E o realejo diz...

Passando o braço sobre o tampo da mesa, fez com que centenas de pequenos pedaços de papel fossem ao chão, criando uma curta chuva colorida de azul, rosa, verde e amarelo. Com a mesma mão afastou o cabelo empapado da testa e retirou do bolso da calça o motivo de seu desespero: um papelzinho amarelo, igual aos outros que jogara no chão, porém amarrotado e manchado.

– Merda, – balbuciou ao ler a pequenina frase escrita em uma caligrafia tortuosa, mas legível – centenas de frases e você escolheu logo essa pra mim?

Inclinando-se na cadeira sob a sua proeminente barriga, cultivada à base de muita cerveja às sextas e uma vida sedentária de mais de vinte anos por detrás daquela mesa atendendo ao público. Olhou para os papéis coloridos desordenados à sua frente. Estava incrédulo.

“O grande amor de sua vida chegará até o término desta semana.”

“A fortuna ronda sua porta. Para abri-la sorria para seus colegas de trabalho.”

“Uma proposta pequena surgirá. Aceite, pois lhe trará uma nova fonte de renda.”

– Tantas coisas boas, – passou a mão livre sobre a calva úmida e depois alargou o nó da gravata barata – só coisas boas... – completou, sentindo o pequeno periquito se debater entre seus dedos – e você me sacaneia desse jeito. Eu não queria mudar de vida.

O bichinho soltou um muxoxo, como se entendesse o que lhe era dito.

O papel que Osvaldo mantinha entre os dedos foi colocado sobre a mesa, próximo à coronha do revólver.

– Sabe quanto tempo eu tenho aqui na repartição? Vinte. Vinte anos. – O periquito voltou a se mexer tentando bicar a mão que o segurava, arranhando as crostas de sangue que a recobriam. – Vinte anos atrás dessa mesa. Vinte anos felizes que por mim virariam trinta, quarenta, sei lá. Pela Sagrada Família... – a mão espalmada se chocou contra o tampo da mesa com um grande estrondo – ...eu não podia ser afastado. Compreende? Amo este trabalho, ele era a minha vida.

O periquitinho tremia e Osvaldo sentia o pequenino coração trepidar entre seus dedos. Não sentia pena, afinal foi essa criaturinha quem acabara com sua vida, não foi? Foi ela quem tirou aquele papel do realejo e decretara a sua sorte, não foi? Olhando em volta, viu que o papel caíra no chão, misturando-se aos outros. Tentou identificá-lo, mas desistiu, dando de ombros e concentrando-se em apanhar a arma e encostá-la na têmpora direita. Girando os olhos ao redor, viu os corpos de seus antigos colegas espalhados pela sala. Gostava deles. Pretendia trabalhar com eles até que a aposentadoria chegasse, mas agora era tarde. Havia sido exonerado por desviar uma mixaria da verba. Dinheiro de pinga. Quase esmola, segundo seu entender.

O som das sirenes o fez lembrar que não deveria ter matado o velho do realejo. O corpo na rua, caído bem na esquina decerto chamou muita atenção. Certamente viram quando atirou no velho, apanhou o periquito e todos os papéis da caixinha da sorte. E pelo jeito viram quando entrou no prédio. Por que tinha que haver tanta gente dedo-duro no mundo? Na verdade, nem queria matar o velho, realmente fora obrigado.

– Mas ele não me deixou pegar você! – Disse, aproximando o pequeno pássaro do rosto. – Eu queria apenas arrancar a sua cabeça, mas ele não deixou. Agora veja no que deu. – Uma risada histérica saiu de sua boca, tão trêmula quanto o seu dedo sobre o gatilho da arma. – Fui exonerado. Demitido. Mandado às favas. Bem, foi o destino.

Ele apanhou a arma e deu uma gargalhada que certamente fora ouvida da rua.

Após o som do disparo, os policiais arrombaram a porta. Lá dentro encontraram oito vítimas, todas baleadas. Nove corpos, contando com o do suicida caído sobre o tampo da mesa com metade do cérebro fora do lugar. Apenas mortos na sala, exceto por um pequenino periquito que os policiais, assombrados, viram voar até o chão, apanhar um pequeno cartãozinho amarelo, que depositou entre os dedos do homem morto antes de sair pela janela aberta. Um dos homens se aproximou e apanhou o papel.

“Uma dispensa repentina de seu trabalho lhe trará novos ares. Aproveite e isso mudará completamente sua vida.”

Fim.

Richard Diegues é escritor, autor do livro "Magia - Tomo I", colaborador dos sites "Círculo de Crônicas" (www.circulodecronicas.com) e co-editor do NecroZine (www.necrozine.blogspot.com). Faça uma visita de cortesia e aprecie muitos outros trabalhos em ambas as páginas. Este Texto foi escrito especialmente par o NecroZine #1.

Richard Diegues
Enviado por Richard Diegues em 04/05/2005
Código do texto: T14653