Diário de um caçador - Parte Final
Finalmente, eu o encontrei.
Há cerca de três semanas, cumpri meu contrato de trabalho nada ortodoxo com o senhor Bruno Rustovich, um romeno originário da Transilvânia que possui o porte característico dos antigos voivodes que governaram aquela região muito tempo antes do domínio soviético. Além de uma polpuda recompensa financeira no valor de cinqüenta mil libras esterlinas – isso gira em torno de pouco mais de cem mil dólares, o que foi realmente uma surpresa para mim, ainda mais levando-se em conta que eu não forneci nenhum número de conta a meu contratante –, o senhor Bruno me entregou o que havia prometido: fotos e endereços dos locais onde possivelmente eu encontraria a... coisa que matou Margareth.
Dois anos. Há dois anos, ela foi tirada de mim. Há dois anos, eu comecei a trilhar um caminho de sangue e ódio que me levaria a ele, ao maldito demônio que sugou o sangue, a vida e a alma de minha esposa. Todas as agruras pelas quais passei nesse período me conduziam a esse momento, desde o desespero da perda de meu amor aos intermináveis dias de treinamento com Alex. Muitos ficariam temerosos: afinal, o que fazer com tanto rancor, com tanta dor, depois de vingar uma morte pavorosa com outra ainda mais horrenda? Que sentido é possível encontrar na vida depois de cumprida essa missão amarga?
Eu não temo. Eu sei o que fazer depois. Mas isso não vem ao caso agora.
Todos os indícios que recebi do senhor Rustovich me levaram à Moldávia, uma republiqueta eslava espremida entre a Romênia e a Ucrânia. Havia fotos das cidades de Chisinau (a capital moldávia), Rezina e Soroca. Esta fica na fronteira norte do país, perto do território ucraniano, às margens do rio Nistru. Foi lá que o encontrei.
A minúscula cidade é conhecida por um grande castelo, que leva o nome do lugarejo. A fortaleza de Soroca foi um dos últimos baluartes da luta dos eslavos contra os invasores turcos no início século XVIII. Diz-se que é a única construção medieval praticamente intacta na Moldávia. Creio que os pesquisadores não souberam procurar direito, ou algo fez com que não encontrassem nada mais, pois, ao sul da cidade, em meio a um dos muitos densos bosques que abundam pela região, uma torre ainda erguia-se firme dos restos de um pequeno forte.
Aluguei na capital uma motocicleta do tipo off-road para viajar até o local. O estado das estradas moldávias é péssimo, e há poucos postos de abastecimento de combustível, o que me fez escolher uma motocicleta com torque alto e tão econômica quanto possível. Saí da cidade em uma sexta-feira sombria, durante a tarde. Interrompi a viagem em uma pequena vila perto de meu destino, a uns setenta quilômetros de Soroca. Boa parte da população fala russo, um resquício da cruel dominação soviética na região, o que facilitou bastante a comunicação com os moradores locais. É curioso como os eslavos daquela região – moldávios, romenos, húngaros, entre outros – são receptivos e alegres, quase latinos.
Conversei bastante com um senhor de aspecto simpático e pacífico chamado Ilia. Era iugoslavo de nascença, de sangue cigano. Instalara-se com a família na Moldávia poucos anos antes do estouro da Segunda Guerra Mundial, quando ainda era um meninote. Contou-me sobre os anos de fome, o controle soviético, a perseguição política. Havia participado da Primavera de Praga e da formação dos Sindicatos de Solidariedade. É cantor e compositor, uma espécie de celebridade local. E um quiromante requisitado.
- Você tem um destino sombrio. - disse-me ele com voz grave e solene enquanto lia os traços de minha mão direita. - Deus reservou para você planos dolorosos, uma missão difícil como a do profeta Jó. Ele mandou Seus anjos para guardarem sua alma e lhe darem força nas horas difíceis, mas os anjos não ficarão para sempre.
As chamas bruxuleantes de um candeeiro faziam sombras brincarem de modo fúnebre em seu rosto enrugado. Os olhos azuis, já opacos pela velhice, seguiam lentamente a ponta do dedo indicador de sua mão direita, que sempre passava sobre as linhas de minha palma.
