O SANTO TRAPACEIRO

O Genésio era aquele tipo de pessoa que desde criança sempre gostou de aprontar. Armava as suas presepadas e depois se rachava de rir vendo o resultado das danuras, que muitas vezes terminava em coisas nada agradáveis.

Mas o que ele estava querendo fazer agora, ultrapassava um pouco, ou bastante, sei lá, as raias dos limites do que se pode, e do que não se pode.

Encontrara no meio da rua um talão de cheques, com uma folha ainda em branco. E não sei de onde ele tirou a idéia de aprontar uma brincadeira com o Padre Guerino.

Como bom samaritano, que na verdade nunca o fora, iria fazer uma vultosa doação para a “Santa Igreja Católica”.

—Sê tá ficando doido Genésio! Fazer esse tipo de brincadeira é total falta de responsabilidade. Pelo jeito você tá querendo ir pro inferno quando morrer.

—Que nada Zezão! É só uma brincadeirinha! Deus perdoa a gente!

—Perdoa uma ova! Isso é brincadeira de mau gosto e eu não quero participar disso não! Essa porra pode dar até cadeia.

—Larga mão de ser bunda mole, Zezão. Depois eu digo pro Padre Guerino que a gente estava só brincando.

—Que é isso Genésio! Você chama isso de brincadeira? Pra mim você deve tá ficando é xarope!

Por mais que o Zezão tentasse, não conseguiu impedir que o Genésio pusesse em prática o seu plano, que, diga-se de passagem, de um mau gosto terrível. Brincar com as pessoas, desde que não se firam sentimentos, é algo totalmente aceitável. Porém quando se invade as delimitações que separam as fronteiras entre o tolerável e o intolerável, as cicatrizes deixadas por certos tipos de brincadeiras, às vezes perduram por toda uma vida. E aquilo que o Genésio estava querendo fazer era exatamente tudo isso. Puro sadismo.

—Bom dia Padre Guerino!

—Oi Genésio! Bom dia! Que bons ventos o trazem até a esta humilde moradia?

Genésio olhou para os lados como se estivesse certificando-se de que ninguém os observava. Puro fingimento.

—Padre Guerino... A gente pode entrar?

—É claro! Você é da casa! Nem precisa pedir!

Padre Guerino passou os braços sobre o ombro do Genésio e o levou até a secretaria da paróquia.

—Mas afinal de contas, que mistério é esse que exige tanto segredo?

Genésio tirou do bolso da camisa o cheque que estava dobrado em dois.

—O segredo está aqui neste pequeno pedaço de papel.

Esticou o braço e entregou o cheque ao Padre Guerino. O coitado quase teve um chilique ao ver o valor.

—Duzentos mil?!!!

—Fala baixo! O senhor tá querendo que o bairro inteiro fique sabendo?

O Padre Guerino colocou os óculos que estava pendurado ao pescoço, para certificar-se de que, realmente, era aquilo que havia lido.

—Pelo amor do Pai Santíssimo, onde foi que você arrumou isto?

—Olha Padre Guerino, eu vou contar para o senhor, mas é um segredo que ninguém pode saber. É que com essa onda de seqüestro todo cuidado é pouco.

—Mas o que foi? Você acertou na loteria?

—É exatamente isso! Peguei uma baita bolada! Nunca mais vou precisar trabalhar!

Padre Guerino se conteve para não dar risada da cara de pau do Genésio. Pois pelo que era do seu conhecimento o pilantra nunca trabalhou na vida.

—Deus seja louvado. E que ele te ilumine para que faça bom uso de todo esse dinheiro que ganhastes.

—Obrigado Padre Guerino. Esse cheque que eu estou doando para a igreja é para que vocês possam comprar um terreno para construção da creche.

Padre Guerino levantou-se e puxou o Genésio num abraço tão forte que quase lhe quebrou ao meio. Uma lágrima de terna felicidade rolou pelo rosto do pobre padre que aos poucos foi se transformando num choro compulsivo. O seu sonho, quase impossível, finalmente poderia ser realizado. A construção de uma creche para as crianças pobres do bairro.

—Obrigado meu filho. Que Deus te abençoe e te ilumine por toda sua existência.

—Não estou fazendo nada de mais Padre Guerino. Apenas estou fazendo o meu papel de bom cristão. Eu só gostaria de pedir um favor ao senhor!

----Pode pedir! Se estiver ao meu alcance com certeza eu o farei!

----Não é nada de mais! È que... se alguém ver o cheque e perguntar se é meu, o senhor diz que esse Genésio é outra pessoa. Caso contrário vai ser um tal de todo mundo ir atrás de mim para pedir dinheiro emprestado que vou acabar perdendo o sossego.

