OS GATOS

Quando cheguei ao escritório, minha secretária parecia meio ansiosa, pois antes mesmo que eu entrasse na sala, ela foi dizendo:

- Doutor, esteve aqui um sujeito que parece meio perturbado e deseja falar com o senhor, com a máxima urgência.

- Bom dia, né dona Júlia.

- Desculpe doutor, é que o sujeito foi tão insistente que eu até me esqueci das boas maneiras.

- Então, quem é afinal essa pessoa que deseja falar comigo?

- Não o conheço, é a primeira vez que eu o vejo.

- Ele adiantou o assunto, do que se trata?

- Não, senhor.

- Está bem, logo que ele retornar, avise-me e depois o mande entrar em minha sala.

- Sim senhor.

Quando entrei, notei que tudo se encontrava nos seus devidos lugares, o ambiente transpirava limpeza e arrumação. Minha secretária, embora às vezes meio afobada, tem o dom do capricho, é muito dedicada ao que faz, especialmente quando se trata de assuntos profissionais.

Sentei-me, peguei o processo que andava analisando, procurando encontrar as falhas do adversário para atacá-lo naquele ponto. Mas, já era a terceira vez que folheava o processo e ainda não havia encontrado nenhum. Eu tinha que encontrar um ponto ou uma vírgula fora do lugar, para atacar ali, naquele ponto.

Estava absorto nestes pensamentos, quando fui interrompido pela secretária que vinha avisar-me, que o misterioso cliente acabava de chegar. Tive que interromper mais uma vez minha pesquisa de erros, sem antes deixar de fazer as anotações de onde eu deveria retornar a folhear o enorme calhamaço de papel.

Quando o “cliente”, entrou em minha sala, olhei-o demoradamente sem esquecer dos atos de boas maneiras e cumprimentá-lo antes mesmo de que ele tomasse assento em uma das cadeiras que se encontravam devidamente arrumadas em frente à mesa.

Ele se apresentou e depois nos sentamos e antes mesmo que eu pudesse perguntar alguma coisa, ele adiantou-se e disse:

- Doutor, o senhor precisa fazer o meu divórcio!

-Tudo bem, senhor Carlos. Mas qual o motivo de tanta afobação?

- São os gatos, doutor!

- Ah! Entendo sua mulher o está traindo com homens mais jovens e bonitos?

- Não, doutor, ela é uma santa, ela nunca me traiu!

- Então por que deseja se separar dela, já que é tão boa pessoa?

- Aí é que estão os problemas, doutor, os gatos de que eu falei, são gatos de verdade e não jovens bonitões que algumas mulheres chamam de “ gatos”.

- Bem, até agora eu já consegui separar os gatos, mas ainda não vejo por que quer se divorciar da esposa simplesmente por causa de algum bichano!

- Pois é doutor! O senhor gosta de gatos, ou tem algum em casa?

- Não. Menti, eu não queria incentivá-lo ao ato de separação, tampouco misturar minha vida familiar com a profissional.

- Então o senhor tem sorte. Respondeu-me.

- Sorte, por não ter gatos? Explique-se melhor para podermos continuar a nossa consulta preliminar.

- Doutor, eu não quero somente fazer uma consulta, eu desejo me divorciar de verdade.

- Tudo bem, talvez eu tenha me expressado mal, mas continue a sua história, por favor.

Ele bebeu um copo de água que a secretária havia trazido, tomou um cafezinho e depois de alguns segundos, respirou fundo e começou a contar a sua história.

“Tudo começou, há mais ou menos quatro anos quando nos casamos. Naquela época nós tínhamos combinado somente ter filhos depois de dois anos de casados, a fim de podermos curtir a vida a dois com mais intensidade e até mesmo nos conhecermos melhor sem a preocupação com crianças. Embora eu e ele adorássemos crianças. Só queríamos adiar a vinda de um filho para solidificarmos mais o nosso relacionamento.”

Ele fez uma pausa e perguntou-me:

- O senhor está seguindo bem minha história?

