Diário de um caçador - Parte 2
Sorria. Devia estar assim havia longos minutos, pois sentia minhas bochechas retesadas doerem. Mas não conseguia deixar aquele sorriso. A peça que eu havia ido buscar era, ao que pude constatar, bastante antiga. A estatueta em questão era uma representação de Anúbis. O deus dos mortos dos antigos egípcios estava deitado em sua forma canina, as longas orelhas apontando para cima, como se estivesse alerta. A base sobre a qual estava deitado assemelhava-se a um pequeno sarcófago, cujos lados estavam repletos de hieróglifos que cansei de tentar traduzir na íntegra. A única coisa que pude reconhecer era um nome: Akheperre Setepenamun Hor-Pasebakhaenniut. Uma pesquisa rápida no Google – no hotel em que havia me hospedado havia acesso à internet, uma raridade em hotéis mais discretos na Rússia – me informou que esse era o nome do faraó Psusennes I, regente do Egito entre os anos de 1047 a.C. e 1001 a.C., data de sua morte. A peça deveria ter mais de três mil anos, ao menos eu assim calculava, mas seu estado de conservação era tal que qualquer pessoa poderia pensar que fora feita naquela semana. Não conseguia parar de admirar a peça, ainda que fosse sob o lusco-fusco indistinto das luzes dos postes das ruas pelas quais passava de táxi enquanto seguia para encontrar-me com meu contratante.
Estava ansioso, além de admirado. Essa ansiedade não se referia à peça que eu estava levando, mas ao que sua entrega ensejava, e eu sabia bem disso. Enfim, eu iria saber o paradeiro do desgraçado que arrancara de mim a única coisa que me restara de verdadeiramente valioso: minha doce Margareth. Sabia que estava lidando com uma criatura da mesma natureza do assassino de meu anjo de cabelos de fogo, sabia bem e aquilo me retorcia as entranhas de uma forma nauseante. Mas ele dissera que ia cooperar. “Traga-me a peça e eu lhe ajudo quanto ao que quer”, foram essas as suas palavras ao telefone semanas atrás.
Mas por que eu? Não passava de um advogado especializado em comércio internacional com uma assumida predileção pelo antigo Egito – predileção essa que me impingiu a aprender sobre a história e a mística daquela terra onírica, bem como suas antigas tradições, há muito mortas, e pouco de sua língua arcaica. Essa manipulação, essa propositura descabidamente imoral, havia me deixado possesso. Mas, afinal, que poderia eu fazer?
- Hotel Ritz-Carlton, senhor. São quarenta rublos.
Sequer havia notado que o carro tinha parado, tamanha era minha absorção naquelas considerações. Bem, isso deveria esperar. Primeiro, os negócios.
O motorista que dirigia aquele táxi tinha uma voz profunda e grave, como a de um velho sacerdote ortodoxo. Seus cabelos eram cortados à escovinha, mas dava para notar pelo retrovisor interno as profundas entradas em sua testa quadrada. As sobrancelhas eram espessas, bem escuras, coladas no rosto sisudo sobre olhos tremendamente azuis. Sua voz denunciava um sotaque do leste. Provavelmente era algum imigrante de Omsk, grande cidade siberiana, que tentava ganhar a vida honestamente na capital russa.
Meti a mão no bolso direito da sobrecasaca, onde estava minha carteira. Tirei cinqüenta rublos – gosto de dar gorjeta, especialmente quando encontro motoristas de táxi que não são falastrões e indiscretos. Troquei somente parte do meu dinheiro em rublos, ainda tinha uma boa quantia em dólares comigo.
- Spaciba. – agradeceu.
Já tinha guardado novamente a estatueta de Anúbis quando desci do carro, que deslizou rua abaixo. Estava na Rua Tverskaya, onde se localizava o hotel. Bares, restaurantes, cafés, aquele era um lugar propício para a efervescência intelectual que os governos soviéticos tão diletantemente tentaram suprimir. Ali perto localizava-se o Teatro de Artes de Moscou, que tornou o escritor Tchekov e suas obras bastante famosos. Havia lido isso em um guia turístico, não me lembro quando. Perto dali, as torres do Kremlin erguiam-se pomposamente, desafiando tudo e todos. Toda a cidade estava imersa em um ambiente pesado de fumaça, malícia e perigo.
