Beijo Sangrento
Entrar nesta casa após tantos anos me trazem uma serie de recordações.
Algumas felizes, outras nem tanto. Mas a grande maioria é lembranças de alegria e felicidade. Momentos estes que infelizmente nunca poderão ser reeditados. Estão perdidos para sempre, apenas vivos em minhas memórias.
Não consigo acreditar no que aconteceu, parece um filme de péssima qualidade contado a nós por outras pessoas. Tão cruel para parecer à vida real, uma vida tão ligada a minha.
Mas infelizmente aconteceu, e a nós, que continuamos a vagar por este mundo, só nos resta saber porque? Por que isto aconteceu?
Nesta casa morou, até poucos dias atrás, a melhor amiga que já tive em toda minha vida. A mais especial e querida garota que já conheci. E agora... É difícil conter a emoção ao andar novamente por esta casa, antes cheia de vida, mas agora deserta.
Uma casa onde praticamente me criei, onde cresci e passei toda minha infância e adolescência.
E agora retorno, adulto, apenas para ver paredes e salas sem vida. Apenas para ver o fim da inocência. Tudo parece sem sentido e triste.
Não seria para menos, a tristeza era algo impossível de ser evitado. Ao menos nessa situação ela tinha de ser uma fiel companheira.
A dona desta casa, Thais, minha amiga desde os quatro anos de idade, minha amiga durante todos os momentos, havia se matado. Nada a falar além disso, ela se matou. Talvez por não ter agüentado as pressões e loucura do mundo real, ela resolveu partir rumo ao desconhecido, deixando para trás todos os seus amigos e familiares.
E justamente no momento mais feliz de minha vida, aconteceu algo desta natureza, talvez apenas para mostrar-me que toda felicidade é passageira. Que, sempre com uma boa noticia, vem uma ruim. Assim é a vida, infelizmente.
E estamos nela somente de passagem.
Tudo aconteceu tão repentinamente, ninguém nunca poderia imaginar que Thais poderia ser capaz de tomar tal tresloucada ação. E agora era tarde demais.
Justo quando eu estava prestes a me casar, toda a felicidade existente dentro de mim, agora barrada por uma onda de incredulidade e dor.
E parece que tudo aconteceu justamente no dia que lhe enviei uma carta. Uma carta que trazia apenas alegria e boas recordações.
Nesta carta em que pedi a ela para ser a madrinha de nosso casamento. E de nosso futuro filho, que nascerá dentro de sete meses.
Então, justo neste dia, Thais tomou a fatídica decisão de partir deste mundo e nos deixar sozinhos e estarrecidos.
Mas porque ela teria tomado tal dramática decisão?
Por isso estou, aqui, depois de alguns anos sem pisar neste chão, em que tanto rolei em brincadeiras infindáveis. Onde nossa única preocupação era brincar até nosso corpo dizer basta.
Quando me contaram o que aconteceu, tive que me segurar para não desabar ao chão, tal era a incredulidade de acreditar que isto realmente tivesse acontecido. Porém, era verdade.
Não pude comparecer em seu velório. Tinha compromissos do trabalho, e não poderia me ausentar. Senti-me extremamente mal com isso, e logo que tive uma folga resolvi dar uma passada em sua casa. Talvez para tentar compreender, ou talvez para recriar velhas imagens de felicidade, há tanto perdidas.
E então aqui estou, sozinho numa casa vazia, em uma casa onde mesmos os fantasmas parecem evitar povoar.
Onde nunca mais poderei rir junto com Thais. Momentos felizes perdidos para sempre.
A casa estava completamente vazia, seus pais haviam morrido há alguns anos atrás. E desde então ela viveu sozinha aqui. Apesar de nossos apelos para que se mudasse, ou então alugasse algum dos quartos para uma outra pessoa morar, ela não mudou nem um instante sua posição, a sua intenção de viver sozinha.
