A morte não manda e-mail
O elevador parou no trigésimo andar. Assim que as portas se abriram, aquele homenzinho de terno preto e chapéu coco, de aproximadamente um metro e cinqüenta, perguntou se estava descendo.
Humberto que estava parado próximo aos controles do elevador, respondeu que sim e se afastou para que o homem entrasse.
Olharam-se de relance e permaneceram em silêncio. Aquela sensação estranha, novamente, começou a tomar conta de Humberto. Suas mãos tremiam e um suor gelado descia-lhe pelo rosto, acompanhado de um arrepio que lhe percorria toda a espinha.
Na verdade ele sentia um certo medo de tudo aquilo. Sempre que acontecia, ele perdia totalmente o controle e o domínio sobre si próprio. Parecia que as forças do mal lhe incorporavam, obrigando-o a cometer aquelas coisas.
Tudo começou no consultório do dentista. Enquanto o pobre homem lhe examinava os dentes, começou a sentir quase do nada, uma certa dormência nos braços, a cabeça começou a girar e como se houvessem apagado as luzes, as vistas se escureceram e ele não viu mais nada.
A única coisa que se lembrava é que quando se deu por conta estava com uma faca na mão e o dentista caído, com a cabeça quase degolada. Havia muito sangue esparramado pelo chão e pelas paredes. Vários móveis e materiais odontológicos estavam esparramados também pelo chão, indicando que, antes de morrer, o homem havia entrado em luta corporal com Humberto.
Quando percebeu o que havia feito, jogou a faca sobre a poltrona e saiu correndo daquele lugar. Desceu as escadas aos pulos, entreabriu a porta que dava para a calçada, e após se certificar que ninguém o estava vendo, saiu dali apressadamente e foi direto para a casa.
Por mais que tentasse não conseguia dormir. Parecia ainda sentir o cheiro de sangue em suas mãos. Aquela cena horrível não lhe saía da cabeça.
Nos dias que se seguiram, Humberto pouco saía de casa. Tinha medo que tudo aquilo voltasse a acontecer novamente.
Passaram-se três meses e a vida parecia estar voltando ao normal quando resolveu, naquela manhã de setembro, visitar uma cliente que lhe havia telefonado no sábado. Assim que chegou, ela que já o estava aguardando, pediu que entrasse.
Era uma senhora de aproximadamente cinqüenta anos, que apesar da idade, trazia ainda no rosto traços de uma beleza singular, que o tempo maldosamente insistia em furtar para si. O marido morrera há aproximadamente quatro anos e ela, apesar de toda sua vaidade, dizia sempre em conversa com as amigas, que não tinha mais interesse em arrumar outro homem.
Humberto tirou os catálogos de dentro de uma pasta que trazia consigo e os expôs á aquela senhora.
Enquanto a mulher folheava um dos catálogos, Humberto pediu permissão para ir ao banheiro. Ela o acompanhou até o corredor que dava para um dos cômodos da casa e indicou-lhe com o dedo a porta de acesso ao mesmo.
Humberto observou, ali dentro do banheiro, uma pequena caixa, toda trabalhada em couro de cor preta, com uma inscrição em letras douradas, provavelmente em alemão, gravado na tampa da caixa.
Abriu-a por curiosidade e observou em seu interior, de veludo vermelho, uma navalha de barbear, de cabo branco e com as mesmas inscrições que havia visto antes na tampa da caixa. Provavelmente deveria ter pertencido ao marido daquela senhora.
Tirou-a de dentro da caixa, abriu cuidadosamente a lâmina, deixando-a em posição de corte e passou-a de leve sobre o braço esquerdo, observando que a mesma ainda se mantinha com a afiação perfeita.
Foi aí que de repente começou a sentir outra vez aquela estranha sensação. A mesma que sentira alguns meses atrás no consultório do dentista e que culminou com tudo aquilo.
Tentou se controlar, mas não conseguiu. De repente como da outra vez, aconteceu o apagão, e a única coisa que se lembrava era de ter visto a pobre mulher caída sobre o sofá com o corpo todo ensangüentado e um enorme corte no pescoço por onde, ainda, esguichava muito sangue.
Sem compreender o que havia acontecido, correu para o banheiro, lavou a navalha e a colocou novamente dentro da caixa. Passou pela sala e se deparou mais uma vez com aquela horrível cena. Apavorado e sem saber o que fazer, deixou o lugar em desabalada carreira, esquecendo-se de levar consigo os catálogos que havia deixado com aquela pobre senhora.
Aquela era a única pista que a polícia tinha em mãos. Alguns catálogos de jóias semipreciosas, que levaram os policiais a seguirem aquela linha de investigação.
Descobriram a empresa responsável pelos catálogos. Uma indústria de jóias semipreciosas, que faziam um trabalho quase artesanal, situada na zona leste.
Infelizmente não tinham um controle específico para entrega de catálogos. Tanto é que sobre o balcão, na entrada da sala de recepção, ficavam vários catálogos a disposição de quem estivesse interessado em revender os produtos.
Para a polícia era muito pouco, mas era o que eles tinham.
Nos meses que se seguiram, mais quatro assassinatos aconteceram. Todos eles apresentavam as mesmas coincidências de detalhes.
A polícia, porém, continuava de mãos atadas. Por incrível que pareça o responsável por tudo aquilo não deixava nenhum tipo de pistas. Nenhum sinal, nenhum vestígio, nenhuma brecha. Nada que os levassem ao autor dos supostos assassinatos em séries.
Há poucos dias atrás encontraram uma garota de quatorze anos, morta em um parque, com os mesmos requintes de crueldades ocorridos das outras vezes.
