O clube dos três – primeira parte

- Bom dia querida. Eu cheguei tarde ontem, eu sei. E queria pedir desculpas pela aliança, mas eu prometo que vou tentar fazer com que fique igual ao que era antes.

Olhando a paisagem desértica que assolava sua geladeira, Gabriel pensou: mas que droga, definitivamente preciso de dinheiro, algum dinheiro pra comprar comida, pagar a merda do aluguel ou mesmo pra poder ir aonde preciso, eu devia arranjar um emprego decente. Mas não sei, acho que eu não tenho mais paciência pra dar aula pra ninguém.

Tomou um café mal passado, comeu alguns pães dormidos com um pouco de manteiga. O leite tinha acabado, alias, ainda havia muito na caixa, mas estava completamente azedo desde épocas imemoriais. Continuou seu monólogo solitário.

- Aquele clube de que lhe falei uma vez vai se reunir. Fui convidado. Eu sempre pensei que fosse apenas uma lenda, ou mesmo invenção daquela bruja em tijuana. Mas eles existem. Não sei o que querem comigo, mas existem.

Vestiu o palito marrom surrado, um jeans do tempo da faculdade, e a camisa menos suja que pode encontrar, pegou as chaves do carro do italiano, que ainda estava com ele e, antes de sair, deu beijo na foto que estava sobre escrivaninha.

- Tchau meu amor, não vou demorar.

A cidade estava mais calma, o transito fluía bem. A hora do rush já tinha passado e o sábado exibia um céu dos mais azuis. A lanchonete onde havia sido marcado o encontro não ficava longe, depois de 15 ou 20 minutos dirigindo Gabriel chegou ao seu destino: umas dessas lanchonetes de cadeias de fastfood americanas, com comida horrível e que custa os olhos da cara. Ainda bem que ele não tinha vindo ali pra comer.

O lugar estava bem vazio, só havia duas ou três pessoas, e um casal discutindo em uma das mesas do fundo. Quando ele entrou, não precisou de indicações para achar a mesa a qual devia se dirigir, o local emanava um ar de tal forma carregado que ele poderia encontrá-lo de olhos vendados.

À mesa estavam sentadas três pessoas. Dois homens e uma mulher. E o seu lugar era o quarto. Ele aproximou-se da mesa, ninguém falou nada, todos sabiam quem ele era, e ele conhecia a todos ali, mesmo que apenas através de historias ou boatos.

- Sabe por que esta aqui?

A pergunta havia partido de uma mulher. Ela tinha cabelos longos e ruivos, pele morena, e um par de lhos castanhos que disputava a atenção com suas belas formas. Vestia algo que, definitivamente, não ia protegê-la do frio. O sotaque castelhano não deixava duvidas, aquela era Marina Valais da tradição espanhola.

-Não posso dizer que tenho certeza, mas se não tivesse minhas suspeitas eu provavelmente não seria digno de estar nessa mesa.

Respondeu Gabriel, tentando impor um respeito que sabia, não ia conseguir só com uma frase de efeito.

- Bem, vamos direto ao assunto, somos o clube dos três a varias décadas. Mas os meus colegas aqui decidiram oferecer a você uma cadeira. Eles acreditam que você alcançou conhecimento e poder suficiente para torná-lo alguém a quem não se deve desejar como inimigo. É claro que discordo plenamente, mas sou voto vencido.

A resposta veio de Hernandes, homem moreno, de meia altura, vestindo uma camisa branca, de peito aberto, que exibia talismãs que causariam arrepios a qualquer um que entendesse o seu significado. Era mexicano, e herdeiros das artes do culto solar.

- Eu sei, eu conheço a historia, ou pelo menos parte dela. E estou honrado pela oferta, mas há alguém nessa mesa a quem considero um inimigo, e que é adepto de filosofias que eu desaprovo. Gabriel falava olhando nos olhos de Hernandes, que apenas lhe devolvia um sorriso cínico. As vidas dele e do mexicano já haviam se cruzado, e ambos tinham motivos pra não se gostarem.

- Calma rapaz, eu sei que as praticas de Hernandes não são do seu agrado e, sinceramente, também não são do meu, mas essa associação existe apenas para lidar com coisas muito grandes para resolvermos sozinhos, e apenas este espaço é considerado neutro. Todos nos temos nossas diferenças, mas abdicamos dessas pequenas coisas em prol de um bem maior.

