A necropsia

E lá estava ela, congelada no freezer aguardando a necropsia. Como alguém poderia ser tão cruel? Era uma pergunta na verdade sem resposta por enquanto. A única coisa que se podia lembrar eram suas pupilas dilatadas, sua agonia instantes antes de morrer e vida que lhe fugiu sem ao menos deixar uma explicação. Ela nem mesmo sabe por que morreu. Talvez nem saiba que morreu e pense estar dormindo e sonhando.

Seu corpo já estava duro do em cima dos bifes, mas ela foi cuidadosamente colocada dentro de muitas sacolas e os bifes não ficaram embaixo, assim logo abaixo dela, eles foram colocados no compartimento inferior para evitar o contato. Ela estava feliz. Bife era sua comida predileta. Mas ela adorava brócolis.

É estranho saber que alguém que você gosta muito está ali. Congelado. Parece bizarro. Um defunto dentro de casa deveria causar uma sensação desagradável, ou até mesmo horripilante, mas não aconteceu assim. Eu estava normal e fui tomar um café da manhã com suco de goiaba. Como é gostoso suco de goiaba. Ouvi na TV que tem 4 vezes mais vitamina C que a laranja e não tem acidez que causa tantos transtornos.

Problemas.

A necropsia não pode acontecer. O corpo estava lá congelado. Comi todos os bifes e o frango.

Não queria que ela perdesse sua beleza, seus olhos profundos e cativantes mexiam comigo todas as vezes em que cruzavam os meus. Muitas vezes, mesmo sem dizer palavra alguma, sua presença me fazia ficar melhor. Ela era linda e eu queria que ficasse assim.

Já sabia o que fazer.

Peguei um saco de lixo grande, que comportasse seu corpo. Comprei um pouco de cimento e fiz uma massa bem forte para secar rápido. Não entendo muito de cimento, mas acho que se tiver mais cimento do que areia vai ficar mais duro e secar mais rápido. Deduzi e assim fiz.

Peguei seu cadáver. Não estava em decomposição. Estava lindo, intacto. Peguei seu cadáver. Não estava em decomposição. Estava lindo, intacto. Coloquei uma madeira embaixo do seu corpo para que suas curvas não denunciassem o conteúdo da embalagem. Coloquei-a dentro do saco de cimento, em cima da madeira. Não ia ficar bom. Resolvi então colocar tijolos sobre a madeira e seu corpo em cima dos tijolos.

Perfeito.

O cimento então ia ficar envolvendo todo o seu corpo. Estava fossilizando-a artificialmente. Fiz a massa antes de tirar o corpo congelado do freezer, de cima dos bifes. Tomei um pouco de água. Tinha enjoado de suco de goiaba. Talvez fosse um pouco de nojo de seu corpo, mas tantas vezes nos deitamos juntos. Até nos machucamos um ao outro, sem querer evidentemente, mesmo assim eu senti um pouco de nojo por deixá-la ali, sobre minha salada.

Chegou a hora.

Coloquei seu corpo sobre os tijolos com muito cuidado. Coloquei o saco encostado no muro. No canto do muro pra fazer um desenho no cimento. Cobri mais ou menos uns 10 centímetros de massa acima de seu corpo.

Um bloco com formato um pouco triangular, parecido com uma gota gigante de cimento hoje enfeita meu jardim.

Um monumento em sua homenagem.

Ninguém sabe que ela está lá. Mas ela está.

Everaldo Robson
Enviado por Everaldo Robson em 22/03/2009
Reeditado em 22/03/2009
Código do texto: T1499943
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