Uma testemunha disse ter visto um homem de aproximadamente trinta anos rondando ali pelo local onde encontraram o corpo. A descrição dada por essa pessoa batia exatamente com todas as características de Humberto.
A polícia agora trabalhava em cima desse novo detalhe, na tentativa de encontrarem o autor de todas aquelas mortes.
Tentavam juntar as peças daquele difícil quebra cabeça, procurando se agarrarem a qualquer tipo de informação que resultasse em algo positivo para o esclarecimento de tudo aquilo.
Acreditavam que a qualquer momento chegariam ao suposto criminoso. Pelo menos agora eles tinham em mãos um retrato falado daquele que seria o principal suspeito até o momento. Com certeza um psicopata de requintes cruéis e sem muita noção de valores espirituais que levam uma pessoa a valorizar a vida através de sentimentos de amor ao próximo.
E agora ali no trigésimo andar daquele prédio, naquele sábado à tarde, já fora de expediente, com quase mais ninguém ali dentro, encontravam-se no elevador Humberto e aquele pobre homem que com certeza seria mais uma vítima da ferocidade assassina daquele psicopata com sede de sangue.
Numa viagem que pareceu durar quase toda uma eternidade, o elevador veio descendo em queda lenta, passando direto por todos os andares, numa morosidade que tornava ainda mais preguiçoso aquele final de tarde. Finalmente chegou ao piso térreo. As portas foram se abrindo quase que em câmera lenta e assim que se descerraram por completo, aquele hominho de terno preto e chapéu coco, saiu calmamente ali de dentro e dirigiu-se ao corredor de aproximadamente vinte metros que ligava o saguão a uma enorme porta de vitrais coloridos que dava saída para a rua. Cumprimentou a velha faxineira que lavava as paredes com o auxílio de uma vassoura fixada a uma enorme vara que alcançava o teto.
----Boa tarde, minha senhora!
----Boa tarde! --Respondeu a mulher.
----Tá quente hoje né?
----Tá sim!
Respondeu a faxineira sem tirar a atenção de seu serviço.
Aquele estranho homem continuou andando lentamente e sem virar para trás acrescentou quase gritando:
--- -Eu adoro esse calor! Quanto mais quente melhor!
A mulher não respondeu. Continuou o que estava fazendo sem dar muita atenção a aquele senhor. Apenas olhou com o canto dos olhos e observou, espantada, que o homem havia desaparecido quase do nada. O armário no meio do corredor estava com as portas abertas. Dirigiu-se cautelosamente até ele, achando que, talvez, aquele homem estivesse mexendo em alguma coisa ali.
Não havia ninguém. Fechou as portas do armário e correu até a rua para ver se via alguém. Nada também. Apenas alguns vira-latas vagabundeavam pela rua deserta, a procura de restos de comida.
Voltou pelo corredor e percebeu que misteriosamente as luzes haviam se apagado. Caminhou lentamente, tateando pelas paredes, até encontrar o interruptor, que ficava em uma coluna de mármores preto, próximo a entrada do saguão.
Assim que estendeu as mãos para tentar acender as luzes, sentiu algo caindo sobre suas costas e a garganta sendo riscada como se alguém lhe houvesse cortado com uma lâmina.
Caiu sobre o balde, esparramando a água pelo corredor. Por duas vezes tentou levantar-se, mas não conseguiu. Apoiou-se, aturdida, sobre uma pequena escada junto à parede e finalmente conseguiu se por em pé. Tateou novamente a parede até que conseguiu acender as luzes. Passou a mão pela garganta e apavorou-se ao vê-la manchada de sangue.
Entrou em pânico nesse momento. Teve a impressão de ver alguém se mexendo por entre as caixas de material que seria usado na reforma do primeiro andar. Aterrorizada, permaneceu estática, esperando pelo pior. Há meses vinha acompanhando o caso do psicopata sanguinário, pelos noticiários da televisão. De repente, quase do nada, aquela coisa pulou por entre as caixas, caindo em pé bem na sua frente. Um grito, um passo pra trás, quase que instintivamente, na tentativa de se salvar daquele monstro impiedoso. Caiu novamente, desta vez sobre o chão molhado, machucando o joelho, tal a violência da queda. Quis gritar, mas não teve força. Implorou ao Pai criador que a livrasse daquela triste sina. Ela viúva há pouco tempo, cuidava de quatro netos pequenos, herança deixada por sua filha que havia morrido num acidente, juntamente com o marido. Não... ela não merecia morrer dessa maneira.
Foi nesse momento que ela viu bem a sua frente o causador de toda aquela confusão. Um inofensivo e indefeso gato, tão assustado quanto ela.
Ela havia deixado o cabo do rodo encostado no interruptor e o danado deve ter encostado-se a ele, provocando aquele apagão.
Quando, da primeira vez tentou acender a luz, o bichano deve ter se assustado e no desespero de fugir deve ter pulado sobre ela, provocando-lhe um pequeno ferimento na garganta.
Refeita do susto, enxotou o gato para fora do prédio, e já ia começar a enxugar a água que havia escorrido pelo corredor, quando percebeu que havia alguém caído dentro do elevador. Aproximou-se cautelosamente tentando reconhecer quem era que estava caído ali. Entrou em choque ao presenciar a brutalidade da cena. Lá estava Humberto, caído de bruços sob o assoalho do elevador. O pescoço estava quebrado e a cabeça virada para traz. Os olhos esbugalhados e o rosto retraído num misto de medo, pavor e pânico, como se houvesse visto o diabo. A velha faxineira colocou as mãos sobre a cabeça, soltou um grito que ecoou por todo o prédio e prostrou-se ao chão desfalecida, deixando como testemunha de mais um crime apavorante, apenas as paredes do elevador, que insistiam permanecer caladas, como se nada houvesse acontecido.