Do outro lado do espelho
Do outro lado do espelho
Ivan Ferretti Machado
Há quarenta anos que o casarão encontrava-se abandonada. Seu pai sumira misteriosamente em uma manhã de primavera e desde então sua mãe foi morar com ela. Simplesmente optaram por largar a casa jogada as traças por todos estes anos. Sua mãe, sistemática como sempre, assim que se mudou dali não admitiu que nem uma outra pessoa fosse morar naquele lugar. Na época, Luiza, com apenas vinte e cinco anos, havia se casado há pouco tempo com o Antenor. Foi uma barra para ele agüentar a sogra. Ela, além de sistemática e fofoqueira, gostava de mandar em todo mundo. Com certeza seu marido havia sumido por não aguentá-la mais. Ela era simplesmente insuportável, e a Luiza era a cópia fiel de sua mãe. Sem por e sem tirar. Nesses quarenta e poucos anos vivendo com aquela jararaca, só Deus sabe o inferno que ele passou. Talvez até por ruindade não conseguira gerar nenhum filho.
Antenor dava graças a Deus pela sogra ter morrido há mais ou menos uns quinze anos.
----Já foi tarde! A filha bem que poderia ter ido junto também!-Dizia ele aos amigos algumas vezes.
----Esse inútil bem que poderia morrer e me deixar livre para arranjar outro! -Dizia ela as amigas todas às vezes.
O casarão encontrava-se em estado deplorável. Todo madeiramento encontrava-se infestado de cupins, sentenciando-o a desabar a qualquer momento. Subiram por uma escada que os levaram até o sótão. A Luiza não parava de reclamar um só segundo, como se todo aquele pó e todas aquelas teias de aranhas estivessem ali por culpa do Antenor. Alias era o que ela mais gostava de fazer; por a culpa no Antenor.
----Homem froixo e incompetente! -Gritava ela, pouco se importando com quem estivesse próximo.
----Calma benzinho! -Pedia ele sem nunca se alterar.
O Antenor, coitado, não tinha boca para nada. Se existisse santo, ali estava um. Homem educado, prestativo, honesto e trabalhador.
---- Fazer o quê? Essa é a minha cruz! Se Deus me deu essa missão, vou cumpri-la até o fim da minha vida! -È o que respondia quando os amigos o aconselhavam a dar um pontapé no traseiro dela e depois mandá-la embora.
----Coitado? Se você está com dó leva ele pra sua casa! Pelo menos você me livra desse estorvo! -Respondia ela quando alguma amiga se penalizava do pobre Antenor.
Antenor estava agora com sessenta e oito anos e a Luiza com sessenta e cinco. Tanto ele como ela já não carregavam mais os belos traços da juventude que há muito ficaram para trás, principalmente a Luiza que deixou o pobre Antenor de beiço caído quando há viu pela primeira vez.
----Minha Nossa Senhora Caropita! Essa é a mulher dos meus sonhos! Ela tem a formosura de uma princesa. -Cochichou ele ao seu primo Anielo, em uma festa ali no bairro do bexiga
----Meu São Genaro! Quem é aquele príncipe encantado que está ali com o Anielo! -Perguntou ela para a sua prima Carmela.
E assim começou a martírio do pobre Antenor. Que de amor a primeira vista, com o tempo, acabou por se tornar em ódio a se perder de vista.
----Meu Deus do Céu... Para de levantar poeira! Não sabe andar sem arrastar essa merda desse pé! -Gritou ela com o Antenor.
----Desculpa Lu! Foi sem querer! -Respondeu ele com toda calma do mundo.
Vasculharam tudo a procura de alguma coisa de valor. Além daqueles móveis antigos, já sem nenhuma utilidade, nada mais de importante havia por ali. Ao canto, lá nos fundos, algo chamou a atenção do Antenor. Um enorme lençol branco cobria alguma coisa. Foi até lá e puxou o lençol. Era um espelho com o madeiramento todo de jacarandá, com desenhos dourados em todo seu entorno. Realmente era muito bonito. Entre a base que era toda trabalhada em detalhes artesanais e mais o espelho, encravado em seu interior, atingia mais ou menos uns dois metros de altura.
----Vamos levá-lo! -Ordenou ela.
----Vou ter que buscar ajuda! Parece ser pesado! -Argumentou o pobre do Antenor.
----Ô homem froixo... Imprestável! Não consegue fazer nada sozinho! -Gritou ela.