----Pode ficar tranqüilo! Eu não digo nada prá ninguém!

O Padre Guerino abraçou novamente o Genésio, abençoando-o em nome de todos os santos que lhe veio à cabeça naquele momento. Depois pegou o cheque e com todo cuidado do mundo guardou-o no cofre da tesouraria da igreja e o trancou a sete chaves.

Conversaram por mais alguns minutos e antes de ir embora o Padre Guerino o abençoou por mais umas três vezes, prometendo que rezaria por ele todas as noites até os últimos minutos de sua vida.

E o destino que é danado igual menino, se incumbiu de armar todo resto dessa inconseqüente trama.

Naquele mesmo dia, no finzinho da tarde, por uma incrível coincidência, o Doutor Gustavo resolveu fazer uma visita ao Padre Guerino.

—Doutor Gustavo! Que coincidência maravilhosa! Eu estava pensando em passar na sua casa ainda esta noite para resolvermos um assunto de suma importância.

—É sobre o terreno Padre Guerino?

—Exatamente! É sobre isso mesmo que eu quero conversar com você.

—A proposta ainda está de pé. Ele vale uns duzentos e cinqüenta mil. Porém como é para uma nobre causa, conforme o senhor me expôs noutro dia, e levando em conta a enorme consideração que tenho pelo senhor e pela Santa Igreja Católica, eu vendo o imóvel por cento e cinqüenta.

O padre Guerino apanhou o cheque que estava no cofre e mostrou para o Doutor Gustavo. Até mesmo ele que era montado na grana se surpreendeu com aquela quantia.

—Caramba Padre Guerino! Onde o senhor conseguiu todo esse dinheiro? Apesar de não ser da minha conta!

—Foi uma doação e a pessoa pediu pra guardar segredo.

O Doutor Gustavo olhou o nome do emitente.

---- È do Genésio? O senhor tá querendo gozar com a minha cara Padre Guerino? --Perguntou o Doutor Gustavo, surpreso ao ler o nome do dono do cheque.

---- Calma Doutor Gustavo! Esse Genésio é outro! Esse ai é um conhecido meu que mora lá em São Caetano do sul, no ABC.

—Bom, Padre Guerino, eu pouco me importo com isso. O que me interessa é vender o terreno.

—Tá certo, o senhor quer vender e eu quero comprar. Gostaria de amanhã mesmo fechar o negócio.

Enquanto combinavam a venda do imóvel o Padre Guerino ofereceu um café para o Doutor Gustavo. Entre um gole e outro o Doutor foi explicando ao Padre Guerino como deveria ser feita a negociação.

—Bom, como eu ia lhe dizendo... Devido aos desacertos entre eu e minha esposa, esse imóvel eu comprei, já há algum tempo, em nome de outra pessoa... O senhor entende como é que são essas coisas, né?

—Entendo sim Doutor Gustavo. Vocês são casados com comunhão de bens, e se o terreno estivesse em seu nome ela teria direito a metade do dinheiro. Correto?

—É isso ai. Ninguém sabe que eu tenho esse imóvel. Mas isso não vem ao caso. Só estou explicando para que talvez o senhor não pense que eu esteja querendo te enrolar.

—Que é isso Doutor Gustavo. Por momento algum isso me passou pela cabeça.

—Pois bem, então amanhã mesmo a gente passa no cartório e ajeita toda a documentação.

Naquela noite o Padre Guerino quase não conseguiu dormir, devido à ansiedade que se apossara do pobre homem.

Custava acreditar no que estava acontecendo. Tudo aquilo parecia ser um sonho. Algo que pensara que só seria possível através de uma intervenção divina. E parece que os céus ouviram suas preces.

E assim foi feito. Fizeram toda a transação imobiliária e o Padre Guerino entregou o cheque de duzentos mil ao Doutor Gustavo, que lhe devolveu um outro de cinqüenta mil, restituindo a diferença referente ao valor combinado.

E como eu havia dito lá atrás, o destino realmente é mais danado do que a gente possa imaginar. No outro dia o Doutor Gustavo, passou na padaria para tomar um café e encontrou o Genésio tomando cerveja com uns amigos. Assim que entrou, o Genésio, lá do canto do balcão acenou para ele.

—Tudo bem Doutor?

—Oi Genésio! Foi bom te encontrar! Preciso falar com você!

Genésio pediu licença aos amigos e veio ao encontro do Doutor Gustavo.