- Sua cruz é pesada, meu filho. Nunca vi uma sorte como essa. Que Deus tenha piedade de sua alma.
O assado de carneiro estava delicioso, bem como os pães temperados que me serviram na estalagem. O vinho era de excelente qualidade, encorpado, e deve ser perfeito para fins culinários. Depois da leitura de mão houve cantoria e histórias mirabolantes contadas pelos habitantes mais respeitados do lugarejo. Todos queriam falar comigo. Um estrangeiro vindo de tão longe era sempre uma celebridade e tanto. Até recebi um presente: um rosário feito de madeira de carvalho e linha trançada de algodão cru, uma peça cuja austeridade era quase comovente. Não sai de meu pescoço desde que o ganhei.
Parti cedo na manhã seguinte depois de comprar combustível de um atravessador local, e optei por usar as estradas de terra. Precisava espairecer, ordenar os pensamentos para o que estava prestes a cumprir, e um pouco de aventura nas trilhas naturais não havia me parecido ser uma má idéia. De fato, não foi. A paisagem belíssima da Moldávia é um convite aos espíritos aventureiros. Peguei um pouco de chuva no caminho, o que refrescou meu corpo e minha mente. Almocei um resto de carne assada e pão que havia guardado do dia anterior.
Alcancei meu destino no fim da tarde.
A torre, que devia ter cerca de vinte metros de altura, erguia-se de dentro do bosque como um agourento obelisco. Não possuía janela alguma, o que me chamou bastante a atenção. As pedras desgastadas pelo tempo tinham um aspecto medonho - toda a estrutura, entretanto, parecia tão firmemente sólida quanto devia ter sido há mil anos –, e a base da torre era quase inteiramente recoberta de trepadeiras secas, enrugadas. Até mesmo a grama em torno da torre, que residia no centro de uma clareira, parecia morta. Uma aura de terror pairava naquela torre, como se o espectro da morte tivesse ali feito morada. Não senti medo, ainda assim. Senti ódio. Minhas entranhas queimavam com aquele sentimento destruidor.
Troquei de roupa ali mesmo, do lado de fora. Coloquei coturnos táticos reforçados, de solado macio e silencioso, além de calças de poliéster e camiseta de lycra de mangas compridas. Calcei luvas nas mãos. Havia levado uma arma de fogo, dessa vez: um revólver Colt Python, calibre 45, acomodado em um coldre de peito logo abaixo da minha axila esquerda. Havia levado também minha espada, que, fora do guarda-chuva, estava em uma bainha pequena que eu levava, naquele instante, do lado esquerdo da cintura.
Uma pesada porta de madeira na base da torre era a única passagem visível que encontrei. Entrei por ela. Uma escada em espiral me foi revelada, e, lentamente, comecei a subir. Meus passos não provocavam ruído algum. Dos animais que costumam abrigar-se em locais assim, como pombos e morcegos, não encontrei sinal algum. Nem mesmo ratos havia ali, e teias de aranha eram inexistentes no interior do recinto. O ar tinha um cheiro podre e acre, como o de uma arca que é aberta depois de séculos lacrada.
Minutos depois, cheguei a uma câmara escura. Lentamente, comecei a tatear pela parede, e me deparei com um suporte que continha uma tocha apagada. Acendi a peça, e esperei que meus olhos se acostumassem à claridade tão próxima para poder observar melhor onde estava.
A câmara era ampla, de pé-direito alto e teto abobadado – esta estrutura era mais recente do que o resto do interior, o que pude observar com facilidade. Ossos de animais espalhavam-se pelo chão, cercando um sarcófago de pedra que dominava o centro do salão. Trinquei os dentes. O cheiro de podridão ali era ainda maior, pois havia animais em variados estados de decomposição – filhotes de gamo, esquilos, serpentes e rolinhas. Havia outros suportes com tochas, e, lentamente, acendi-as uma a uma.
O pesado tampo do sarcófago começou a arrastar-se de sua posição poucos instantes depois de eu terminar de iluminar o local. O bloco maciço de pedra caiu estrondosamente do lado direito da tumba, esmigalhando ossinhos que por ali se amontoavam. Senti um vazio gélido abrir-se em meu estômago, e descargas de adrenalina atravessando meu corpo.