O Antenor apenas baixou a cabeça e achou por melhor obedecê-la. Firmou uma das mãos na moldura de madeira e quando tentou apoiar a outra no espelho quase caiu sentado, misteriosamente a sua mão atravessou o vidro, fazendo com que ele perdesse o equilíbrio.
----Que foi isso? -Perguntou Luiza com os olhos arregalados, pois ela também viu e perfeitamente o braço do Antenor sumir quase por completo através do espelho.
----Sei lá! O meu braço atravessou para o outro lado! Deve estar quebrado! Respondeu ele.
Luiza aproximou-se curiosa e colocou um dos dedos sobre a base do espelho e o forçou. Seu dedo simplesmente desapareceu. Ela resolveu continuar a experiência e introduziu também o braço. Depois puxou-o rapidamente de volta, talvez, com medo de perdê-lo. Seus olhos brilharam intensamente. Um brilho que só ocorria quando ela tramava algo diabólico para tirar proveito de alguém ou de alguma coisa, e o Antenor conhecia muito bem aquilo. Luiza, de imediato, pensou que talvez pudessem ganhar muito dinheiro com aquele objeto. Pegou uma banqueta que estava ao lado deles, amarrou-a com o lençol e a jogou sobre o espelho. Ela simplesmente desapareceu. Depois puxou lentamente e a trouxe de volta.
----Vem cá! -chamou ela.
Assim que o Antenor se aproximou, ela o amarrou ao lençol e pediu que ele atravessasse o espelho para ver o que tinha do outro lado.
----Eu??? -Gaguejou o pobre Antenor.
----Larga mão de ser covarde homem! Você não viu que eu joguei a banqueta e depois a trouxe de volta! Não tem perigo algum não!
----E se não der certo? -Perguntou Antenor, com os olhos arregalados.
----Deixa de ser cagão! -Gritou Luiza empurrando o pobre Antenor para dentro do espelho.
O coitado desapareceu por completo. A Luiza esperou um pouco e depois o puxou de volta.
----Tem alguma coisa do outro lado? -Perguntou a Luiza.
----Tem outro casarão igual a este. Só que do outro lado está tudo novinho em folha.
A Luiza não teve dúvidas, pegou o Antenor pelos braços e juntos atravessaram novamente o espelho. Saíram em uma enorme sala onde ela correu os olhos em volta por alguns minutos olhando objeto por objeto, sem que nada escapasse as suas observações. Os seus olhos brilhavam fascinados, recordou de imediato que ali passara toda a sua infância junto com os irmãos e os pais. Tudo estava do mesmo jeito. Parecia ter voltado no tempo. Tomou um susto tremendo quando olhou para o Antenor. O mesmo aconteceu com ele, que ficou ali petrificado olhando para a Luiza como se não acreditasse no que estava vendo. Em pé, diante dele, encontrava-se, agora, alguém que ele conhecera há quarenta anos atrás. Linda, jovem e formosa. A sua Luiza, por quem se apaixonara perdidamente desde o primeiro momento que a viu.
----Antenor?
----Luiza?
Nem um, nem outro, conseguia acreditar no que estavam vendo. Como em um passe de mágica retornaram a juventude corporal de quarenta anos atrás. Antenor tentou puxar a Luiza para junto de si, como fizera no primeiro dia em que a pedira em namoro. A Luiza, porém o rejeitou, empurrando-o com uma das mãos.
----Para com isso Antenor! Já estou cansada de te dizer que não sinto mais nada por você! Eu devia estar enfeitiçada quando aceitei o seu pedido de casamento!
Antenor retrocedeu, amargando por dentro um sentimento terrível de mágoa e de ódio por todos estes anos de humilhação que sofrera por parte da esposa, há quem um dia jurara amar eternamente. Afastou-se e sentou em uma poltrona próxima a lareira, enquanto ela explorava o casarão, completamente embriagada diante de tudo aquilo que revia depois de terem se passado mais de quarenta anos. De repente a enorme porta da sala se abriu e outro jovem adentrou-se por ela. Parou por alguns segundos diante deles, demonstrando surpresa ao vê-los ali. Aproximou-se vagarosamente da Luiza, com os olhos arregalados, como se a conhecesse de algum lugar.
----Vitória? -Indagou ele boquiaberto.
Luiza, sem entender direito o que estava acontecendo permaneceu calada tentando lembrar-se de onde conhecia aquele jovem. Quase desfalecendo conseguiu balbuciar algo.
----Papai?
