Ronda
Pequeno texto baseado na música maravilhosa do paulistano Paulo Vanzolini, gravada por diversas vozes, como Maria Bethânia e Cláudia.
Toda “noite eu rondo a cidade” a sua procura. Faça chuva, calor ou frio, ando pelas calçadas da Santa Cecília, do Centro e do Arouche olhando para dentro dos bares. Mas “você não está e volto pra casa abatida, desencantada da vida”.
Antes de dormir, penso no vazio que você me deixou e sinto tanto sua falta como a abelha da flor. Fecho os olhos no travesseiro, sonho com você, e estendo a mão para o lado, movida pelo hábito, tentando alcançar seu corpo, que sempre foi uma extensão do meu e que ali não se encontra mais. No lençol branco, permaneceu seu calor, seu cheiro de homem. Então choro e soluço, uma criança sem a mãe.
Em nosso quartinho, todo o pouco que ficou de você encontra-se no mesmo lugar. Olho suas sandálias de dedo, velhas e sujas, seu cinzeiro de vidro e a camiseta do seu time. Outra coisa carrego comigo: sua semente em minha barriga.
Antes de conhecê-lo, na padaria, na fila do pão, não acreditava que o destino pudesse me trazer algo de bom. A seu lado conheci o paraíso. Moramos no quartinho da Rua das Palmeiras como dois pássaros, por vários meses. Mesmo pequeno, havia sobra no cômodo, pois nossos corpos, grudados feito fruta em filipe, ocupavam um só lugar no espaço.
Limpava, escovava, passava, cozinhava, chutava o cachorro, recebia bronca da patroa e não me sentia cansada. Sabia que à noite teria dois braços fortes para me proteger. Você nunca trabalhou. Mas em nenhum momento lhe faltou ovo frito, maço de cigarros, cachaças e a sinuca. Sempre que saía pela manhã, ainda ouvindo seu ronco, deixava uma nota em cima da mesa.
Para bem vesti-lo, trazia camisas e calças que meu patrão não usava mais. No guarda-roupa, havia estoque suficiente para que você não repetisse o mesmo par durante toda uma semana. Lavava as roupas no tanque nas manhãs de sábado. Aquelas que secavam, passava no domingos, dia em que também limpava o nosso quarto e cozinhava o seu baião-de-dois.
Enquanto tudo isso eu fazia, você andava de bar em bar, conversando sobre futebol e olhando as mulheres que passeavam rumo à Praça da República ou visitavam pacientes na Santa Casa. Com um delas, soube depois, você fugiu, levando meu pagamento guardado na bolsa. A mesma bolsa que até hoje carrego comigo em minhas rondas noturnas.
Por mais de uma vez encontrei, em nosso quarto, pequenas peças de roupa de mulheres. As quais não me pertenciam. Conivente, jamais cobrei alguma explicação. Apenas pegava as peças e jogava no saco de lixo. Até mesmo o cheiro de perfume barato eu sentia, como se tais mulheres ainda estivessem por perto.
Continuo minha caçada noturna. Mesmo se alguém me alertasse, “desista, esta busca é inútil”, eu não deixaria. “Hei de encontrar você, com outras mulheres, rolando um dadinho, jogando bilhar.” Nesta noite, então, abrirei minha bolsa, onde carrego um pequeno revólver. No dia seguinte, os jornais da cidade irão noticiar na primeira página: “Cena de sangue num bar da Avenida São João”.