- Sim, pode continuar que entendi perfeitamente. Ele parecia meio perturbado.

- Então preste bem atenção nesta parte que vou contar agora.

“Um dia, quando andávamos pelo centro da cidade, ao passarmos em frente a um Pet Shop, ela insistiu em entrar, porque segundo ela, era como se fosse um chamado para entrar. Mesmo contrariado com aquela atitude, nada demonstrei e entramos no local, que tinha aquele cheiro característico de locais, onde se vendem vários artigos e rações para animais. Ao entrarmos, ela dirigiu-se diretamente para um canto onde havia algumas gaiolas de arame e parou em frente a uma delas. Dentro desta, havia cinco gatinhos bem pequenos, deitados. Em cima da gaiola num pequeno e tosco cartaz, lia-se que aqueles animais estavam ali para serem doados. Ela, mais que depressa, disse: Meu bem posso levar um? Afinal, ainda não temos filho e poderemos dedicar um pouco de carinho a esta criaturinha linda. E eu respondi: Gato, você quer ter um gato para substituir um filho? Mas, não adiantou, mesmo depois de muita conversa saímos dali carregando uma caixa com um gato dentro, um pacote de cinco quilos de ração própria para gatos, além de outros objetos que ela insistiu em comprar para dar conforto ao animal.”

Ele parou novamente a história e novamente perguntou-me:

- Está entendendo doutor, como eles fazem?

- Eles quem? Perguntei.

- Os donos das lojas de animais. Eles doam os bichos e vendem o que querem para as pessoas, que acham que fizeram um grande negócio por ganhar o animal, sem observar que gastaram para tê-lo.

- Ora, senhor Carlos, não acho que seja esse o motivo para a sua vontade em separar-se da esposa, que diz amar tanto.

- E não é! Logo o senhor vai entender. E continuou sua narrativa.

“Depois daquele dia, ela esfriou um pouco com o nosso relacionamento, pois tudo que mais lhe interessava era o gato que ela havia ganhado. Certa vez a questionei sobre isso e ela disse que eu estava com ciúmes de um simples animal. Na realidade eu estava mesmo, pois o pequeno gato impedia-me de fazer carícias que eu fazia em minha esposa. Ele estava sempre por perto e até parecia que me olhava recriminando-me pelo que eu fazia. Com dois anos de conturbado relacionamento, provocado pelo gato dentro de nossa casa, eu resolvi que iria acabar com aquilo, se pudesse fazê-lo sumir para sempre de nossa casa, de modo que ela nunca desconfiasse que pudesse ser eu o causador do desaparecimento do bichano. Um dia, eu estava conversando com amigos em frente a padaria que fica a mais ou menos dois quarteirões de minha casa, quando vi o gato de minha mulher, passando do outro lado da rua seguindo rumo a um velho galpão abandonado que havia ali perto. Naquele momento sorri de alegria, pensando que chegara o momento de livrar-me em definitivo do meu concorrente. Talvez com o sumiço deste, minha mulher voltasse a relacionar-se melhor comigo e pudéssemos até ter o filho que eu tanto queria, mas que segundo ela ainda deveria demorar, pois o gato lhe preenchia.”

- E aí, doutor, está seguindo meu raciocínio?

- Sim, claro, continue.