Margareth teria ficado fascinada.
Guardei a carteira na sobrecasaca novamente e peguei o guarda-chuva, que estava na minha mão esquerda junto com a maleta. Caminhei para dentro do hotel, o guarda-chuva acompanhando meus passos como se fosse uma bengala – uma antiga mania que, bem sei, nunca vai me abandonar. A fachada do prédio era simplesmente magnífica. Cada volteio dos balcões decorados das janelas, cada curva e volta que a luz projetada fazia, tudo isso prometia um interior opulento, cheio de luxo e conforto.
Atravessei a porta giratória, e tive minha impressão confirmada. Uma mesa redonda de bronze com tampo de luzente vidro temperado sustentava um grande jarro dourado com as mais variadas flores a poucos metros da entrada. À direita, uma escada de corrimão dourado conduzia ao mezanino do lobby, sua forma perfazendo um C invertido. Colunas quadradas de mármore negro e capitéis quadrados decorados, com conchas em cada uma das faces e tingidos de ouro, sustentavam o mezanino e o teto do lobby. Subi as escadas e lembro-me de ter cumprimentado com um meneio de cabeça a funcionária do hotel que ajeitava o arranjo floral no hall de entrada.
Chegando ao mezanino, cujo chão era forrado de carpete negro, vi poltronas confortáveis espalhando-se pelo ambiente, onde hóspedes e funcionários transitavam e resolviam pendências. Grandes tapetes azuis de borda dourada, entrecortados por linhas diagonais que formavam losangos ao se cruzarem, com elipses púrpuras, igualmente cercadas de dourado com divisões losangonais, estavam dispostos homogeneamente sobre o carpete, surgindo aqui e ali como se a ele estivessem fixados.
O lugar estava bem iluminado, as lâmpadas fluorescentes ocultas pelos rodatetos cor de ouro. Quase tudo ali tinha detalhes dourados, inclusive os lustres de cristal que se projetavam do teto aqui e ali, cercados pelas ilhas de lâmpadas fluorescentes. Era, de fato, uma decoração opulenta. Cruzei o mezanino enquanto me aproximava da recepção. Eu não ostentava as roupas caras, nada que se comparasse aos ternos bem cortados de grifes italianas ou aos vestidos franceses ali exibidos. Além da sobrecasaca curta, que ia até a altura dos meus joelhos, eu estava com um par de sapatênis pretos, uma calça cinza de brim e uma camisa social branca semi-oculta por um pulôver grafite, a mesma cor do meu casacão. As golas da camisa estavam sobre as golas do pulôver, como sempre.
- Boa noite, senhor. Em que posso ajudá-lo?
Um rapaz de longos cabelos ruivos e olhos negros, uma aparência bastante exótica, me interpelou quando me recostei ao balcão da recepção. Ao contrário do motorista de táxi, seu sotaque tinha a típica malandragem moscovita. Que bom que eu mantinha o velho hábito de praticar o russo. Detesto ir a uma terra estranha e me comunicar somente em inglês. Soa naturalmente arrogante aos meus ouvidos.
- Há uma reserva em meu nome.
- Seu passaporte, por gentileza.
Ele deve ter notado meu patente sotaque de estrangeiro, ou teria pedido minha identidade. Tirei o documento do bolso esquerdo da sobrecasaca depois de colocar delicadamente a maleta com a peça sobre o balcão. Entreguei para o rapaz. Uma plaquetinha do lado esquerdo de seu peito, fixada sobre o casaco de brim de seu uniforme púrpura, continha o nome Andrusha. Teclou por alguns segundos e colocou um cartão em um aparelho que se assemelhava àqueles leitores de cartão de caixas eletrônicos. Entregou-me o passaporte e o cartão magnético após alguns segundos.
- Aqui está, senhor Diensoff. Suíte 706. Sua bagagem já se encontra no quarto, senhor. Desejo-lhe uma boa noite e uma excelente estadia.
- Spaciba, Andrusha.
Guardei o cartão junto com o passaporte e peguei de novo a maleta. Atravessei o saguão e cheguei ao hall de elevadores, onde me deparei com uma garota uniformizada na frente de cada um dos ascensores. Havia quatro ao todo, dois à direita e dois à esquerda. Um lustre hemisférico composto de pequenas gotas de cristal iluminava o hall. Atrás das garotas havia uma mesa de metal com tampo de mármore sobre a qual figuravam um grande vaso de porcelana semelhante a um troféu e, ladeando-o, dois abajures. A parede atrás dessas peças de decoração era enfeitada com um grande espelho com moldura dourada.
