DILÚVIO DE RANCORES
Chovia torrencialmente a mais de uma hora. Parecia que mais uma vez Deus revoltara-se com a humanidade e num ato estremo de ira incontrolável derramava, agora, sobre a terra um imensurável dilúvio na intenção eminente de exterminar de uma vez por toda com a raça humana.
Relâmpagos rasgavam o céu com raios caindo a todo instante próximo dali, dando-se a impressão que o firmamento desabaria a qualquer momento.
Vitória olhou através da janela e visualizou lá fora as árvores contorcendo-se em um balé alucinante tentando resistir ao ódio implacável da qual se revestira, naquele dia, a mãe natureza. A cortina de água era tão intensa que ela já não conseguia mais enxergar a represa no alto do morro.
Voltou para a sala e olhou mais uma vez para o Ramirez que dormia, como sempre, bêbado sobre o sofá com o rádio ligado no último volume.
Doía-lhe ainda o tapa que ele lhe dera no rosto assim que chegou da cidade. Mais uma vez, sem motivo algum, ele a agredira. Mais uma vez ele lhe batera pelo simples prazer de bater. Era visível a olho nu o ódio que ela nutria por ele. Estavam casados há oito anos e antes disso bem que sua mãe cansou-se de lhe avisar:
----Ele é violento! Todo mundo sabe disso! Livre-se dessa cruz enquanto é tempo!
Porém de nada adiantou a quantidade de conselhos que lhe deram. Infelizmente a paixão falou mais alto que a razão.
Há oito anos vinha suportando tudo aquilo. Nesse tempo todo foram incontáveis as agressões que ela sofrera. Agressões psicológicas inclusive, e essas doíam ainda mais que as agressões físicas. Por sua esterilidade ele vivia chamando-a de traste inútil que não tinha serventia alguma para a humanidade, pois não conseguia gerar um filho.
Estava absorta em seus pensamentos quando o telefone tocou.
----Senhora vitória? --Perguntou-lhe do outro lado alguém em tom apreensivo.
----Pois não! --Respondeu.
----É o comandante da Guarnição do Corpo de Bombeiros que está falando! Você tem que sair daí imediatamente! A represa no alto do morro corre sério risco de desabamento! Ela trincou em algumas partes e com certeza não vai suportar o volume de água que está recebendo!
----E o resto dos moradores? Vocês já avisaram? --Perguntou Vitória preocupada com a irmã que morava um pouco mais acima.
----Já avisamos todo mundo! Peguem a estrada ao norte em sentido contrário a represa, contornem o mirante, e abriguem-se no posto da Aeronáutica no alto do morro! Mas sejam rápidos, por favor!
----Obrigado comandante! Vamos sair daqui o mais rápido possível! --Respondeu Vitória.
----E o seu marido? --Perguntou o comandante.
----Está dormindo, mas já vou acordá-lo!
----Saiam daí rapidamente! Só faltam vocês! --Advertiu mais uma vez o comandante.
----Já estamos indo! Até logo!
Vitória desligou o telefone e foi em direção ao Ramirez para acordá-lo. Ameaçou chacoalhar-lo, porém parou repentinamente a alguns centímetros dele. Passou a mão sobre o rosto que ainda ardia com o tapa que ele lhe dera. Fuzilou-o com os olhos, descarregando sobre ele todo ódio que tinha incrustado dentro de seu coração ferido por todos esses anos de humilhação. Virou-lhe as costas e saiu em direção a um dos carros da família. A chuva parecia ter aumentado ainda mais. Não dava para se ver quase nada a frente do nariz. Ligou o carro e arrancou em disparada pela estrada que a levaria até o posto da Aeronáutica conforme o comandante havia instruído. A visibilidade era mínima, guiava mais por intuição que propriamente pela certeza. Depois de quase meia hora conseguiu finalmente chegar lá em cima. Assustou-se com um barulho parecido com uma explosão. Olhou para trás e observou lá do outro lado a represa vindo abaixo. Era uma visão assustadora. A água descia pelo vale carregando tudo que encontrava pela frente.
Ramirez não conseguiu se salvar. Ele havia voltado com a camioneta para pegar alguns documentos que esquecera na casa, quando a represa se rompeu. Pelo menos foi essa a versão que ela, aos prantos, deu para todo mundo.