O LIVRO
É inexorável. Chega um momento da vida em que todo ser humano, inevitavelmente, pensa na morte. Pode ser aos 80, aos 60, aos 40, não sei dizer o porquê, mas comigo foi precisamente aos 28 anos.
O meu nome não importa, tampouco o que faço para ganhar meu dinheiro, apenas vou falar de minha obsessão e a que ponto cheguei para realizá-la.
Sempre quis escrever um livro, desde criança, penso que escrever um livro é uma forma de me conciliar com a morte: ela pode me fazer excremento, estrume, mas pelo menos a minha consciência vai perdurar para a eternidade na forma de um singelo livro.
Os planos já estavam feitos: eu criaria uma espécie de “sociedade secreta”, na qual todos os meus filhos guardariam um exemplar do livro num cofre e se encarregariam de fazer o mesmo com os seus filhos e assim sucessivamente. Faria meus filhos jurarem, rogaria-lhes uma praga, voltaria do “além” para perseguí-los se algum ousasse descumprir o pacto. O livro teria que ser lido, guardado e repassado.
Nem sei por que estou falando isto, pois nem filhos tenho ainda... é só uma idéia.
Na verdade quero falar de minha história para escrever um livro, a que ponto cheguei, já falei isto, paciência, só não disse que seria capaz até de matar para escrever meu livro.
O grande problema é que não sou letrado e ganho mal, portanto, se dependesse de mim, nunca realizaria a minha obsessão, sempre tive inveja dos que escrevem e, lá no trabalho, havia o Rui, um filho da puta que já tinha vários livros de poesia publicados – poesia é coisa de veado – mas o Rui haveria de me ajudar.
O único problema é que ele ia morrer. Vamos aos fatos:
O Rui mora sozinho num conjugado quarto e sala, no centro antigo da cidade, quando digo que é veado falo sério (um veadinho que não mexia com ninguém, mas veado, notava o jeito com que me olhava). Nunca gostei de veado, não gostava do Rui.
Cheguei ao apartamento dele por volta das 21:00 da sexta-feira, o veado achava que eu queria dar pra ele – sempre gostei de mulher, uma das poucas convicções de minha vida, tive que fingir uma veadice que me deixou a semana irritado, sempre que passava por Rui sentia que ele estava excitado com o encontro, o filho da puta nem sabia que ia morrer na minha mão, na verdade mataria aquele veado duas vezes, minha raiva ainda não passou.
O apê era charmoso, um quarto e sala bem decorado, com tapetes e quadros, até que contrastava com o prédio decadente, o Rui se esforçava com razão, afinal aquele era o seu abatedouro e eu, pensava ele, a sua presa (não sabia o veado que ia morrer, gosto de pensar nisto, fico com vontade de rir, é engraçado).
Ele já me esperava com um “drink”, me disse que era o “cosmopolitan”, coisa fina, servido em Manhattan (o babaca ficava vendo estas coisas na televisão, aposto que nunca tinha saído do Brasil), a música ao fundo era suave, acho que Djavan. Tomei a bebida, o Rui tentou beijar o meu pescoço, foi a gota d’água, abri o jogo:
“Rui, o negócio é o seguinte: sei que tu escreves, tem livro de poesia, é professor, coisa e tal, vou ser direto contigo, tens até a meia-noite do domingo para me ajudar a escrever meu livro, é simples, vou te falando de minha vida, melhor, do que penso da vida e tu vais escrevendo, tenho umas frases, sabe, quero passar as minhas idéias para o mundo, tenho muito a dizer, acho que o livro vai dar um bom caldo...”
O veado olhou para mim com cara de desdém e disse, como uma bicha louca: “nem morta”, “vá se foder”, “saia de meu apartamento agora senão chamo a polícia”.
Sinceramente, não esperava aquela reação, o mundo anda cada vez menos solidário, é impressionante como as pessoas são egoístas, pensei numa fração de segundo, mas não importa, puxei o meu 38 e fui direto ao ponto: “olha aqui, sua bicha, se você cooperar prometo que não te mato.”
Quero resumir a história, o Rui começou a digitar o meu livro em seu computador, “idéias de um visionário” foi o título que lhe dei (já tinha ouvido esta frase em algum lugar). Passamos 2 dias sem dormir, quando o veado ameaçava desabar, punha-lhe o cano da arma na boca e dizia: “escreve ou morre”.
Falei de um monte de coisas, onde nasci, a minha infância, a primeira trepada, o sentido da vida, mas o fundamental eram os conselhos do livro, aquilo que me tornaria uma referência para as gerações futuras, por exemplo:
“todo menino deve jogar bola, pois é de pequeno que se aprende a conviver com o próximo e o futebol é uma aula de convivência.”
“Devem as crianças ir à missa todo domingo, até os 15 anos, após esta idade estão liberadas para decidir por conta própria, é o livre arbítrio.”
“A idade boa do menino para perder a virgindade é dos 13 aos 15 anos – não deve passar disto, pois pode virar veado.”
“Na primeira vez, procure uma puta, mas uma puta velha, costumam ser mais compreensivas com os iniciantes.”
“O amor tem que ser eterno, se não for eterno, não era amor.”
Quando ditei esta última frase, o veado do Rui me disse que “não valia, pois era de um autor chamado Nelson Rodrigues”, o filho da puta recebeu uma coronhada merecida, me chamou de ladrão.
E assim fui ditando, o livro acabou no domingo, exatamente às 21:00, ainda disse ao Rui: “parabéns, terminou 3 horas antes do prazo, o que significa que tu ganhaste mais 3 horas de vida.”
Atônito, Rui me fitou, olhos cansados, disse: “você prometeu que se eu cooperasse não me mataria...”
Vi uma lágrima caindo do olho do Rui, pobre veado, quase senti pena dele, abri o uísque, disse-lhe: “bebe”.
Bebemos juntos aquela garrafa, o Rui chorava compulsivamente enquanto bebia, falava dos seus planos, que só tinha 40 anos, queria conhecer Paris, não queria morrer agora.
Ouvi em silêncio, respeito os últimos momentos de um homem, mesmo de um veado como o Rui.
Meia-noite, coloquei o silenciador na arma, falei que seria apenas um tiro, que ele não sofreria, etc., balela, não entendo nada dessas coisas.
Matei o Rui, ele ainda ficou estrebuchando no chão, olhando para mim como quem não acreditasse: “a vida é ´non sense´, pensei comigo.”
Peguei as páginas impressas do meu livro, saí do apartamento do Rui, enquanto andava na madrugada úmida tive uma sensação maravilhosa e um prazer indescritível: agora acreditava plenamente que, para ser eterno, eram necessárias duas coisas: escrever um livro e matar alguém.
FIM - 2005