LADRÕES DE SONHOS

Manhã de terça-feira. Uma forte cerração envolvia as ruas de Mauá, município de São Paulo. Djalminha subiu aos pulos as escadarias da estação de trem. Tetéu, como era conhecido pelos amigos de serviço, estava extremamente nervoso. Não conseguia acreditar ainda no que estava acontecendo. Extrovertido, sempre alegre, ganhara o apelido de Tetéu em alusão a uma ave muito comum em sua terra natal, Oeiras, uma pequena cidade encravada lá nos confins do Piauí. E por ser um grande contador de histórias dos sertões de onde nascera e vivera até os dezoito anos, acabou ganhando o apelido dessa ave, da qual sempre se referia em suas narrativas.

Tetéu destacou um dos vales-transportes e feito um corisco passou pela roleta. Correu até a plataforma, pois percebera que o trem vinha se aproximando.

Passou as mãos pelo rosto, e a todo o instante beliscava-se achando que tudo aquilo fosse um sonho.

—Meu Deus do Céu, eu não acredito! Ainda ontem eu não tinha um vintém no bolso, e hoje... Acordo milionário.

Assim que as portas do trem se abriram, as pessoas se acomodaram da melhor maneira em seu interior, e ao apito do comando de operações, as portas se fecharam e o trem seguiu viagem.

—Essa é a última vez que ando de trem. Quero ser um filho de quenga se eu voltar a pisar nessa coisa!

Teve vontade de gritar pra todo mundo que ele agora era milionário, só iria andar de carro importado e helicóptero. Porém a muito custo conseguiu se conter e manteve-se calado.

Bem a sua frente estava o narigudo. Um sujeito com pinta de Doutor. Terno, gravata e um óculos que lhe dava ares de intelectual. Tetéu detestava aquele cara. Certo dia, sem querer, pisou em seu pé ao tentar entrar no trem, e ao pedir desculpas o sujeito o mediu dos pés a cabeça e não respondeu nada. Tetéu ficou no maior veneno.

E lá ia Tetéu viajando em seus pensamentos e conversando baixinho consigo mesmo.

—Vai xaropão! Narigudo! Nariz de cheirar peido! Tu tá pensando que é Doutor... Tu és um Zé Ninguém que não tem onde cair morto!

E lá ia o trem cruzando as estações, pincelando no rosto de Tetéu todos os sonhos que se poderia imaginar. Quem diria que o pobre Tetéu um dia iria virar doutor. “DOUTOR DIJALMA”, em letras graúdas e douradas. E pensar que há poucas horas nem mesmo dinheiro para pegar o trem o pobre diabo tinha. Pedira vinte reais emprestado com o cunhado para comprar os passes de trem e agora como em um conto de fadas amanhecera dono de uma enorme fortuna. Acertara na Mega-Sena que estava acumulada em quase Trinta Milhões de Reais. Era dinheiro pra cacete. Tetéu nem tinha noção do tanto de dinheiro que era tudo aquilo. A única coisa que sabia é que nunca mais iria trabalhar para ninguém.

Tetéu olhou pela janela do trem e leu o letreiro em uma das colunas da estação que se aproximava.

“PREFEITO SALADINO”

—Cacete, ainda estamos em Saladino.

Suas mãos estavam trêmulas. Um frio danado corria-lhe pelo corpo todo. Vez ou outra varria com os olhos todo o vagão do trem pra ver se ninguém o estava observando.

—Calma Tetéu! O único que sabe que você é um milionário é você mesmo. Não há motivo para tanto medo.

Na sexta-feira, por incrível que pareça, vendeu o último passe de trem que ainda tinha para poder jogar na mega-sena. Quem fez o jogo para ele foi a Cidinha, uma colega de serviço, que todos os dias pela manhã corria os bancos para pagar as duplicatas da empresa. E fora ela mesmo que na segunda-feira, logo que voltou do banco, trouxe-lhe o resultado.

Tetéu guardou-o no bolso da camisa e só conferiu as dezenas sorteadas quando chegou em casa. Quase caiu duro. Cravara as seis dezenas. Sujeito rabudo. As chances de se acertar são de cinqüenta milhões para um, e ele conseguira isso.

—Caracolas! Quase trinta milhões. Nem sei o que vou fazer com tanto dinheiro...

—Com licença moço!... Ei moço, com licença!

