Que caiam as pedras
Delicado, o jovem padre curvou-se, observando o conteúdo do buraco. A luz era insuficiente para revelar detalhes, mas percebeu que estava diante de uma ossada. Tentou imaginar o que o velho padre fazia com uma ossada enterrada sob o altar da igreja, quando se descontrolou e deu um salto, tropeçando e se debatendo desajeitado contra o mármore do altar, rastejando como podia para longe do buraco.
– Acalme-se, Antero – disse o padre Norato tentando segurar seu braço sem sucesso – não há o que temer.
– Vi a ossada se mover. O peito subiu e desceu, o queixo mexeu e da boca saíram palavras – gritou apavorado, segurando o crucifixo de prata que pendia do pescoço e iniciou uma ladainha.
Graça a sua experiência, Norato dirigiu-se ao primeiro degrau do altar e sentou-se. Pegou seu próprio crucifixo e começou a polir com uma dobra da batina.
Levou quase uma hora, mas por fim as preces cessaram e o jovem padre se moveu. Norato observou o companheiro aproximar-se do buraco e olhar para dentro temeroso, depois aguardou que engatinhasse até onde se encontrava e o encarou. Não esperou pela pergunta. Não era necessária.
– Cândida, é o nome da mulher sob o altar. Está viva e repousa no que alcunhou como sendo “seu bento solo português”. Isto se dá desde antes das caravelas chegarem ao seu Brasil, meu rapaz.
– Mas como pode uma coisa como aquela estar viva? Um demônio não pode habitar a casa do Senhor. E aquilo – apontou a mão segurando o crucifixo para o altar – só pode ser um demônio. Ossos, pele e nada mais. E os cabelos? Metros de cabelo esbranquiçado ao redor, como se crescessem indefinidamente. Não, nada além de um demônio teria tal forma e permaneceria em vida.
– Antero, creia em mim. Quando assumi esta igreja, o padre anterior me mostrou o mesmo lhe que mostro. Contou-me a história e eu a passo para ti. Ouvirás? – Indagou, aguardando a resposta que se deu com um meneio de cabeça.
– Pois então ouve. Essa mulher, Cândida, foi uma das mais ricas viúvas destas terras. A igreja a nossa volta foi construída por ela. Cada uma dessas pedras colocada pra não ceder jamais. Sorte da obra. Azar da coitada – calou-se e meditou um momento – ou sorte, quem saberá?
– Como é possível? Informaram-me que a igreja tem mais de mil anos.
– Informação boa. O caso é que Cândida era velha antes da construção. Viúva com o marido no inferno. Pecador pela avareza. Avareza esta, que do falecido passou para ela. O diabo a teria em breve. Sabes que o diabo tem a alma dos avarentos, não é? Quando estava velha e perto de morrer, Cândida desesperou-se com a proximidade do inferno e cometeu seu grande erro: Rezou. Durante dias e dias, rezou ao céu para ter mais tempo na terra. Sabia que não poderia ir ao paraíso, mas aqui evitaria a danação. Tanto o fez e com tanto afinco que um anjo veio um dia e pactuaram. Cândida construiria uma igreja e enquanto as paredes permanecessem de pé, ficaria viva.
O jovem tornou a olhar para o altar, engolindo seco ao ver a imagem de um arcanjo esculpida no pedestal de mármore.
– Sim, foi uma grande estupidez. A igreja ficou pronta rapidamente. A fortuna permitia tal feito. Uma igreja de pedra, firme e robusta. A igreja foi concluída e Cândida sentiu-se segura. Anos se passavam e sobrevivia, mantendo a alma distante das portas do inferno, no entanto creio que sabe o que foi ocorrendo, não? Filhos, netos, amigos, vizinhos, todos morreram. O tempo passou e deixou de somar anos, para somar séculos. A aparência definhou. Foram restando apenas ossos e lembranças. Passou a levar os dias sentada, na porta de casa, perguntando a quem passava se enfim a igreja havia caído. Passou a rezar para que as pedras fraquejassem, mas nada.
Antero olhou ao redor e um tremor passou por sua espinha. As paredes eram tão grossas e as pedras tão compactas que poderiam agüentar mais um milênio, mesmo sem manutenção.
– Sim, quem saberá o quanto essas paredes ainda permanecerão de pé? Cândida compreendeu isso e um dia pediu ao padre daqui, depois de contar sua história, que pudesse permanecer sob o altar, deitada, até que o mesmo sucumbisse. Está lá desde então, orando sem parar. – Venha, recoloquemos a pedra em seu lugar.
O jovem padre não queria acreditar no que ouvia, porém não discutiu. Assumiria a igreja no dia seguinte e avaliaria o caso. Limitou-se a auxiliar Norato com o piso. Quando cerrava o buraco, ouviu a reza saindo pela fresta ainda aberta.
– Reza para que Deus absolva seus pecados? Quer que Deus recolha sua alma para junto de si? – Antero perguntou baixinho, lacrando totalmente o buraco.
– Creio que por alguns séculos pediu isso – respondeu o Norato erguendo-se –, mas depois de tanto tempo sofrendo, deixa-se de acreditar em Deus. Até o inferno se torna mais simpático. Tudo o que pede agora, é que caiam as pedras.
Fim.
Richard Diegues é escritor, autor do livro "Magia - Tomo I", colaborador dos sites "Círculo de Crônicas" (www.circulodecronicas.com) e co-editor do NecroZine (www.necrozine.blogspot.com). Faça uma visita de cortesia e aprecie muitos outros trabalhos em ambas as páginas.