O ultimo membro, mas não menos importante, era Franz. Homem cuja idade só se equiparava a sua experiência, e que, sozinho, tinha poder para sobrepujar todos ali presentes caso fosse necessário. De cabelos bem curtos, já completamente grisalhos assim como sua barba, tinha certo ar de sabedoria. Usava um terno e um anel da irmandade da serpente na mão esquerda.

- Mas por que agora? Eu já estou nisso há algum tempo.

Questionou Gabriel.

- Precisamos de você.

Respondeu Franz.

- Ficamos sabendo de algo que pode afetar a todos nos, e que esta acontecendo no seu território. Mas isso só lhe será revelado caso aceite a nossa proposta, caso contrario, é problema nosso.

Completou Marina.

- Preciso de um tempo pra decidir.

Gabriel falava sem tirar os olhos de Hernandes.

- Você tem 24 horas. Estaremos aqui pra ouvir sua resposta amanha.

Finalizou Hernandes, ainda com o seu sorrisinho irritante.

- 24 horas? So isso? Gabriel começava a se preocupar.

-Sim,, infelizmente o caso é urgente. Respondeu Franz com seu tom serio.

Gabriel levantou, sempre olhando Hernandes, e saiu da mesa. Ele tinha muita coisa sobre o que pensar no caminho de volta, e muitas imagens do passado surgiram para assombrar sua mente. Precisava sentar na sua poltrona velha e cheia de buracos pra saber o que fazer, ela sempre o ajudava a pensar.

A primeira idéia era obvia, consultas os registros cármicos, mas com certeza Franz já tinha vasculhado tudo, e sabia que ele tentaria o mesmo. Mas ele não tentaria. Se os registros tivessem algo de crucial eles não estariam reunidos, ele teria resolvido tudo sozinho, e talvez ate mesmo a distancia. Pensou Gabriel.

A única maneira de obter informações seria do modo comum, ou de moda indireto pelos registros, ou que levaria mais tempo que do modo comum. E em matéria de contatos ele não me comparava nem a Hernandes, que era o mais fraco dos três, quanto mais a reunião de todos eles. Sendo assim decidiu que iria aceitar a proposta da cadeira, não tinha outra escolha naquele momento, mas antes ele precisava tentar a única via da cidade que podia dar alguma informação útil: o bibliotecário.

O bibliotecário era uma peça neutra, mesmo os praticantes das artes negras não o envolviam em suas intrigas, pois tinha nele uma peça de apoio assim como todos os outros praticantes. O bibliotecário era o intermediário do conhecimento, sempre era procurado quando se necessitava de qualquer livro de natureza incomum, daqueles que não estão disponíveis nas livrarias. E o fato de prestar seus serviços de forma eficaz, sem fazer perguntas ou olhar a quem, dava a ele um status de intocável. E era esse homem que Gabriel necessitava procurar, pois, devido a sua posição, o bibliotecário sabia de muitas coisas, principalmente dos acontecimentos recentes do mundo oculto. E foi o que ele fez.

Era uma pequena livraria e cepo no centro da cidade, discretamente localizado em um dos prédios antigos de fachada tradicional portuguesa. Gabriel adentrou o ligar por voltas das cinco da tarde, a essa hora a livraria ja não tinha muitos clientes, e era a melhor hora para encontrar o proprietário. Gabriel passou pela porta, tocando o pequeno sino que ficava sobre a mesma, e que avisava ao balconista de que alguém estava entrando ou saindo. Aproximou-se do balcão, na loja, alem dele e do balconista, havia apenas um velho homem com uma camisa florida e chamativa olhando alguns guias de viagem.

- Boa tarde senhor, posso ajudá-lo em alguma coisa?

Perguntou o balconista sem levantar os olhos da revista que lia

- Estou procurando um livro.

Respondeu Gabriel baixando com a mão a revista que o balconista lia, e conquistando sua atenção.

- Des... desculpe,

O balconista se assustou ao reconhecer a figura que já havia visto muitas vezes na parte mais reservada da livraria.

– Não vi que era o senhor.