Thais sempre foi uma garota reservada, praticamente nunca teve um namorado, e preferia ficar em casa que sair para farrear conosco. E a morte de seus pais apenas piorou um clássico quadro de anti-sociabilidade. Thais fechou-se dentro de si, e mesmo eu, que era seu mais intimo e antigo amigo, não conseguia faze-la sorrir.
Então o tempo nos afastou, como sempre faz com amizades verdadeiras. Talvez uma tentativa do destino de não querer que sejamos felizes. A felicidade é algo tão difícil de ser conquistada, e quando finalmente conseguimos, sempre tem algo que nos afasta dela. O mundo é traiçoeiro, devemos saber lidar com ele para não sermos eternamente passados para trás.
Foi com Thais que troquei meu primeiro beijo. Um beijo estranho, engraçado, como sempre os são os nossos primeiros beijos, as nossas primeiras vezes. Foi apenas um beijo, e nada mais. Depois disso, acabei arranjando uma namorada e, algum tempo depois, acabei indo de muda para a capital, e desde então nossos encontros se tornaram um pouco escassos. Mas sempre que podia, vinha lhe visitar ou mandava cartas ou e-mails para ela.
E agora nunca mais poderei fazer isso.
Ao entrar em seu quarto, mais lembranças antigas povoaram minha mente. Ele estava exatamente do mesmo jeito que me lembrava. A cor, a decoração, mesmo os sempre presentes ursinhos de pelúcia, ganhos quando criança, permaneciam nos seus eternos lugares. Acredito que devam ser doados a uma instituição de caridade. Muitas crianças carentes ficariam felizes com tal presente.
Então me deparei com um retrato seu, um lindo retrato tirado na minha casa de praia, onde estamos, eu e Thais, juntos, sorrindo alegremente para a maquina fotográfica.
Onde foi parar toda essa alegria, o que poderia ter acontecido para que ela cometesse tal insano ato?
Quando as lembranças e a saudade começaram a dissipar-se, notei que havia uma espécie de carta, escondida no fundo do retrato.
Retirei-a com cuidado, para não correr o risco de rasgá-la, e percebi que se tratava de um bilhete.
Um bilhete escrito por Thais.
Tratei de lê-lo o mais rápido possível:
A quem possa interessar:
Este será meu legado para os que ficarem neste mundo cruel. Onde os nossos sonhos nada são além de fantasia e ilusão. Onde o que quisermos nunca estará ao alcance de nossas mãos.
Onde desejos não são realizados.
Por que continuar a insistir em continuar viva, se todas as nossas esperanças se foram. E nada nos resta além da dor e do desespero?
Acabei de receber a noticia que tanto temia, e agora... Droga, não há palavras que descrevam o que sinto.
Ou talvez deste momento em diante não sinta mais coisa alguma. Estou morta, nada resta em meu interior além do gélido vazio da morte.
E nesta noite chuvosa, onde o vento açoita meu corpo, decidi que não vale mais a pena continuar a viver esta mentira.
Mantive este amor sempre somente para mim. Porém agora não posso agüentar a pressão.
Se o meu amor e minha vida não podem ser salvos, então prefiro leva-los junto para meu túmulo.
Não fiquem tristes por mim, apenas não consegui ser forte o suficiente. Nunca fui forte, e não seria agora que conseguiria.
Desejo uma boa vida para todos que ficarem, mesmo para ELE, afinal, a culpa não é dele, e sim minha.
A culpa sempre foi minha.
Adeus.
Thais
(beijos que queimam nosso interior, beijos que nunca poderão ser repetidos, beijos apenas vivos na memória).
Um amor, Thais tirou sua vida, abandonou todos que sempre se importaram com ela apenas por causa de um amor não correspondido. Era difícil de acreditar em tal carta. Acreditar em tal verdade.
Quem poderia ser este homem que partiu de tal maneira seu coração. Que poderia provocar esta tragédia?
Larguei a carta em cima de sua escrivaninha. E tratei de sair de seu quarto. Ele havia se tornado assustador, angustiante. Como se as paredes quisessem fechar-se sobre mim.