“Pois é, quando vi meu inimigo, seguindo rumo ao galpão abandonado que ficava no final da rua, despedi-me dos amigos e inventando uma história, disse que havia esquecido algo no escritório onde eu trabalhava. Fui seguindo o gato de longe, pois não desejava que ele se espantasse e pudesse fugir do destino que eu desejava para ele naquele momento. Ele, o gato, chegou em frente ao galpão e parou. Eu pressentindo que ele pudesse ver-me escondi-me atrás do poste. Ele, depois de alguns segundos olhando para os lados, como se procurasse alguém, entrou sorrateiramente no galpão. Ainda esperei alguns segundos e depois dirigi-me ao local onde eu iria acabar de vez com aquele maldito. Ao aproximar-me do galpão ouvi vozes que vinham de dentro dele. Mesmo chateado por não poder concluir meu intento, aproxime-me bem devagar, procurando não fazer o menor barulho e aproveitando-me da noite que se avizinhava, esgueirei-me porta adentro, tomando cuidado para não ser visto. Agachei-me por traz de uns tambores que havia perto da entrada e quase que cai, tal foi minha surpresa. No fundo do galpão, havia um homem ruivo muito esquisito, em pé, voltado para uma platéia de mais de cem gatos que pareciam ouvir e entender o que ele falava. Ele dizia que estava perto da grande hora deles, pois já havia milhões espalhados pelo mundo todo, apenas aguardando a hora certa para assumir o comando e dominar em definitivo a raça humana, que segundo ele, era uma espécie ultrapassada.”

- Espere! Você veio aqui para brincar comigo, acaso acha que não tenho nada para fazer? Foi o que eu disse quando interrompi o seu relato.

- Doutor, por favor, acabe de escutar o que lhe digo e se achar que sou louco ou coisa parecida, pode fazer comigo o que quiser, chame a polícia ou manda-me para algum hospital para loucos.

- Está bem, mas antes vamos tomar uma água e outro café.

Depois de satisfeito o meu desejo em saborear o café. Ele respirou fundo e reiniciou o relato.

“Ele dizia ainda, que o plano que havia sido elaborado por sua espécie estava funcionando plenamente e que ninguém jamais poderia imaginar que aquele artifício de doação de animais, era apenas um meio de colocar milhares de milhões deles em lares humanos, para que no momento oportuno assumissem em definitivo o controle do planeta. E seguindo dizia; que a forma que eles haviam adotado de gato tinha sido a melhor, por ficar sempre perto, vigiando e poupando energias, já que ninguém lhes exigia contrapartida para mantê-los dentro de casa de forma confortável. Terminando a fala, acrescentou que cada um deles, era um espião infiltrado dentro do campo inimigo e que continuassem assim, sem se denunciar, apenas observando e convivendo da melhor maneira possível com os inimigos. E assim, por mais de meia hora eu ouvi aquela insólita palestra para uma platéia que parecia entender tudo, pois nenhum se mexia. Todos ficavam parados e até pareciam sorrir ao ouvir o preletor. Eu, que tinha ido ao encalço de um inimigo, recuei com medo e sai do galpão o mais rápido possível para não ser visto ou devorado por eles. Saí rapidamente, quase que correndo e fui direto a um bar que havia perto de casa e comecei a beber. Horas depois saí dali meio cambaleando, já que não era muito acostumado com bebida e fui para casa. Ao chegar em casa, minha esposa encontrava-se sentada no sofá com o bichano no colo. Ele pareceu sorrir de forma zombeteira quando me viu naquele estado. Minha esposa, recriminou-me e disse que naquela noite nem chegasse perto dela com aquele bafo-de-onça. Fui dormir no quarto de hospedes e depois desse dia, ela quase que nem olha para mim e tampouco me aceita, sempre alega dor de cabeça ou outro mal estar qualquer. Por outro lado, o gato está sempre ao seu lado, ou passando por entre suas pernas. Quando tento me aproximar, ele se põe em posição de ataque e rosna para afastar-me dela. Acho que a mente dela está sendo dominado por ele, pois tudo que ela faz, só tem como objetivo o animal

Ele interrompeu a narrativa, olhou-me de forma resignada e disse:

- Eu sei doutor, que é difícil acreditar na minha história, mas é a mais pura verdade.

- Olha senhor Carlos, realmente sua história é muito absurda, mesmo assim eu jamais descarto uma possibilidade.

- É exatamente por isso que estou aqui, um amigo disse-me, que o senhor tem a mente aberta e que iria escutar-me e poderia até fazer meu divórcio.

- Senhor Carlos, você tentou falar com sua esposa sobre o assunto do gato?

