O PAI

De longe, o som do motor anunciava a visita inoportuna. O velho estranhou, principalmente por causa do horário. Já passava das onze e como de costume, ele já estava na cama, dedicado à leitura de mais um romance, antes que o sono ficasse insuportável. Há muito tempo a sua rotina era a mesma: o dia inteiro no sítio, a meia dúzia de galinhas, os três porcos, as refeições que ele mesmo preparava, uma ou outra bobagem na máquina de escrever e os romances. Dezenas deles, amontoados pela casa, espalhados pelos cantos numa biblioteca anárquica. Poderia se dizer que seria impossível localizar algum título naquela esbórnia, mas o velho sabia exatamente onde estava qualquer um dos seus livros, mesmo aqueles que ele jamais havia lido, e que não eram poucos.

O som do automóvel era familiar. O caquético Volkswagem do único filho. O filho que era um dos poucos elos de ligação do velho com o mundo exterior. O banco, o supermercado e as livrarias eram as únicas instituições ainda toleradas depois de duas lojas falidas, um casamento desfeito e dezenas de internações pra se livrar do vício da bebida. Agora, ele tinha uma garrafa de uísque para o porre final. Há dez anos não bebia, mas o Red Label estava guardado como um troféu no fundo da gaveta da cômoda, atrás das cuecas. O velho sabia que seu fígado já tinha idos pras cucuias e que um único copo bastaria pro porre monumental. Na sua idade, não teria mais forças pra parar. A garrafa de uísque seria a última. Morreria do porre e não de doença e ter o aparente controle do seu próprio fim significava pro velho uma espécie de consolo pra essa coisa chata que é o final da vida.

A saúde ia bem, surpreendentemente, apesar dos excessos cometidos. Nos últimos anos, ele simplesmente havia se isolado. Quando a mãe morreu, lhe deixou a pensão e o sítio. A solidão não incomodava. Tinha convivido demais com gente demais e pensava consigo: “Pelo menos aqui não encho o saco de ninguém!”. O filho era a sua única preocupação eventual. Longos períodos sem receber uma visita ou um telefonema, mas quando isso acontecia, invariavelmente as notícias não eram boas. A última ligação veio da delegacia. O filho tava preso por furto e não era a primeira vez. O velho foi até lá, pagou a fiança, tentou um abraço desajeitado. O filho retribuiu com um tapinha nas costas e saiu andando. A mãe tinha morrido faz tempo e agora ele só tinha o pai no mundo. O que não era grande coisa pra nenhum dos dois.

Agora o filho estava ali, no meio da noite, no velho sítio que ele raramente visitava. Suando em bicas, num olhar que era um misto de desespero e desconsolo. O velho apareceu na soleira da porta. O filho simplesmente disse:

-Eu matei um cara, pai. Ele mereceu.

E abrindo o porta-mala do carro, revelou o cadáver. O velho não disse nada. Maquinalmente foi até o quarto dos fundos e pegou duas pás. Durante quarenta minutos, os dois cavaram a cova rasa sem que nada fosse dito um para o outro. Depois do enterro, o filho deu um novo tapinha nas costas suadas do pai, entrou no carro e desapareceu na escuridão.

O velho tirou as roupas enlameadas e entrou no chuveiro. Depois do banho, vestiu o pijama, deitou-se na cama e pegou o romance. Leu duas páginas, deu um bocejo e deixou o livro de lado. Olhando o vazio, pensou no Red Label. E depois de calçar os chinelos, foi até a cozinha pegar o copo.

Leonardo de Faria Cortez
Enviado por Leonardo de Faria Cortez em 14/02/2009
Código do texto: T1439026
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