O Elevador
A portinhola se abriu com um ruído metálico que fez quebrar o silêncio. Um prato, com uma porção amarelada e gosmenta, e um velho caneco de alumínio cheio de água, deslizaram para dentro do elevador. O rapaz de terno e gravata amarrotados estava encostado no canto quando viu o alimento chegar, e apressou-se:
- Espera! Me tira daqui... – a portinhola foi novamente fechada com um novo estrépito ensurdecedor. – Seu desgraçado! Isso não tem graça! Eu vou te matar, seu filho da puta! Vou te matar! Vou te... – a voz do rapaz começou a falhar, enquanto ele escorregava no canto e sentava no chão, observando a tigela e o copo parados na sua frente.
Houve um grito de agonia e, violentamente, ele tacou a tigela na parede do elevador, fazendo escorrer a gosma que dilatava bolhas. Em seguida ele se levantou cambaleando e chutou a caneca, espirrando água para todos os lados e molhando a barra de suas calças azul-marinho. Estava preso dentro de um elevador. Não sabia por que estavam o prendendo ali. Tudo que se lembrou foi de estar saindo de casa e, ironicamente, ter entrado no elevador do 14° andar. E isso foi tudo. Ninguém. Nenhum vestígio. Nada. Agora estava preso. Os botões, assim como o alarme, não funcionavam. Há quanto tempo estaria ali? Quantas horas? Ele perdeu a noção do tempo, mas visto que o tédio triplica a agonia da espera, não deviam ter passado mais do que alguns minutos. Céus! Se não fosse claustrofóbico, então passaria a ser. Era desesperador ter menos de um metro à frente. A pequena hélice de ventilação girava inocente e agourenta no teto. A forte luz branca intensificava os detalhes da sujeira espalhada pelo chão. As paredes chapadas, sem espelho, brilhavam ao mesmo tempo em que refletiam a fosca imagem do jovem encurralado. Houve um silêncio modorrento, depois um baque estrondoso, seguido por sucessivas pancadas incessantes. O garoto esmurrava a porta do elevador, como se sua vida dependesse não da abertura desta, mas da altura da algazarra que ele produzia. Com os punhos fechados, ele socou as paredes durante horas, ao que estas ficaram ligeiramente amassadas, mas ainda assim intactas. Passados, o que pareceram milênios de prisão, ele, suado e ofegante, chutou com força a porta, tentando a todo custo abri-la, profanando injúrias para o nada. Em vão. As mãos sangrando deixavam manchas nas paredes do elevador. A porta de ferro estava arranhada, ainda com pedaços de unhas inteiras grudadas em meio ao sangue e mingau amarelado, agora seco e áspero. Os braços dele doíam demasiadamente. Tinha a estranha sensação de que havia quebrado. E ao levantar a manga da camisa, para seu horror, deparou-se com a pele fraturada por um osso branco, coberto por uma grossa cartilagem. O sangue jorrando contra a pele.
O urro de dor que ele soltou foi mais alto do que a soma de todas as suas batidas. Ele escorregou no próprio sangue e se encolheu, contorcendo-se. O nariz tocando o chão, empapado de suor. Segurando o braço firme com a outra mão, levou a manga da camisa até a boca, rasgando e enrolando o tecido no braço, tentando inutilmente estancar o rio que jorrava de seu ferimento. Com um novo berro que exalava tortura, apertou o nó o máximo que pode, fechando os olhos e mordendo a camisa com tanta força que sentiu a língua sangrar. Foi quando ouviu uma voz eletrônica soar do interfone de emergência:
- A sua alma está sendo lavada, Sr. Thompson. – anunciou a voz robótica, seguida por um chiado e, então, o silêncio reinou novamente.
- Quem é você? Quem é você, miserável? – gritou Thompson, tentando se por de pé, lutando contra a dor lancinante que consumia seu braço.
Mas não houve resposta. O silêncio reinou nos próximos minutos e nas próximas horas e ao que pareceu um dia inteiro. Sentado no chão imundo, segurando o braço ferido, Thompson foi surpreendido por um novo estalo e outra tigela escorregou pela portinhola. Ele se aproximou e examinou o alimento – uma espécie de pão com água, numa mistura pastosa, enchia a tigela, derramando pelas bordas. Num súbito movimento, que nem ele compreendeu, mas apenas seguiu seu organismo, ele virou a tigela na boca, enchendo-a o máximo possível e engolindo a mistura aos montes. Engasgou e tossiu descontroladamente, a pasta caindo pelo canto dos lábios. Algo revirou seu estômago e ele vomitou toda a mistura de volta no prato, caindo com o rosto dentro da tigela. Agora ele chorava.