Tetéu estava tão distraído que nem percebera que estava atrapalhando a passagem de uma senhora gorda com um óculos dourado grudado na cara e com ares de antipática

—Desculpa tia.

Tetéu se afastou e a senhora desceu do trem resmungando algo que o Tetéu não conseguiu entender.

—Já estamos no Ipiranga?

—Não... Aqui é Tamanduateí... Ipiranga é a próxima. --Respondeu-lhe um senhor a sua frente.

Tetéu curvou-se para observar melhor pela janela.

—É mesmo, o senhor tem razão, aqui ainda é Tamanduateí.

E lá se foi o trem seguindo viagem, carregando no rosto de cada um as esperanças e as desilusões que a vida nos prepara.

Sacoleja daqui, sacoleja dali, e a cada estação mais gente se acotovelava com destino a estação do Brás.

Tetéu encarou mais uma vez o narigudo dentro de seu terno, e comentou consigo mesmo:

—Olha o bosta! Parece um Doutor! Narigudo xarope... Se eu me invocar compro essa porra desse trem e não deixo você andar mais nele.

“ESTAÇÃO MOOCA”

O trem parou e assim que as portas se abriram um senhor com um boné, que trazia estampado em suas laterais a propaganda de um deputado, saiu empurrando todo mundo para poder descer.

—Ô seu cavalo, não enxerga não?

Gritou uma mocinha que estava em pé junto à porta.

—Vá te danar! To pedindo licença e ninguém sai da frente. -- Respondeu o homem.

As portas se fecharam e o trem seguiu em frente, chegando finalmente ao Brás. Ali Tetéu faria baldeação pegando o metrô para Santa Cecília.

Assim que entrou no vagão, avistou lá no fundo a Cidinha e o Jorjão. Tetéu acenou com a mão e sentou-se distante deles. Jorjão cochichou algo no ouvido da Cidinha e começou a rir.

—Que será que aquele cuzão tá rindo? Pilantra, só porque tem um carguinho na empresa pensa que é o dono do mundo. Ce tá ferrado viu xará! A primeira coisa que eu vou fazer é comprar aquela merda e te mandar embora.

Nesse instante Tetéu lembrou-se de sua distante Oeiras. Suas caçadas, suas aventuras, seus amores e dissabores. A vida lá não era fácil não, mas ele sentia saudades. Lembrou-se do pai, da mãe, dos irmãos e de todo mundo. Não voltara até agora por pura vergonha de não ter conseguido nada nesses quinze anos que por aqui ficou. Casara-se, tivera dois filhos, uma menina e um menino, e uma casinha em terreno invadido que, com muito custo, conseguira erguer um quarto e cozinha. Era só isso e nada mais.

—Ô pai!... Ô mãe! Eu sou milionário. Agora sim eu posso voltar sem ter vergonha de encarar todo mundo.

Os olhos de Tetéu brilhavam feito faísca. Sua imaginação criavam asas e voava entre nuvens azuis de um céu cor-de-rosa, onde tudo era legal e o mundo era um reino de encantos e magias.

—Vou comprar terra pro pai, ele agora vai ser fazendeiro, não precisa mais se matar num cabo de enxada. Vou construir um baita açude pra nunca mais faltar água pros animais e pras plantações. Mãe a miséria acabou, a senhora vai virar madame. Agora a senhora é pessoa importante, muita gente vai ter que se ajoelhar aos teus pés.

Tetéu saltou de seus pensamentos assim que o alto falante do metrô anunciou a próxima parada.

“Próxima estação... Sé. Desembarquem pelo lado esquerdo do trem.”

Após o desembarque de várias pessoas as portas se fecharam e o metrô seguiu viagem.

Agora já mais vazio dava pra ver melhor a Cidinha e o Jorjão sentados lá no fundo.

—É Jorjão, você não perde por esperar. Você gosta de tirar um sarrinho, gosta de humilhar as pessoas...

Tetéu coçou o queixo e encarou os dois lá no fundo. Cidinha retribuiu com um sorrizinho amarelo.

—Hoje eles vão ter uma surpresa. Assim que eu chegar lá na firma, vou subir até o DP e pedir a conta. Eu só quero ver a cara do Seu Joaquim quando eu disser pra ele que eu quero comprar a empresa. Eu to sabendo que eles estão quebrados. Ele nem vai acreditar. Com certeza vai pensar que eu estou ficando doido.