Então fui ao banheiro, passar uma água em meu rosto, e tentar retomar a calma.
Não foi a minha melhor idéia. Pois ao entrar no banheiro, recordei que foi ali que Thais tirou sua vida. Na velha banheira, deitada em um último banho, talvez uma tentativa de purificar sua alma e corpo, seus pulsos foram abertos, e seu sangue misturou-se a água, a coloração escarlate tomando conta, e então Thais deu seus últimos suspiros...
E restaram então apenas as lembranças.
Quando estava lavando-me, evitando olhar em direção a banheira, ouvi um som.
Um som de porta abrindo.
Alguém havia entrado na casa, não estava mais a sós com minhas memórias.
Mas quem poderia ter entrado? Quem teria algum motivo para entrar aqui?
A não ser...
A não ser que não fosse alguém.
Senti um medo irracional tomando conta de mim. Em minha mente, o temor de que esse alguém fosse Thais, ressurgindo da morte, vindo saber o que eu pretendia ali, em sua casa, esse temor era forte demais. Cheguei a pensar que perderia a consciência e, assim sendo, seria uma vitima fácil para o invasor.
Tratei de desligar a luz do banheiro e escondi-me, olhando fixamente de onde havia surgido o barulho.
Então uma luz foi ligada, e pude ver o vulto de alguém caminhando pela casa.
E era um vulto feminino.com absoluta certeza era um vulto feminino que estava na casa.
Minhas mãos começaram a tremer convulsivamente. A vontade que tinha era de sair dali o mais rápido possível, derrubando quem quer que fosse e nunca mais colocaria meus pés nesta casa novamente.
O destino, parecendo querer estragar meus planos, me fez derrubar uma lâmina no chão.
A lâmina que Thais usou para cortar seus pulsos.
- quem está ai? Perguntou a invasora, com um voz humana demais para ser uma renascida das profundezas do inferno.
Resolvi sair do banheiro, e então vi de quem tratava-se.
Era a prima de Thais, que vivia na casa ao lado desta. Possivelmente viu as luzes ligadas e veio checar quem estava aqui.
- oi, sou eu, Vinicius, lembra-se de mim?
- ah, sim, claro, lembro de você sim, como eu poderia esquecer?
Eu notei uma certa dose de desprezo em suas palavras, e mesmo sua cara parecia demonstrar um certo nojo. O que poderia ser que eu tinha feito para provocar tal reação?
- você era a última pessoa que esperava encontrar aqui dentro, Vinicius. O que está fazendo?
- nada demais, apenas relembrando, tentando manter em minha mente somente boas lembranças de Thais.
- um pouco tarde para isso, não? Ela disse com rancor em sua voz.
- como assim?
- deixa para lá, acho melhor você sair, não quero que ninguém veja movimento na casa de minha prima. Não quero ninguém entrando em sua privacidade.
Concordei com ela, na verdade eu estava sendo um pouco intrometido ao entrar aqui sem falar com ninguém. Mesmo eu tendo a chave da casa (a própria Thais tinha me dado), concordei que não devia estar ali. Não sozinho.
Mas decidi fazer uma última pergunta, a pergunta que não queria calar-se.
- você sabe quem era o homem pelo qual Thais era apaixonado? Eu sei que esse foi o motivo pelo qual ela resolveu tirar sua vida.
- você não sabe?
A surpresa na voz dela ela óbvia demais para não ser percebida.
- não faço idéia. Respondi.
- era você, Vinicius. O grande amor da vida dela sempre foi você. Ela me contou tudo. Desde o beijo que vocês trocaram na adolescência, a única razão da vida de Thais era você. E quando informou a ela sobre seu casamento, ela não suportou e se matou. Toda a responsabilidade sobre a morte de minha prima é sua, ouviu, sua e de mais ninguém.
E então o chão sob meus pés desapareceu, e cai, tonto pela revelação.
Um fardo que sempre irei carregar, a morte de minha melhor amiga era por minha causa.
Talvez um fardo pesado demais para ser carregado.