Rosas aos Mortos

NOS LONGÍNQUOS ANOS DE 18..., quando o mundo ainda era um lugar assaz aprazível de se viver, eu, em meus dezenove anos, travava conversa com M. Oliver, já em seus avançados noventa. Naquela época, viver tanto assim era uma dádiva, mas não para M. Oliver. Seus ataques epilépticos aconteciam com frequência cada vez maior, e seus espasmos e acessos de tosse eram praticamente intermináveis. Eu, vendo-o definhar e sofrer, nada podia fazer senão visitá-lo sempre que possível, contando notícias sobre o mundo. Ele, com seus olhos fechados e ouvidos apurados, ouvia a tudo, concordava vez ou outra e raras vezes adicionava algum comentário a nossa conversação.

Não era um homem de falar muito, pelo que todos já tiveram a oportunidade de perceber. Então, quando em minuto de silêncio ele falou-me com significativa retórica e voz límpida, não pude deixar de me surpreender.

- Tu és um bom amigo, um ótimo amigo... – falava com ponderação, como se tivesse ensaiando as palavras em sua mente. – Sempre vens aqui quando podes, fala-me do mundo, areja-me o ambiente e até mesmo me acode quando meus ataques se tornam evidentes. – Eu estava já a ponto de falar que aquilo eram besteiras, que qualquer bom amigo faria o mesmo, mas ele cortou-me antes que tivesse a oportunidade. – Ouça-me, depois fales o que quiseres. – seu tom autoritário me surpreendeu, mas calei-me sumariamente. – Meu tempo neste mundo já não tardará a expirar, isso é claro e evidente a qualquer tapado que tenha dois olhos enfiados na cara. É por isso, meu amigo, que tenho um pedido a lhe fazer, talvez o meu último e mais importante.

- Ora, homem, não gaste tuas energias com preâmbulos! – eu disse logo, ao ver que ele se calara, de olhos fechados. Parecia descansar de tanto falar.

- Quero que compres um buquê de rosas brancas, meu amigo, e me leves, da forma como achar melhor, até o túmulo de minha Isabelle.

Das poucas vezes em que M. Oliver travou conversa comigo, muito falava sobre Isabelle. Eu sabia que ela era apenas uma menina quando veio a falecer – tinha pouco mais de dezessete ou dezoito anos, não me recordo bem. A tuberculose dera a ela três meses de sofrimento e agonia antes de elevá-la aos céus, e, durante todo o tempo, M. Oliver ficou ao lado dela, sendo uma bênção divina não ter contraído a doença infernalmente contagiosa.

Era estranho M. Oliver falar sobre Isabelle agora. Das vezes em que falava sobre ela, geralmente lembrava-se de seus momentos áureos: falava de seu sorriso e de seus olhos claros, de seu cheiro doce e seu bom humor contagiante. Não guardava tempo para falar de seus defeitos ou da causa de sua morte (o que acabo de relatar acima chegou ao meu conhecimento através de muita conversa com vizinhos e conhecidos de M. Oliver).

- Para quando queres as flores? – perguntei, resolvendo de imediato que atenderia ao pedido de meu amigo.

- Para o quanto antes. – ele disse. – Assim que arranjares o dinheiro e comprá-las, venha até aqui. Ajude-me a tomar um bom banho e a vestir uma roupa limpa e engomada. Não posso visitar minha querida do jeito que estou.

Parecia mais animado, e, por um momento, parecia que a velhice existia apenas estampada em suas rugas, e não em seu interior. Não sei o motivo, mas se senti momentaneamente mal. Na época, não entendi porque aquilo aconteceu – julguei até mesmo que estava sendo mesquinho ao vê-lo tão alegre –, mas o tempo deixou tudo claro como água.

Foi uma sensação que durou pouco. Logo, senti-me novamente bem, e ele voltou a parecer cansado como sempre fora.

- Providenciarei as flores o quanto antes. – eu disse, avançando até ele e segurando-lhe a esquerda. – Até lá, continue firme, meu amigo. Tu terás a oportunidade de visitar Mms. Isabelle uma última vez.

- Obrigado, meu amigo. Obrigado.

Logo no dia seguinte, contraí empréstimo de meu irmão – coisa boba e irrelevante, mas que não dispunha no momento – e parti para a floricultura mais próxima. Comprei o buquê mais lindo de rosas brancas que já vi em minha vida e, munido dele, fui até a casa de M. Oliver.

- Então tu realmente vieste! – ele comemorou, sorrindo com seus dentes amarelados.

- Nunca deixaria de cumprir minha palavra a um amigo. – disse. – Gostaste do buquê?

- Mais lindo impossível. – ele comentou, arrastando-se na cama e sentando-se. – Vamos, ajude-me a tomar um banho e a trocar estas roupas de doente.

Assim fizemos. Demorei muito tempo dando-lhe um bom banho, esfregando-lhe a pele flácida e tirando-lhe toda a sujeira acumulada durante os dias de cama. Lavei-lhe os cabelos ralos e acinzentados, o rosto cheio de rugas e tudo o mais.

Já de banho tomado, troquei-lhe as roupas. Ele, falando pouco, tinha olhos brilhantes e um sorriso maroto no rosto. Era como se fosse de novo um adolescente, preparando-se para o primeiro encontro com seu futuro grande amor.

Lá estava ele: M. Oliver, com sua cartola na cabeça, barba feita e cabelos penteados, roupa limpa e engomada. Parecia um barão pronto a entrar em uma festa de alta sociedade.

