II - A Folha no Carpete
O que aquilo poderia querer dizer? Encaminhou-se para a cozinha.Talvez fosse um conselho amigo. Mas ele não tinha amigos. Nunca investira seu tempo em fazer amizades e em todas as implicações que um relacionamento como esse pode acarretar. Jogou a folha de papel no lixo e, com um assovio de dissimulação, foi se trocar para comprar pão.
Estava atrasado.
Colocou um casaco pesado e até luvas, pois julgava estar bem frio, pela brisa que soprara pela porta instantes atrás. Deteve-se. E se não devesse mesmo sair de casa aquele dia? Seria horrível, não poderia comprar seu pão, “sem pão morrerei de fome muito em breve... é capaz de até à tarde eu já ter morrido”, não poderia varrer seu quintal, “as folhas vão se amontoar até que cubram minha janela e eu morra sufocado sem ar aqui dentro”, nem molhar seu jardim, “minhas plantas, minhas únicas companheiras, morrerão todas sem água...por certo que morrerão...e eu não poderei fazer nada...”. Parou. Não sairia de casa aquele dia. “Minha vida nunca mais voltará a ser a mesma...está tudo acabado...minha vida acabou...” e sentiu como se alguma mão poderosa estivesse esmagando seu estômago. “Já posso sentir que iniciei meu processo de definhamento... vou morrer aqui, se não de fome, sem ar, ou se não, com certeza, de solidão”. Cambaleou até o sofá e de afundou nas almofadas. Começava a ficar sem ar. A sala se tornou abafada, encurralando-o por todos os lados, quente. Começou a chorar. Nunca pensou que tudo fosse terminar assim, em sua própria casa, aquele fim inesperado. Lágrimas brotavam-lhe abundantemente. Era um choro honesto. Sincero. Desesperado. Olhou para fora por uma fresta da janela e parecia que o sol não estava o mesmo aquele dia, estava mais morto, distante, não parecia confortante. Embaixo de seu grande chapéu-de-praia julgou ter visto as camadas de folhas crescendo e crescendo, chegando cada vez mais perto do parapeito da janela. Chorou ainda mais. Levou a mão à nuca, arrancando os cabelos e lembrou que estava com fome. Muita fome, uma fome que nunca tivera antes, uma fome de vida, de uma segunda chance para tudo, uma fome de ser feliz, coisa que nunca fora, uma fome de ter amigos, de descuidar do jardim um dia ou dois, de comprar bastante pão e ter de torrar alguns por terem endurecido, de deixar o despertador tocar e tocar até que cessasse o alarme, fome, enfim, de tudo que nunca fizera até aquele dia — e agora estava quase acreditando que já não poderia mais fazer — por medo ou por achar que o mundo acabaria caso não seguisse a mesma rotina todos os dias. “Mas não é justamente o que está acontecendo ao meu mundo agora? Acabando?”. E então percebeu que dependia dele, só dele tomar as rédeas daquilo que sua mente tinha involuntariamente convertido em um pesadelo a galope.