Luiza aproximou-se daquele moço que de relance trouxe-lhe a imagem quase sumida de seu pai, que desapareça quando sua mãe ainda era viva. È claro que sua aparência era bem mais jovem, porém seus traços fisionômicos eram de uma semelhança incrível, inclusive a cicatriz um pouco acima do olho esquerdo, produzido pela queda de um cavalo, quando em um final de semana foram passear no sítio dos avós.
----Eu não acredito! È você Vitória? -Perguntou ele novamente.
----Não, meu nome é Luiza! Vitória era minha mãe!
----Meu Deus como você se parece com a Vitória! Quer dizer você sempre se pareceu de mais com ela! -Argumentou o rapaz.
Antenor que apenas observava a tudo aquilo passivamente, de imediato percebeu o que estava acontecendo e aproximou-se deles.
----Você é o Vicente? -Perguntou.
----Sim sou eu mesmo! Pelo jeito vocês descobriram o portal que nos trás a este mundo!
A Luiza como sempre, prepotente igual à mãe, não perdeu a oportunidade de tecer críticas a atitude do pai, por ter sumido durante todos esses anos sem se quer dar a mínima pela família. Vicente tentou se defender.
----Quando vim para cá, você e seus dois irmãos já estavam bem criados e bem casados. Além do mais deixei uma pequena fortuna e o casarão para que sua mãe se virasse. Não havia mais motivos para eu suportar as humilhações que sua mãe me empunha.
----Na verdade o senhor foi um covarde! Abandonou as suas responsabilidades de chefe de família para viver livremente do lado de cá! -Respondeu a Luiza, em tom ameaçador, fazendo com que Vicente sentisse a alma estremecer, trazendo-lhe de volta a sensação de estar novamente diante da insuportável Vitória, de quem há quarenta anos atrás conseguira se libertar.
Antenor tentou acalmar os ânimos, pois se é que conhecia bem a Luiza, não demoraria muito para a conversa terminar em briga.
----Eu acho que esse não é o momento de se lavar roupas sujas. Na verdade eu estou curioso é para saber o que está acontecendo. Primeiro descobrimos este espelho que nos trouxe para cá, depois, o mais intrigante nisso tudo, é que uma pessoa igual ao senhor, que já deve estar com quase noventa anos, de repente o encontramos aqui com seus no máximo vinte e cinco.
Vicente sorriu diante da perplexicidade do Antenor.
----Me deixa explicar para vocês. Esse espelho eu comprei em uma loja de móveis usados. A princípio não notei nada de anormal nele. Porém se prestarem atenção, verão que aqui no meio tem uma trava que funciona como um eixo rotatório. É só empurrar que o espelho vira de ponta cabeça. Eu o havia largado no sótão e já nem me lembrava mais dele, até que certo dia resolvi mexer lá em cima e percebi que ele estava todo empoeirado. Deitei-o sobre uma mesa e comecei a limpá-lo e na hora de pô-lo novamente em pé eu destravei o dispositivo sem perceber e ele girou com a parte de cima vindo para baixo e foi ai que descobri o segredo. Ele tem o lado certo para abrir o portal. Se girarmos ele ao contrário o portal se fechará.
----Então quando nós o encontramos, hoje, ele estava na posição correta? Perguntou o Antenor.
----Por pura coincidência! Pois ontem eu resolvi limpá-lo e esqueci-me de travar o portal. Quando ele é travado do lado de cá a passagem se fecha e só abre com a minha permissão.
----E o que você me explica desse rejuvenescimento? -Perguntou a Luiza.
----Isso é algo que eu não sei como explicar, pois logo que cheguei aqui me percebi jovem, e assim como todo mundo continuo da mesma maneira até hoje. Aqui ninguém envelhece e ninguém morre. Nada muda. A mesma roupa, os mesmos móveis, a mesma casa, e todos os mesmos, que você puder imaginar, vai ser assim enquanto este mundo existir.
----E como você se sente aqui? -Perguntou Antenor.
----Maravilhosamente bem! Aqui não existem doenças, não existem guerras, não existe fome! Tudo aqui é perfeito! Só que tem um porém, quando você volta para o outro lado, todas as maravilhas que encontramos por aqui não te acompanham para o mundo real, você as deixa de possuir, inclusive a juventude.
----Então quer dize que se você voltar para o mundo real os seus noventa anos de idade lhe será devolvido? -Perguntou a Luiza.
----Sim! E com certeza em poucas semanas eu morreria, pois além de eu ter de volta a minha idade real, junto viriam também todas as doenças que deixei do lado de lá.