Vi primeiro seus cabelos, louros como palha. Em seguida, sua tez pálida, uma pele imaculadamente ebúrnea. Vestia trajes comuns, corriqueiros. A jovialidade da criatura beiraria o fascínio para mim, não fosse o ódio quase incontrolável que sentia a pulsar em minhas veias. Ah, lembro-me bem do gosto amargo que senti na língua seca horas atrás, quando me deparei finalmente com aquela besta do inferno.
Saiu do sarcófago como se eu não estivesse ali, batendo o pó de seu corpo. Os olhos abriram-se, e logo as pupilas contraíram-se dentro das íris vermelhas quando a luz atingiu-as. Franziu o cenho, e olhou em volta, espantado.
- Quem está aí?
Falava alemão. Era um alemão caracteristicamente austríaco. Era ele. Sim, era ele. Cerrei os punhos, controlando-me. Não. Não seria tão rápido. Seus olhos me encararam, e pude ver o espanto neles quando me reconheceram.
- Você?!
- Sim.
- Mas como...?!
- Não interessa. Aqui estou. E você sabe porque vim.
Os músculos acima de sua boca começaram a tremelicar. Arreganhou os lábios, e exibiu-me as presas em um rosnado ameaçador. Não me abalei. Aquilo somente confirmava que o que havia vindo fazer era o certo. Minha vingança, em breve, seguiria seu curso.
Não vi direito o que aconteceu em seguida, mas lembro-me dos detalhes agora, quando penso em tudo com cuidado. Ele pulou por cima do sarcófago, sim, pulou, e correu na minha direção. As unhas de sua mão haviam se transformado em garras. Ele estava tomado pela loucura, um frenesi de raiva tão intenso quanto o ódio que eu sentia. Havia tornado-se uma besta novamente.
Não hesitei. Levei a mão ao coldre do revólver e saquei a arma. Apontei, rápido, para a testa dele. Meu dedo não vacilou quando atirei, e meu braço não tremia quando segurei o tranco poderoso da arma. O projétil perfurou a testa dele entre os olhos, abrindo um rombo do tamanho de um pêssego em sua nuca. A energia do impacto impulsionou seu corpo para trás, e ele caiu no chão. O cérebro estraçalhado estava descoordenado, e as sinapses atrapalhadas eram demonstradas nos movimentos descontrolados e involuntários de seu corpo sem vida. Estava virado de lado. O pus de rosto para cima com um chute em suas costelas – devo ter quebrado duas quando o fiz.
Ele me olhou. Ah, ele me olhou, e havia um medo tão primitivo em seus olhos que me regozijei de júbilo. Pus a arma de volta no coldre, e, lentamente, diante de seus olhos, saquei a espada. Os lábios começaram a balbuciar sons ininteligíveis. Ele queria implorar, sabia que queria. Teria ele dado essa oportunidade a minha Margareth? Imaginei ela ajoelhada diante dele, mãos unidas, dedos entrelaçados, lágrimas de desespero rolando de seus olhos lindos, molhando sua pele, deslizando pelo rosto até cair no chão. Senti lágrimas brotando de meus olhos. Torci a espada na mão, e ergui a lâmina.
- Vejo você no Inferno.
Seu corpo não se transformou em cinzas imediatamente depois de sua cabeça ter sido decepada. Não fiquei para ver o que aconteceu depois. Desci, peguei a moto e voltei para Chisinau. Agora estou sentado confortavelmente em uma cabine individual de um trem com destino a Bucareste. De lá, vou seguir para Praga. Quero tirar alguns dias de descanso antes de dar prosseguimento à minha missão.
Sim, prosseguimento. Ela não terminou com a morte daquele maldito infeliz. Há outros como ele, outros cujo único propósito existencial é ceifar vidas e trazer sofrimento. Li em um lugar, certa vez, que bastava que os bons cruzassem os braços para que os maus prevalecessem. Não tenho a mínima pretensão de me julgar um homem bom, mas certamente não compactuo com esse mal nefasto. Não vou ficar de braços cruzados.
Alex me disse que os vampiros se gabam se serem exímios caçadores. A depender de mim, conhecerão bem o horror de serem as presas.