- Sobe.
A primeira garota da direita, a quem me dirigi, apertou o botão. Aguardei em silêncio. Quando o elevador chegou, embarquei sozinho e pedi ao ascensorista que me levasse ao sétimo andar. Não me recordo de seu rosto, devia ter uns traços comuns demais para que eu os guardasse. Saí do elevador quando as portas se abriram. O corredor tinha o chão coberto de macio carpete vermelho incrustado com tapetes em azul e dourado. A plaqueta diante do elevador indicava que devia seguir à direita.
Alguns metros adiante, dobrei à esquerda. Consegui ver a suíte, que ficava no fim daquele pequeno corredor adjacente. O número do quarto brilhava em uma plaqueta oval de metal cromado. Inseri o cartão magnético de lado, sob a maçaneta, e a porta abriu-se num clique. Hotéis decentes não usavam mais chaves, só aqueles que ainda tiram charme de uma atmosfera mais clássica.
O interior que revelou-se para mim era de um conforto encantadoramente luxuoso. As paredes eram pintadas em tom creme. O carpete que cobria o chão era amarelo-mostarda entrecortado de brancas linhas diagonais que se cruzavam, dividindo-o em losangos congruentes e formando pequeninos losangos marrons nas intersecções das linhas. Os móveis eram escuros com entalhes dourados. Na frente da porta de entrada, ao lado da porta que conduzia ao banheiro, havia uma penteadeira com um espelho oblongo, emoldurado na mesma madeira escura do móvel com detalhes de lótus dourados. Logo ao lado esquerdo da porta do quarto havia um sofá branco de dois lugares com acabamento em brim e motivos de flores diversas. Sobre ele havia almofadas verdes claríssimas com escuros motivos medievais, as bordas feitas em grossas linhas salmão, creme e verde.
A cama, ladeada por dois criados-mudos que ostentavam abajures longos e elegantes, era grande e espaçosa, provavelmente do tamanho que chamavam de king-size – eu nunca fui muito afeito a termos detalhistas demais para móveis, ao contrário de minha esposa, que Deus a tenha em bom lugar. Quatro pares de travesseiros, dois brancos e dois dourados divididos em duas colunas, estavam organizados intermitentemente sobre a cama, inclinados na direção da sólida cabeceira. A cortina do quarto era branca, ladeada de pesado cortinado tingido de dourado, verde e salmão.
Estava começando a ficar ligeiramente enjoado. As cores eram apelativas aos meus olhos. Gostava de coisas mais sóbrias, não daquela opulência. Talvez não fosse exatamente a decoração do quarto. Talvez fosse eu mesmo, uma rejeição que dirigia a mim e ao que estava orquestrando pouco a pouco de modo inelutável. A vingança a traria de volta a mim? Não. Aplacaria minha raiva, minha ojeriza? Talvez. Estava me entregando a um afã sanguinolento sem as devidas considerações. Afastava-as de mim na maioria das vezes. Havia momento em que não conseguia. Momentos como aquele.
Diante da porta que conduzia ao confortável banheiro contíguo, havia uma escrivaninha e uma confortável cadeira estofada de veludo verticalmente listrado em verde e dourado. Ao lado, uma poltrona de madeira cujo estofamento era o mesmo do sofá do recinto. Minha mala estava ao lado deste assento. Ah, seria ótimo tomar um bom banho.
Reli as linhas traçadas acima. Estou me tornando alguém detalhista demais para as coisas que não são lá verdadeiramente importantes. Pois bem, continuemos.
Tomei um bom banho. A ducha era forte, como eu gostava, e a água estava deliciosamente quente. Depois disso, barbeei o rosto e me perfumei com uma fragrância de Hugo Boss que Margareth havia me dado de presente havia três anos. Saí do banheiro e logo me pus a me arrumar para o encontro com meu contratante.
