012

A EXPEDIÇÃO BRASILEIRA ÀS GRUTAS de Sterkfontein havia começado há quase duas semanas, mas ainda não lograva muitos êxitos. Roberto Klein, paleo-antropólogo responsável pela comitiva, estava bastante apreensivo. Os testes com o carbono 14 nos fósseis descobertos eram bastante desanimadores. Nada ali tinha mais de cinquenta anos de idade, e isso, para o berço da humanidade, era menos do que um milésimo de segundo.

Klein praguejou quando o resultado dos últimos fósseis não se mostrou surpreendente. O fóssil mais antigo que acharam tinha o formato de um osso – que, a princípio, poderia ser de um bebê Australopithecus africanus, com cerca de dois milhões de anos de idade – do tamanho de um pé de galinha da angola. Pelos resultados – o fóssil tinha cerca de oitenta e cinco anos –, provavelmente o era.

- Carajos! – exclamou, como se o espanhol pudesse parecer menos obsceno. Mania antiga, adquirida durante os anos que passou lendo Gabriel García Márquez. Chutou a perna da mesa, tentando extravasar a frustração. – O governo nos concede quase cinco milhões pra pesquisa e tudo o que a gente consegue é um bando de ossos do ano passado?! – Klein apertava as mãos até elas ficarem sem circulação. – Merda!

- Os malditos americanos já descobriram tudo, Klein. – disse Goulart, recentemente pós-graduado em paleontologia e um dos sortudos a serem indicados por Klein para acompanhá-lo na pesquisa pioneira no Brasil. – Eles e os europeus.

- Eles deixaram passar alguma coisa, sempre deixam. – disse Simone, pós-doutora em geologia, única mulher da comitiva. – Nós que não procuramos direito.

- A Simone tá certa. – disse Klein. – O governo não tá bancando essa pesquisa à toa. Eles querem resultado.

- Eles querem é amizade com Johanesburgo... – disse Goulart, sempre inconveniente. – Politicagem, sempre politicagem.

- O que não é nossa área. – retrucou Simone. – Agora vamos nos concentrar no que viemos fazer aqui, e não com as intenções do governo, certo? – olhou para Klein, em busca de apoio.

- Certo, certo... – ele apressou-se em dizer. – Goulart, chame o Túlio e continuem com as pesquisas. E tomem cuidado, pelo amor de todos os deuses africanos! Não quero o pessoal de Witwatersrand perturbando a gente... já demoramos tempo bastante para conseguir a autorização das explorações. E tudo o que eu quero agora é não ter que gastar mais um milhão do governo em reparos por causa da merda de um deslizamento. Certo?

- Aquele deslizamento não foi culpa minha! A porra do solo tava úmido que nem bosta mole!

- Guarde suas escatologias para você mesmo. – disse Simone. – Vamos ao trabalho.

MUNIDOS DE SEUS PINCÉIS E martelos, Túlio e Goulart continuavam as pesquisas.

Ao começar sua pós em paleontologia, Goulart pensava que seria um Indiana Jones, correndo de mercenários perigosos e descobrindo segredos a cada semana que se passasse. Mas, assim que viu como era o trabalho, descobriu que Spielberg era um grande mentiroso do mundo cinematográfico. Aquele trabalho não era nada divertido ou aventureiro. Ao contrário, era extremamente cansativo e chato, além de trazer pouco ou nenhum resultado.

De Indiana Jones, Goulart tinha só o chapéu.

Estava de cócoras há quase cinquenta minutos, pincelando minuciosamente a terra lamacenta das cavernas. Com a ajuda de Túlio – que segurava a lanterna e indicava os lugares onde Goulart deveria pincelar ou martelar – o trabalho parecia menos entediante.

- Isso... – disse Túlio, enquanto Goulart martelava a parede com a força de um beija-flor. – devagar... bem devagar. Não queremos que a caverna venha abaixo.

Goulart estava realmente tendo todo o cuidado necessário. Mas isso não foi o suficiente para que o martelo se fincasse na parede e criasse uma rachadura consideravelmente grande.

Com um estalo, os dois levantaram-se, assustados.

- Merda, merda, merda! – exclamou Goulart. – Você viu! Eu não fiz nada de errado! Eu estava indo devagar! Merda!

- Eu sei, eu sei! – disse Túlio, tão desesperado quanto. – A gente tem que reportar isso pro Klein. Vamos logo antes que isso tudo ceda e a gente se ferre ainda mais.

Mal Túlio terminou sua frase, outro estalo, dessa vez mais alto. Os outros pesquisadores e professores da universidade ergueram as cabeças, seguindo a origem do som. Túlio e Goulart tremiam da cabeça aos pés: tudo o que queriam era encontrar um buraco mais próximo no qual pudessem se esconder.

Com um terceiro estalo – consideravelmente alto, fazendo o chão tremer – parte da parede cedeu. Caiu com estrépito, escandalizando os paleontólogos presentes e deixando os dois brasileiros ainda mais nervosos.

Quando a poeira baixou, os dois tiveram uma surpresa.

- Puta que o pariu, você está vendo o mesmo que eu? – perguntou Goulart, trocando o tom apreensivo pelo de total estupefação. – Mas que porra é essa?

- Não sei, cara... – disse Túlio, boquiaberto.

Na parede, um fóssil intacto tinha os braços cruzados sobre o tórax. Segurava uma placa de pedra na mão, com alguns desenhos indecifráveis. Deveria ter, no mínimo, um milhão de anos de idade.

- HOMO ERECTUS? – PERGUNTOU KLEIN, ANALISANDO as particularidades do fóssil.

- Alguma coisa entre Homo habilis e Homo erectus... – disse Simone, medindo as proporções do crânio.