- Tentar, eu tentei, mas, não adiantou nada, ela disse que eu precisava de um psiquiatra e até chegou a chamar um conhecido da família dela, para me observar. Quando o vi, disfarcei e disse que estava apenas brincando. Eu não queria ser internado como louco e ver os gatos passando por minha janela e sorrindo de meu infortúnio.

- Tudo bem, eu posso até aceitar o seu caso, mas primeiro gostaria de falar com sua esposa, para ver se há possibilidade de uma separação consensual. Pode ser?

- Está bem, anote aí o telefone lá de casa, onde poderá chamá-la para conversar sobre o assunto. Mas por favor, doutor, não fale do assunto dos gatos, senão ela pode não querer separar-se e internar-me num hospício.

Pedi a ele que repassasse o telefone para a secretária e depois que ele saiu, eu a chamei e disse-lhe:

- Júlia, amanhã cedo tente falar com essa mulher e diga-lhe que desejo falar-lhe e marque dia e hora para ela.

- Sim, senhor, pode deixar que resolvo tudo.

Ao fim do dia, após ficar por mais de duas horas analisando o processo, encontrei uma pequena falha que seria o caminho aberto para eu infiltrar na cabeça do juiz o vírus da dúvida e quiçá resolver tudo a favor do meu cliente. Anotei os detalhes, sem esquecer-se de referenciar tudo com os artigos pertinentes. Quando já passava das sete horas da noite, minha secretária veio avisar-me do adiantado da hora.

Disse-lhe que poderia ir embora, mas ela, solícita como sempre, respondeu que somente sairia do escritório depois que eu também me fosse.

Sabendo ser difícil convencer uma mulher do óbvio, resolvi obedecer e levantei-me e fui embora, sem esquecer-se de pegar todas as anotações que havia feito do caso do Carlos. Eu necessitava durante a noite, analisar e rever alguns detalhes que poderiam ter passado despercebidos durante nossa conversa.

Durante a madrugada acordei assustado com o pesadelo que tive. Eu via formas estranhas saindo de dentro dos gatos e entrando nos corpos humanos. Eram como se os gatos estivessem abrigando almas ou espíritos de outros planos para depois se apossarem dos corpos dos humanos. Aqueles que tentavam lutar contra a dominação eram despedaçados, pelos dominados. Achei que havia sido apenas um pesadelo, motivado pela estranha história do futuro cliente.

No dia seguinte bem cedo, ao chegar ao escritório, o cliente já estava lá de novo, embora eu não tivesse marcado horário com ele naquele dia. Eu precisava antes falar com a mulher dele, mas antes que eu lhe falasse sobre isso, ele interrompeu o meu pensamento e disse:

- Doutor, doutor, desculpe estar aqui de novo, antes de o senhor ouvir minha esposa, mas é que eu me esqueci de lhe contar ontem um pequeno detalhe do que eu ouvi daquele ser, que estava no galpão falando para os gatos.

- E o que ele dizia além do que já me contou?

- Ele falava que quando chegasse a hora, eles sairiam de dentro das formas de gatos que ocupavam e iriam entrar nos corpos humanos e todos aqueles que tentasse resistir, seriam destruídos.

Quando ele acabou de falar aquela frase; vi-me de imediato dentro de uma guerra, o pesadelo que eu tivera era exatamente igual ao que Carlos acabara de falar. Mesmo assim, fingi que nada havia acontecido e não dei munição ao pobre coitado, embora estivesse bastante preocupado com a situação, já que a maioria dos sonhos que eu tenho sempre se torna realidade.

Depois que ele saiu, eu tomei uma decisão drástica e nada normal sob o ponto de vista dos defensores dos animais.

A partir daquele dia, eu iria ser além de advogado, um exterminador de gatos. Somente havia uma preocupação, de como fazer, sem despertar suspeitas deles. Os gatos.

20-03-09 - VEM

20-03-09 - VEM

Vanderleis Maia
Enviado por Vanderleis Maia em 01/04/2009
Reeditado em 07/10/2010
Código do texto: T1517262