Você teve a sua chance

Tocavam os sinos da igrejinha quando Pedro deu por si. Estava deitado no gramado, em estado de transe, num torpor consciente. Olhou ao redor, os olhos esbugalhados. Estava assustado, desestruturado. Levantou-se esfregando atrás da cabeça, como se tivesse levado uma pancada. Olhou novamente ao redor, com medo de estar sendo perseguido, ou algo do gênero, e pôs-se a andar. Pulou a cerca do quintal, chutando qualquer coisa que aparecesse na frente, e encontrou-se no meio da calçada. Onde estava? Não fazia a menor idéia. De repente um rosto macilento se escondeu atrás de uma parede na esquina. Os olhos cravados em Pedro. Ele sentiu que aquilo não era coisa boa. E uma frase sempre ecoando em sua cabeça: “Você teve a sua chance”. Isso de nada lhe adiantava. Sentiu um ímpeto de sair correndo, e foi o que fez. Cruzou a rua sem olhar para os lados, e foi quase atropelado por uma van escolar. Olhou para trás mais uma vez, o suor lhe brotando na testa. Lá estava o rosto, dessa vez se esquivando para trás de um poste. “Você teve a sua chance”, ecoou novamente. Virou numa esquina e deu de encontro com uma mulher jovem e bonita, “politicamente correta”, vestindo um sapato discreto, laço no cabelo, um vestido que lhe caía até os joelhos e que se ondulava por seu corpo. Um cabelo louro exuberante refletia o sol forte lá no alto.

-Olá, Pedro! – disse a moça alegremente.

Pedro, ainda atordoado, não tinha idéia de quem era ela. Fez uma careta de incompreensão e pressa.

-Eu estou com muita pressa e...

-Que é isso! Não tem nem um tempinho pra uma velha amiga? Poxa!

-É que é algo realmente importante – disse ele, tentando desviar conversa e sair correndo. Podia sentir aquelas presenças às suas costas.

-Ah, o que pode ser mais importante?

-Sinto dizer isso, mas não é da sua conta. Agora me de licença, sim?

Empurrou a mulher para um lado e saiu velozmente pelas calçadas. De repente um rosto cinzento e sem vida sumiu para dentro de uma loja. “Droga!” gritou a mente de Pedro “já me passaram! Agora vão me cercar... o que devo fazer oh não! O que fazer?”. “Você teve a sua chance” sua mente ribombou. Eles o queriam fazer parar. Queriam, mas não podiam. Ele iria prosseguir, iria sobreviver. Olhou para os lados rapidamente, uma visão periférica e sem muita razão, e atravessou a rua correndo. Entrou em uma loja de conveniências. O homem atrás do balcão levantou os olhos, mas nada disse. Pedro olhou pela vidraça da loja. Mais dois olhos negros e sem vida se escondiam. Gemeu de pavor. De repente viu-se correndo para trás do balcão e passando por uma porta nos fundos. O atendente tentou gritar qualquer coisa, mas Pedro já percebia que estava cercado por um muro alto. Os fundos eram murados e não havia saída. Virou-se para voltar para a loja, e aporta se trancou subitamente. De repente sentiu um calor no cangote. Uma respiração. Girou nos calcanhares e encarou dois poços profundos e enegrecidos. O tempo não agia nesse instante.

Quando pôde voltar a si, deu um berro e se jogou para trás. O homem à sua frente vestia um terno negro de gravata prateada, camisa branca por baixo. O rosto era branco demais, olhos ofuscados e negros se destacavam na face pálida. Um odor horripilante saltava da boca horrenda.

-O que vocês querem!? – perguntou Pedro nervoso demais.

-Você teve a sua chance – disse o homem, se é que se pode chamar de homem.

Pedro não entendia nada, sua cabeça girava loucamente. Um céu cinza-fosco passava ao fundo. O sol brilhante que fora refletido no cabelo da moça-desconhecida instantes atrás estava escondido agora. Parecia nunca ter existido. De repente a “criatura” se curvou à frente e se atirou contra Pedro. Este, imóvel, não fez mais do que assistir. Pedro no chão, os braços se esfolando contra o chão. O homem cinzento e sem vida o olhava nos olhos; olhos que mostravam muito. Pedro então, olhando nas profundezas negras daquele rosto, tomou compreensão de muita coisa. Passou a se lembrar.

Viu uma criança que ele conhecia, uma menina que teria idade para ser sua filha, correndo pela calçada e de repente fugindo, enquanto os pais desatentos não olhavam, para uma rua bem movimentada. Viu o horror da cena, reviveu seu medo mais terrível. Viu uma mulher esbelta, linda, entrando em estado de depressão pela morte da filha, descobrindo ainda que o marido a traía por uma outra qualquer, que tinha os cabelos louros mais belos que ela já vira. Viu a mesma mulher se matando depois de um tempo, já desgastada pela dor.

E então viu a si mesmo, de joelhos e clamando por forças maiores, derramando-se em lágrimas, enquanto, de alguma forma desconhecida, as duas mulheres que ele mais amou na vida (sua esposa e filha) eram postas novamente no mundo dos vivos. Viu, ao invés de uma continuação, uma fenda, por onde passou para voltar no tempo, corrigir suas atitudes. Mas ele não aprendeu. Em sua segunda chance, mostrou que era mais humano do que se podia imaginar. E como um ser humano qualquer, errou novamente. Envolveu-se com promessas enganadoras e suspeitas, e acabou por ter a família re-assassinada por aqueles que viraram seus inimigos. Agora compreendia tudo. Uma segunda vez fez o ritual, mas algo se revoltou contra ele. Algo que dizia “Você teve a sua chance”, e que continuava repetindo isso. Lembrou-se, então, de estar no quintal de um velho amigo, pois como havia perdido tudo, não lhe restava outra opção. Lembrou-se de ver um suspeito atrás da árvore e cair da rede onde estava deitado, desmaiando no chão. Acordou completamente esquecido de tudo. E estava lá para ser cobrado.

Agora o homem se afastava, ficava novamente de pé e assumia sua postura acusadora. Pedro compreendia tudo agora. Levantou-se calmamente, pôs-se ao lado do homem cinzento, e esse não lhe olhou mais, nem lhe disse nada. Esse era o acerto de contas. O homem começou a andar, e Pedro o seguiu. Foi sempre atrás, até que, antes de se dar conta, ambos desapareciam em pleno ar, sem ninguém à volta perceber qualquer coisa. E não mais retornou para cá.

Pois Pedro teve a sua chance.