- Tome. – disse, estendendo-lhe o buquê. Ele o pegou como se fosse um filho. – Agora vamos.

Deslizei a cadeira de rodas por toda a cidade – com certa dificuldade, devo admitir, pois o homem, por muito tempo sem praticar nenhum tipo de exercício físico, havia engordado excessivamente –, falando-lhe sobre a cidade e sobre suas mudanças desde a última vez em que ele saíra de casa. M. Oliver parecia animado, olhando de um lugar para o outro, reservando sua fala apenas para os comentários mais entusiasmados.

Por fim chegamos até o cemitério. O grande portão de ferro estava aberto, convidando-nos a entrar naquele clima ao mesmo tempo mórbido e lindo. A grama dali era a mais verde que já vi em minha vida, e o silêncio me dava uma paz que não sabia explicar. Mas, em conflito com essa sensação boa, recorria-me o pensamento de que ali estavam enterradas pessoas, corpos putrefatos que serviam de combustível para aquela grama permanecer daquela cor. Sentia arrepios ao pensar naquilo – imagine só a confusão de sensações, paz e arrepios ao mesmo tempo. Minha nuca se eriçava quando pensava nos mortos e lembrava das histórias de Allan Poe, onde eles apareciam com frequência, suas órbitas sem olhos e seu cheiro nauseabundo, seu hálito quente e sua pele esverdeada.

- Onde fica? – perguntei, referindo-me ao jazigo da família de Mms. Isabelle.

- Por ali. – ele apontou. M. Oliver esquecia-se com facilidade das coisas, mas parecia haver guardado lugar especial em sua memória para aquela ocasião. – Um pouco mais a frente. Isso, vire na próxima direita.

Segui suas instruções e não tardou para que chegássemos ao jazigo. Silenciei naquele momento, dando ao vivo e à morta a intimidade que um casal merece. Ele ficou muito tempo ali, contemplando as palavras de pedra do epitáfio, com lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto.

- Ajude-me a levantar, amigo. – ele disse, estendendo a mão e segurando a minha. – Quero fazer as honras de pé.

Mesmo sabendo que não o aguentaria por muito tempo, concordei. Peguei-o pelo braço e ele, fazendo-me de suporte, apoiou-se em mim. Revelou-se assombrosamente leve, como se estivesse apenas segurando a minha mão.

Logo me senti fraco, da mesma forma que me senti da vez em que o vi sorrindo em seu quarto, mas dessa vez em maior intensidade. Olhei para M. Oliver, tentando me desvencilhar de suas mãos, mas elas revelaram-se como garras e não me soltavam de forma alguma. Senti ainda mais fraqueza, e, ao fitá-lo, ele tinha os olhos mais vivos que já vi em minha vida. Suas rugas não existiam mais, e a flacidez de sua pele desaparecera.

Sugou minha vida até a última centelha, e depois caí, mortificado, sentindo a grama em meu rosto.

Pude ver que ele se abraçava ao túmulo de Mms. Isabelle, como se estivesse abraçando a própria mulher. Vi – não, meus olhos não poderiam me enganar naquele momento – como se um fio de vida saísse do coração de M. Oliver e entrasse no túmulo, atravessando a pedra e a madeira. Logo depois, percebi que ele empurrava a pedra do jazigo dela com aparente facilidade.

- Eu disse que conseguiria, meu amor. – ele disse, puxando a mão de Mms. Isabelle do caixão. Apesar de suas roupas surradas e carcomidas pelo tempo, ela tinha a mesma beleza dos seus dezoito anos novamente.

- Como você...? – ela perguntou, mas não terminou sua sentença. Viu meu corpo estendido ali, com os olhos abertos e fixos na cena, a pele esverdeada grudada aos ossos, as bochechas encovadas e expressão de puro terror. – A que preço, meu amor! A que preço!

- Não te preocupes. – ele disse, pegando-lhe a mão. – Aprimorarei minhas técnicas, minha querida. Ele é um grande amigo, muito maior do que pensas. Voltarei assim que aprender tudo quanto for necessário.

Partilhando de minha vitalidade com Mms. Isabelle, M. Oliver parecia ter cerca de quarenta anos. Eu não passava de uma massa centenária de ossos e pele apodrecida. Não foi com dificuldade que ele conseguiu me erguer e colocar-me no caixão. Antes de repor a pedra ao seu lugar, aproximou-se de meu rosto e sussurrou.

- Não se preocupe, meu amigo. Você será recompensado. Desculpe por não tê-lo explicitado minhas intenções.

Senti uma lágrima dele cair em meu rosto antes que o túmulo fosse fechado.

Não lhe guardo rancor. Sei que a paixão é muito maior do que o amor fraternal que um amigo nutre ao outro. De início senti-me traído, mas, como dizem os sábios, o tempo é o senhor da razão. Refleti muito sobre todo o ocorrido, e percebi que talvez a minha danação fosse a felicidade de duas grandes pessoas.

Ainda o espero aqui, com meu corpo trancado a esse jazigo, enquanto minha alma vagueia pelo lugar, vendo as mudanças que se operam no mundo.

Sei que um dia ele virá, e ele sabe que eu espero; sei ainda que ele não tem noites tranquilas sem que eu lhe povoe os pesadelos, e esse é o meu conforto. Cedo ou tarde, mesmo que apenas para apaziguar sua consciência, ele virá e me tirará daqui.