Luiza caminhou até outro espelho pendurado a um canto da sala e, vaidosa como sempre, pôs-se a admirar toda a sua beleza que os deuses daquele mundo encantado lhe haviam restituído.
----E se eu não quiser voltar mais para lá? -Perguntou ela.
----Você é dona do seu destino. Aqui ninguém obriga ninguém a fazer o que não quer. -Explicou-lhe o Vicente.
----Pois se é assim já está decidido, eu vou ficar! -Respondeu Luiza.
Antenor ainda querendo saber mais sobre tudo aquilo, perguntou para o Vicente:
----E se de repente do lado de lá alguém quebrar o espelho, o que pode acontecer?
----Com certeza a passagem deixará de existir, e com isso ninguém mais entra e ninguém mais sai.
----E quais serão as conseqüências para este mundo?
----Nenhuma. O espelho é apenas uma passagem. Esse mundo sempre existiu e sempre existirá, ele é completamente independente do espelho.
----E você não sente vontade de voltar para o mundo real?
----De maneira alguma. Estou aqui há mais de quarenta anos. Já reconstitui uma nova família, formei um novo ciclo de amizade com pessoas simplesmente maravilhosas, e possuo um cargo de grande prestigio neste mundo. Não me prendo a mais nenhum tipo de vinculo com o outro lado. E além do mais pouco tempo de vida eu teria no mundo real onde eu seria apenas um mísero e abandonado ancião.
----E quanto à moradia? Teremos que trabalhar para conseguir uma? -Perguntou a Luiza.
----È claro que não! A sua casa do mundo real está lá fora no mesmo lugar, é só sair por aquela porta e você verá que o mundo material que você deixou do outro lado também se faz presente aqui neste mundo. -Explicou-lhe o Vicente.
----Você poderia nos mostrar toda essa maravilha? -Solicitou-lhe a Luiza.
----Com certeza. Será um prazer mostrar-lhe todas as belezas que temos do lado de cá.
----Vamos Antenor! -Ordenou ela.
Como sempre ela nunca pedia nada ao Antenor, ela sempre ordenava. E o Antenor, coitado, como se fosse um carneirinho obedecia sem nunca reclamar. Porém desta vez ele resolveu tomar uma outra postura. Ficou ali parado e apenas balançou a cabeça negativamente.
----Não eu não vou! -Respondeu ele.
----Você está ficando besta? Não vai me dizer que está querendo voltar para o outro lado? -Gritou a Luiza.
----È isso ai. Eu vou voltar para o outro lado. Lá é o meu lugar. Lá eu tenho os meus amigos, os meus compromissos e todas as minhas obrigações com o Deus pai criador. O que eu tiver que passar, de bem ou de mal, lá será o meu palco de encenação. Se você quiser ficar pode ficar.
----Homem froixo, medroso! Se quiser voltar pode voltar. Você agora não me fará falta alguma mesmo! Vai... Some da minha frente seu verme inútil! Gritou a Luiza, tomada mais uma vez por uma de suas crises de histeria.
Antenor estendeu a mão para o Vicente e despediu-se dele.
----Você tem certeza que é essa a decisão que pretende tomar? -Perguntou-lhe Vicente.
----sim, tenho certeza.
----E você Luiza? Pretendo ficar mesmo? -Perguntou também a ela o Vicente.
----Com certeza! Não tenho compromisso algum do outro lado! Não tenho filhos, não tenho mãe e nem tenho mais irmãos, que já morreram. Amigas, tenho uma meia dúzia, e pouco estou me lixando com elas!
O Vicente abraçou fortemente o Antenor e desejou-lhe boa sorte. A Luiza cruzou os braços e virou as costas não lhe dando a mínima atenção. Ele caminhou rapidamente em direção ao espelho e atravessou para o outro lado. Permaneceu ali estático por alguns segundos olhando fixamente para o portal indagando a si próprio se tinha tomado a decisão correta ou não.
----Sim é isso mesmo! Livrei-me de viver eternamente sendo humilhado por essa maldita mulher! Agora sim serei o homem mais feliz do mundo!
E para ter certeza de que realmente havia se livrado da Luiza, girou o espelho, fazendo com que a parte de cima viesse para baixo, fechando assim a passagem. Passou a mão na banqueta que ainda estava ali, aproximou-se do espelhou e desferiu-lhe um golpe bem ao meio, despedaçando-o em mil pedaços, selando para sempre a passagem por onde a Luiza sabe-se Deus, como não conseguia conviver em paz com ninguém, de repente resolvesse voltar.