- Seu filho da puta! – choramingou ele, num tom que lembrava dor e súplica – Seu maldito!
Aos poucos suas palavras tornaram-se inaudíveis para si mesmo e, ainda com o rosto colado no chão, ele desmaiou – em meio a uma mistura líquida de vômito, sangue e pão.
Os dias se passaram e por diversas outras vezes a portinhola se abriu para liberar – hora uma caneca com água, hora a tigela com o mingau de pão amarelado. A dor no braço só aumentava e, consumido por uma insuportável febre, Thompson não havia falado mais nada desde então. O curto espaço fez-se menor conforme aumentavam o número de tigelas e canecas amontoadas à imundície espessa, que tornava impossível de se respirar. O frio agora congelava cada célula de seu corpo quebrado. A dor se transformou numa espécie de transe funesto, psíquico, surreal... O tédio o consumia por completo. Não o tédio dos homens, o tédio da vida – mas o tédio da morte, o tédio do desespero insuportável. E o silêncio feroz o fazia ouvir o barulho do ar, como a turbina de um avião em decolagem. Do teto se projetavam sombras escuras, ocultas, sem forma ou sentido. Como se asas da morte pairassem suaves e lúgubres, como abutres ávidos pelo banquete, brilhando em um veludo negro e transparente de reflexos prateados, que se alimentavam de sua alma. A porta do elevador se abriu e Thompson, que gemia inconsciente, sentiu o ar lhe invadir os pulmões como se mergulhasse num lago profundo.
- Que sujeira... – soou a voz de uma mulher, formalmente vestida, chutando uma tigela para longe e tapando nariz, enojada.
- Por favor... Me ajude... – disse o rapaz em situação deplorável, estendendo a mão como uma criança em perigo.
A mulher riu.
- Não posso ajudar você... – ela esboçou uma falsa tristeza – Por que eu deveria ajudar você? – ela pôs a mão na cabeça pensativa.
- Por fav...
- Você não ouviu a palavra de Deus, Thompson, não procurou nosso Senhor quando ele precisou de você. Lamento, mas foi muito errado você ter negado Jesus em sua vida. Deus é maravilhoso... – ela abraçou a si mesma, fechando os olhos e sorriu satisfatoriamente como uma psicopata.
Thompson se arrastava para fora do elevador.
- Você trilhou o caminho do Diabo, buscou o que era errado pra sua vida... Eu sempre lhe disse... – Agora ela levava as mãos à boca, chorando lágrimas que não caíam.
- O que diria seu pai quando soubesse disso, Thompson? Sobre você e esse outro rapaz... Com tantas moças bonitas no mundo... O que diria quando soubesse que eu gerei um fruto sujo de Satanás? Oh, Deus, me perdoe, Senhor, me perdoe, meu pai.
As palavras iam o atingindo como facadas perfurando a fratura em seu braço, agora onde pousavam moscas e rastejavam vermes esbranquiçados. Ele continuou tentando se arrastar para fora do elevador.
- Você traiu as leis de Deus, você optou pelo inferno... – continuou ela, se postando de frente pra ele, obstruindo a passagem.
- Por favor...
Ela saiu de dentro do elevador, chutando outra vasilha entranhada de vermes e moscas. Agora seus olhos estavam marejados e seu sorriso apresentava uma leve satisfação.
- O que... O que você sente por aquele rapaz não é amor. Não é. Deus jamais aceitaria isso. Isso é artimanha do Diabo.
- Eu o amo, mãe... – Lágrimas caíram desesperadas de seu rosto, não pela dor física, mas sim pelo o que estava sentindo por dentro.
Thompson se arrastou pela porta, mas ela o chutou de volta para dentro e ele tombou com um urro de dor.
- Você não é meu filho.
Houve um estrépito e a porta do elevador se fechou brutalmente, mergulhando descontrolado aos andares abaixo. Thompson gritou, a luz se apagou e tudo o que ele sentiu foi o mergulho rumo à escuridão, rumo ao destino final - trevas, dor e a inexorável visita da morte.