Tetéu encarou novamente os dois lá no fundo.

—É Jorjão você vai ter que comer na minha mão. Primeiro quero te humilhar bastante, depois vou te dar um pontapé bem dado nessa sua bundona gorda e te mandar pro meio da rua.

Tetéu começou a sentir um calor gostoso correr pelo corpo todo. Já se imaginava numa baita mansão em Copacabana, bem encostadinho a praia. Ou então na piscina de uma suíte, no edifício mais luxuoso do Morumbi. Ô vidão! Tetéu agora era milionário, ia curtir a vida de montão.

Finalmente a voz misteriosa anunciou que a próxima estação era Santa Cecília.

Assim que desceu avistou a Cidinha e o Jorjão que o esperavam logo à frente. Tetéu se aproximou e os dois ficaram olhando para ele.

—Bom dia Tetéu!

—Bom dia Cidinha!

Jorjão como sempre apenas balançou a cabeça e limitou-se a olhar com o canto dos olhos para Tetéu.

—Tá tudo bem Tetéu? --Perguntou a Cidinha

—Tá tudo bem graças a Deus!

—Alguma novidade?

__ Ué... Novidade por quê? --Indagou Tetéu

—Nada... To só perguntando!

Tetéu percebeu que algo estranho estava acontecendo.

Caminharam alguns metros em silêncio até que a Cidinha perguntou:

—E o jogo Tetéu, conferiu?

Tetéu mais do que depressa inventou uma desculpa.

—Pô Cidinha, você não vai acreditar! Pois não é que eu perdi o resultado que você me trouxe.

—Ah... Então você não conferiu o jogo?

—Conferi nada. Eu vou passar agora na lotérica ali da praça e pegar o resultado. --Respondeu Tetéu.

—Graças a Deus! --Gritou Cidinha.

—Ué... Graças a Deus por quê?

—Sabe o que é Tetéu? Ainda bem que você não conferiu o jogo! O pessoal resolveu fazer uma brincadeira com você, olha juro que eu não queria, mas graças a Deus que você perdeu aquele resultado.

—Brincadeira? Que brincadeira?

Tetéu começou a sentir as pernas bambearem e o coração bater feito pipoqueira.

—Bom... Como eu havia decorado as dezenas que você sempre joga, o pessoal pediu para que eu marcasse os mesmos números, naquele papelzinho que você deixou comigo para anotar o resultado, só prá te sacanearem.

Tetéu empalideceu-se na hora. Ficou branco feito cera. As pernas começaram a tremer e a barriga a burilar como se estivesse com desarranjo intestinal.

—Olha Tetéu eu juro que foi idéia do pessoal lá de cima. Eles insistiram tanto que eu acabei cedendo. Era só uma brincadeirinha. Ainda bem que você perdeu o papel em que eu havia marcado o resultado, se não depois eu ia morrer de remorsos.

Tetéu ficou completamente paralisado. Meu Deus aquilo não era possível. Tantos sonhos, tantos planos e de repente era tudo mentira. Não, aquilo não era justo. Permaneceu em silêncio, enquanto caminhavam.

—Você vai passar na lotérica né?

Perguntou Cidinha.

—Vou... É... Eu acho que vou.

—A gente vai indo então, porque eu e o Jorjão vamos passar na padaria pra tomar um café. Tchau.

—Tchau!

Enquanto a Cidinha e Jorjão sumiam lá no fim da plataforma, Tetéu, completamente arrasado, sentou-se em um banco ali da estação. Colocou as mãos sobre o rosto, desmoronou bruscamente sobre si mesmo e começou a chorar. Chorou como nunca havia chorado em toda sua vida. Em seus trinta e poucos anos de existência nunca sentira uma dor tão grande como a dor que estava sentindo naquele momento. Em segundos viu todos os seus sonhos desabarem como se fossem insignificantes castelos de areia.

O narigudo passou por ele sem dar-lhe a menor importância. Apenas olhou com o canto dos olhos, ajeitou a gravata, balançou a cabeça e fazendo o maior pouco caso do mundo passou todo imponente como se fosse um doutor.

Naquela terça-feira ensolarada, que prometia praia para o fim de semana, Tetéu não foi trabalhar. Ficou de mal com o mundo e só voltou só na outra semana para pedir a conta.