Vesti uma camisa social azul-cobalto de puro algodão e atei ao colarinho uma gravata branca de seda. O terno Zegna era azul-marinho, de seda Trofeo. A sobrecasaca branca era feita de dupla camada de casimira com gola redonda revestida de uma camada de lã. Olhei-me no espelho, reajeitando os cabelos. Meus olhos pareciam faiscar, destacados como estavam em função da roupa. Os pés estavam metidos em um par de sapatos brancos Allen Edmonds, modelo Copley, combinando com o cinto de couro da mesma cor que tinha na calça.
Peguei a maleta com a estatueta. Caso tivesse nascido no antigo Egito, teria vindo a este mundo sob o signo de Anúbis. Era ele quem conduzia as almas dos mortos para a presença de Osíris e pesava-lhes o coração com uma pluma branca, a Verdade. Para merecerem a ressurreição, o coração deveria ter o mesmo peso da pluma. Do contrário, estariam as almas condenadas ao Duat, o submundo. Amargurado, sorri. A ironia do destino era ácida demais. Eu estava sendo o verdugo, agora. Eu estava pesando os corações.
Saí de minha suíte e desci ao lobby. Sabia que meu contratante esperava-me no lounge que havia no lobby, um lugar de decoração clássica. As paredes eram todas revestidas de madeira escura, a iluminação sendo feita por discretas lâmpadas espalhadas pelo teto e por velas dentro de grandes taças de vidro sobre as mesas. Perfilavam-se na frente do balcão uma dúzia de poltroninhas estofadas com couro verde-musgo. As mesas redondas espalhadas pelo recinto eram cercadas de poltronas de espaldar baixo com estofamento vermelho ornado de motivos de rosas.
Reconheci meu contratante em uma delas. Sua aparência denotava que devia ser uns quatro, talvez cinco anos mais velho do que eu. Usava um sóbrio terno preto e uma camisa de lã cinza, a gola rolê avolumando-se ligeiramente na base de seu pescoço. Era bastante alto – estava sentado, mas pude supor que sua altura devia aproximar-se de um metro e noventa, quem sabe um pouco mais. Estava sozinho, e parecia degustar algum tipo de licor, pois havia uma tacinha cheia diante de si, sobre a mesa.
- Boa noite. – disse, cumprimentando-o. Vi seu rosto erguer-se na minha direção, a cabeça esmeradamente raspada brilhando suavemente sob a iluminação do local.
- Marcus. Como sempre, no horário.
- Não gosto de esperar nem me fazer esperar, senhor. - murmurei, e ofertei a ele meu sorriso mais vago e simpático. Senti os cabelinhos de minha nuca arrepiarem. Era patente que aquele homem não era mais uma criatura vivente.
Repousei a maleta no chão, ao lado dele. Ele a pegou e abriu, conferindo o conteúdo. Sorriu, tornando a fechá-la em seguida. A satisfação era evidente.
- Excelente. Excelente.
Procurou dentro de seu paletó alguma coisa, e tirou do bolso interno esquerdo um celular moderno, última linha. Discou um número e levou o aparelho ao rosto.
- Pode fazer o depósito. - disse, tão logo fora atendido pela pessoa do outro lado.
Fechou o aparelho, guardando-o novamente. Depósito? Mas sequer havia fornecido a ele qualquer conta bancária minha. Franzi ligeiramente o cenho, mas nada que durasse muito tempo. Repousou a maleta no chão, entre nossas poltronas. Seus olhos cinzas focaram os meus, e repudiei uma forte dor de cabeça que aguilhoou-me.
- E Steffen?
- Teve o destino merecido. – respondi.
- Hmm... - o homem sorriu um tanto mais abertamente. - Ótimo. Realmente, não me lembro de um dinheiro tão bem investido.
- Bondade sua, senhor. - disse. – Mas não fiz este serviço pelo dinheiro, e o senhor bem sabe.
- Sim, sim, sei sim.
Da poltrona ao seu lado ele tirou um envelope pardo. Não havia notado que estava ali. Ele me entregou a peça de papel. Peguei, sem demora, e conferi rapidamente seu conteúdo. Havia mapas, fotos e endereços.
- São os lugares que o assassino de sua freqüenta. A torre fotografada é, possivelmente, seu refúgio.
Recoloquei tudo novamente no envelope. Olhei para ele. O cheiro forte de tabaco e álcool enchia o ambiente.
- Aceita uma vodca? – inquiriu ele.
- Seria excelente, senhor Rustovich.
Meu agora ex-contratante virou-se na direção do balcão, erguendo a mão direita.
- Garçom!