Obsessão sem fim
Nota do autor: Convido-lhe a decifrar o texto.
Carlos morava sozinho e, há muito tempo, não sabia o que era sair de casa. A TV deixara de funcionar e os livros eram sua única diversão.
Não que ainda lhe proporcionassem isso, pois estavam em mal estado e emboloravam devido à umidade m seu armário. Odiava o cheiro de mofo. Mais que aquele cheiro de gás que sempre empestou seu apartamento. Irritado, decidiu acabar com a umidade que destruía sua estimada coleção literária.
Havia tirado os livros embolorados e afastado o pesado móvel da parede. A serra-copo já estava preparada. Dois furos largos deveriam aumentar a circulação de ar. Testou o gatilho da furadeira fazendo a serra girar e a forçou contra a madeira.
A ferramenta fez seu trabalho, cortando com facilidade até fazer um barulho estranho e emperrar. Carlos estranhou, cessando a empreitada para descobrir o que havia acontecido. Havia feito o buraco exatamente como planejara, porém, após ele, uma camada de concreto impedia a serra de continuar. Estranhou. Afinal, o armário estava longe da parede.
Trocou a serra por uma broca grossa e, mesmo espantado, forçou a ferramenta contra o concreto. Porém, ela não varou o móvel,encontrando resistência até que a furadeira encostasse na parede. “Impossível” pensou ele, dando a volta no móvel e observando o outro lado, intacto.
No dia seguinte, não foi trabalhar. Havia passado a madrugada alargando o buraco, usando precariamente uma cunha e um martelo. Cada batida soava surda, como se cavoucasse algo sólido.
No terceiro dia, seu corpo cabia completamente na passagem que ele, insanamente, abria. Sentou-se na cama servido de um copo de martini e observou aquela imagem irreal. “Maldito cheiro de gás”, pensou ele. Precisava verificar o vazamento mas o buraco era mais importante. “Impossível” riu ele, verificando mais uma vez a parte traseira do móvel: Intacta. Tinha que descobrir onde aquilo ia dar. Continuou.
A cada dia, sua voz, ora rindo, ora resmungando, tornava-se cada vez mais distante. Como um preso que cava para ter sua liberdade, Carlos seguia obstinado, vencendo centímetro após centímetro, metro após metro, na escuridão e loucura daquela ilusão sem igual.
A cunha então afundou generosamente com uma forte martelada. Ele pasmou. Havia chego ao fim? Já hábil, alargou o pequeno buraco e sentiu a terra fofa e úmida entre seus dedos. Gargalhou, insano. Aumentou ainda mais o buraco e dispensou a cunha, inútil na terra. Com suas mãos, sem importar-se com as unhas que partiam, separando-se da pele ao encontrar pedras soltas, Carlos abriu passagem, espremendo a terra fofa enquanto tentava contorcer seu corpo para avançar.
Engolia e respirava terra na sua teimosa jornada. Perderia os sentidos não fosse por sua mão varar a prisão úmida que o envolvia, acariciada pelo ar fresco da madrugada, inspirando em sua alma o esforço final, seu último suspiro.
Carlos, exausto, deixou o buraco para trás e, deitado, enquanto tentava reaver suas forças, olhou em volta: Lápides adornadas e estátuas de anjos o cercavam. De onde saíra, a prova de sua morte, talhada em mármore, não deixou sua loucura esvair. Levantou-se com dificuldade e partiu catatônico, cambaleando entre os túmulos antigos e novos.
Em casa, após dias de tédio, pegou um livro ilegível. As páginas manchadas e úmidas. Nervoso, atirou-o contra o armário. Odiava o cheiro de mofo. Mais que aquele cheiro de gás que sempre empestou seu apartamento. Irritado, decidiu acabar com a umidade que destruía sua estimada coleção literária.