—Como é que vai essa força toda, Doutor?

—Com as graças de Deus a gente vai tocando.

—Então tá bom.

O Doutor Gustavo pediu um café e ofereceu outro ao Genésio, que agradeceu dizendo não querer porque estava tomando cerveja.

—Sabe o que é Genésio, amanhã eu estou indo para o Rio de Janeiro resolver alguns negócios, e como eu ando meio ruim das pernas preciso de alguém para dirigir o carro.

—Opa Doutor! Pode contar comigo!

Genésio não era nada bobo. Sabia muito bem que todas as vezes que prestava algum tipo de serviço ao Doutor Gustavo, pintava sempre uma graninha boa. E durango do jeito que estava aquilo viria em uma boa hora.

—Então esta combinado Genésio! Amanhã ali pela cinco a gente sai. Cinco da manhã! Não vai me aparecer lá às cinco da tarde igual você fez da outra vez!

—Pode ficar tranqüilo Doutor! Meia hora antes eu pinto no pedaço.

—Tá bom.

O Doutor Gustavo terminou de tomar o seu café e despediu-se do Genésio. Assim que ele saiu, o Genésio esfregou as mãos, estalou os dedos, e voltou todo sorridente para junto dos amigos.

—Ceará, abre mais duas geladas na minha conta, que pintou dinheiro na área!

No outro dia, conforme haviam combinado, o Genésio chegou à casa do Doutor Gustavo uns vinte minutos antes da hora marcada. Ajudou o Doutor a carregar umas caixas para dentro do carro e logo em seguida partiram.

E foi nessa hora que o destino começou a traçar as últimas linhas dessa trama recheada de irresponsabilidades, coincidências e fatos inesperados.

Destinos tão diferentes e ao mesmo tempo tão paralelos, em que a vida parece desabrochar onde tudo termina, e o final da existência terrena parece florescer onde tudo principia.

Já quase chegando ao Rio de Janeiro, o Doutor Gustavo, tirou de dentro da pasta que trazia consigo o cheque da transação do imóvel.

—Já viu tanto dinheiro assim, Genésio? E é de um xará seu!

O Genésio olhou para o cheque de duzentão e quase teve um catiripapo. Foi nessa fração de segundos que tudo aconteceu. Enquanto prestava atenção no cheque que o Doutor Gustavo lhe mostrava, Genésio não percebeu, logo à frente, uma carreta que irresponsavelmente, ultrapassava um ônibus bem ali naquela curva. O choque foi inevitável. Tudo aconteceu muito rápido. Foi um acidente horrível. Um estrondo ensurdecedor e em segundos o carro foi tomado pelas chamas.

Nunca se viu tanta gente em um velório, como aconteceu naquele dia. Afinal tanto o Genésio quanto o Doutor Gustavo, eram pessoas popularíssimas ali no bairro e os dois foram velados no Salão Social da Sociedade de Amigos do Bairro.

Meses depois a creche foi inaugurada. Uma festa muito bonita. Teve hasteamento da bandeira brasileira e a execução do hino nacional pela banda da Polícia Militar.

Bem na entrada uma enorme placa de bronze, prestava uma homenagem com os seguintes dizeres:

“Homenagem póstumas ao Sr. Genésio Aluere da Silveira, a quem agradecemos pela doação deste imóvel, tornando possível a realização deste sonho.

Que Deus o abençoe, e o tenha sempre junto de si ai no céu”.

Na fachada junto ao portão de entrada lia-se em letras garrafais o seguinte:

“CRECHE ASSISTENCIAL GENÉSIO ALUERE DA SILVEIRA”.

O Zezão depois de observar a tudo aquilo, ergueu os olhos para o céu e comentou baixinho:

—Genésio tu és um ordinário mesmo! Como é que pode um sujeito safado e vagabundo igual a você acabar virando herói? Tão te chamando de santo!

Olhou para a foto do Genésio pendurada na parede da sala de recepção, balançou a cabeça e sussurrou por entre os dentes.

—Eu nunca vi santo trapaceiro!

O Zezão deixou a creche, naquele sábado ensolarado de Dezembro, e lá da rua ouviu, ainda, a banda que tocava um dobrado animando a festa lá dentro.

Desceu a ladeira de paralelepípedos e parou por alguns segundos próximo a uma enorme paineira onde observou um casal de bem-te-vi, que pareciam zombar de tudo aquilo que estava acontecendo. Cumprimentou o verdureiro, que por sinal o Genésio ficara devendo quinze mangos e desapareceu lá embaixo onde a rua fazia uma curva sinuosa à direita.