- Tudo bem. Ele esta?

- Si... sim senhor, venha por aqui por favor.

Gabriel seguiu o jovem balconista pelo corredor que levava uma escada de caracol, já havia estado ali algumas vezes antes e já conhecia o escritório que ficava no primeiro andar da livraria. Ao chegar a pequena porta de madeira, escutou o balconista bateu três vezes, um homem velho abriu a porta. Lá de dentro, um cheiro de mofo e de conhecimentos antigos emanava em profusão. Sem deixar que o balconista dissesse nada, o homem pediu que Gabriel entrasse e, com um gesto de mão dispensou o jovem que voltou ao seu posto na entrada da livraria.

- O que o trás minha humilde biblioteca Gabriel?

Perguntou o velho que era estranhamente alto e muito magro, o que parecia tornar seus movimentos difíceis e cuidadosos. Seus óculos de leitura de lentes grossas que pendia a ponta do nariz refletiam estantes abarrotadas de livros, que preenchiam toda a sala do chão ao teto. Sentou-se, e com um aceno convidou o hospede a fazer o mesmo nas velhas poltronas vermelhas que ficavam lado a lado no centro da sala.

- Preciso de algumas respostas.

Respondeu Gabriel olhando a imensidão de conhecimento que o rodeava.

- Respostas? Você sabe que não posso comentar sobre meus negócios. Mas caso aja qualquer livro em que possa encontrar essas respostas, ficarei feliz em consegui-lo pra você.

- Infelizmente não há nenhum.

Gabriel abriu um pequeno sorriso, enquanto voltava os olhos para o velho bibliotecário.

- Mas preciso de respostas mesmo assim. Preciso saber se algum adepto chegou a cidade recentemente, sei que você deve saber, afinal não há outro lugar para conseguir informação ou material na cidade alem da sua loja. E alem disso, sei que os boatos sempre correm primeiro aqui.

- Desculpe Gabriel, mas não posso ajudá-lo, se não quer nenhum um livro, por favor, vá embora.

Respondeu o bibliotecário apoiando-se na cadeira para levantar. Mas, nesse momento, Gabriel segurou o braço do velho homem e num puxão fez com que ele sentasse de súbito novamente a cadeira. O velho o olhou surpreso e talvez com um pouco de medo, e começou a recuar na cadeira ao ver Gabriel levantar-se e aproximar-se lentamente, inclinando-se para frente apoiando o baço na parte superior da poltrona. Gabriel o olhava bem próximo, no fundo dos olhos.

- Acho que você não esta me entendendo bibliotecário.

Gabriel falava calma e educadamente, mas com um olhar que revelava sua irritação.

- Das respostas que você VAI me dar podem depender não só a minha vida e a sua, mas coisas muito mais importantes. Não pense que é intocável, pois se não me der essas respostas nada poderá protegê-lo daquilo que eu estou tentando evitar (um blefe bem dado, já que ele não tinha idéia do que realmente estava tentando evitar).

Todas as pessoas são passiveis de convencimento, basta a utilização do argumento certo. Quando Gabriel saiu da livraria já tinha destino, as informações arrancadas do bibliotecário tinham dado uma pista que de quem e onde procurar, cabia a ele agora se preparar para o encontro da melhor forma possível.

Enquanto voltava pra casa, com o vento batendo no cabelo, ele pensava no encontro que tinha tido com o clube e na conversa recém travada com o bibliotecário. Uma sensação de estranheza dominava as fachadas da cidade, e ele sentia e sabia que estava no meio de algo maior do que tudo aquilo que já tinha encontrado. Por um momento, teve vontade de deixar que o clube cuidasse disso sozinho, mas essa idéia se afastava ao lembrar do sorriso cínico de Hernandes, com certeza ele era tão confiável quanto uma cascavel faminta. É, ele ia mesmo ter que resolver fosse o que fosse sozinho, e usando os seus próprios recursos.

Mas hoje o dia já havia sido longo demais, e quando chegou, apenas abriu uma cerveja, e foi se debruçar sobre seus velhos manuais de alquimia. Cecília não ia gostar dele usando uma aliança de chumbo.

Kriador
Enviado por Kriador em 30/01/2009
Reeditado em 30/01/2009
Código do texto: T1414006
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