Os dois estavam em uma sala exclusiva, livre de bactérias e agentes externos. Os outros pesquisadores estavam loucos de curiosidade, querendo a todo custo ficar a frente da pesquisa do fóssil intacto. Mas, por conta do contrato do governo brasileiro com a universidade, Klein tinha exclusividade sobre qualquer achado, independente de sua importância.

- Os resultados do carbono 14 saíram?

- Sim, senhor! – ela disse, animada e ironicamente. – Temos à nossa frente um senhor de um milhão e duzentos mil anos de idade. Intacto.

- E com um brinquedinho intrigante... – ele disse, analisando minuciosamente a placa que o espécime abraçava, agora colocada em uma bancada especial. – O que diabos ele estava fazendo com isso?

- O que diabos ele estava fazendo na parede, para começo de conversa?! É uma descoberta incrível, Klein, mas eu nunca vi nada como isso na minha vida! Os Homo erectus podiam ser tudo, menos cruéis ou inteligentes o bastante para pensarem em punir um semelhante. Como diabos esse camarada foi emparedado?

- Se eu soubesse já estaria escrevendo meu best-seller, Simone... – ele ponderou por alguns segundos, pesando as possibilidades. – ET’s?

- Ciência, Klein, não especulações... – Simone foi até a placa de pedra. Com seu pincel, tirou os resquícios da poeira. – E esses desenhos... será que têm algum significado?

- Se eu não fosse ateu, diria que Deus deve ter pintado isso. Ou alguém a mando d’Ele.

O desenho rústico era dividido em dois: na parte superior, parecia mostrar homens – representados por bonecos feitos de traços – olhando para cima, onde um emaranhado de rabiscos deveriam simbolizar o céu. E do céu, em direção à terra, vinha uma infinidade de projéteis, em formato circular. Parecia que estavam prestes a se chocar no solo; na segunda parte do desenho, o chão aparecia rachado, e os homens todos abaixo do solo, deitados como mortos. O céu não tinha mais uma infinidade de rabiscos, mas sim linhas concisas, como se mostrasse calmaria.

Do outro lado da placa, não havia nada além de uma infinidade de riscos milimetricamente desenhados. Menores que meio centímetro e mais finos do que um risco de caneta, os rabiscos exaustivos preenchiam todo o lado da placa.

- Alguma idéia do que isso signifique? – perguntou Simone. – Me chame de maluca, mas mandei o Goulart contar e recontar o número de rabiscos. Ele chegou ao impressionante número de um milhão, duzentos e três mil, quatrocentos e cinquenta e sete rabiscos. Te diz alguma coisa?

- Talvez... – ele apertou o ramal de Goulart no telefone, mudando a expressão para a de profunda concentração. – Goulart, venha até aqui.

Não demorou dois minutos para que o recém pós-graduado chegasse.

- O quê?

- Um milhão, duzentos e três mil, quatrocentos e cinquenta e sete riscos. Correto?

- Corretíssimo, chefe. Contado e recontado duas vezes. Sem sombra de dúvidas. Por quê?

- Estou pensando em algumas doideiras... – ele disse, rabiscando freneticamente em um pedaço de papel.

Massageou as têmporas, o cenho franzido em concentração.

- Não, isso é excesso de cafeína, só pode ser...

- Algum problema, Klein? – perguntou Simone.

- Crenças pagãs de um ateu, só isso, Simone. – ele disse. – Como você disse, não importa. É especulação, não ciência.

- Não, se não fosse importante você não estaria assim, Klein. Diga logo: o que você está pensando?

- Vamos lá: há alguma possibilidade desse fóssil ter exatamente um milhão, duzentos e um mil, quatrocentos e quarenta e cinco anos?

- Perfeitamente... – disse Simone. – Por quê? Fale logo, merda!

- Acho que já sei porque nosso camarada foi emparedado, mas é surreal demais para qualquer um de vocês me levar a sério.

- Tente. – ela disse.

- Um profeta. Nosso homem era um profeta, e dos melhores.

- O quê? – perguntou Goulart, com uma cara de total espanto. – Um Homo erectus, profeta? Eles nem falavam, pelo amor de Deus!

- Eu disse que era surreal. Mas me deixe continuar. – ele estava em estado de epifania. – Maias, astecas, incas. Todos pregavam que o mundo iria acabar em 2012. Nosso camarada aqui concordava com eles. Os rabiscos são precisos, não vêem? Cada rabisco representa um ano. Contando os anos até aqui, chegamos em 2012. Esse cara foi nosso primeiro profeta, e deve ter sido emparedado porque os outros tinham medo de seus transes ou o que quer que fosse!

- Klein, desde quando você acredita em profecias? – perguntou Simone. – Que eu saiba, você é o ateu mais convicto daquela universidade!

Antes que qualquer um pudesse dizer alguma coisa, Túlio irrompeu pela porta. Sem bater ou pedir autorizações, parecia suar frio. Estava com um aspecto assustador, de puro terror. Todos se sobressaltaram, assustados.

- Puta que o pariu, Túlio, o Klein tá falando um monte de coisa mórbida e você vem me dar esse susto?!

- Vocês... vocês têm que ver isso... – ele não respondeu às piadas de Goulart. Alguma coisa estava acontecendo.

- O que foi, homem? – perguntou Simone, verdadeiramente assustada.

- O Brasil... a América do Sul... puta que o pariu, uma dezena de meteoros caiu lá ainda a pouco!

Os quatro se entreolharam, estupefatos.

Logo depois, um estrondo os tirou do estado de letargia. Da janela, viam o céu escurecer pouco a pouco. Uma rajada de pedras incandescentes começou a cair em solo sul-africano.

O fóssil hominídeo parecia confortável em sua condição de profeta morto. Suas previsões, feitas há mais de um milhão de anos, estavam corretas no fim das contas.