A CONFISSÃO
A lua já estava alta no céu e dentro do mosteiro, muitos dos clérigos já haviam se retirado para seus aposentos. O abade Luigi, clérigo visitante, que havia chego, fazia poucos dias, incumbido de implantar o projeto de Roma de revitalizar as igrejas, mosteiros e abadias, valorizando e trazendo as artes plásticas e artistas para o convívio da igreja, transitava pelo corredor principal vindo da biblioteca e em direção a seu aposento; quando por entre as sombras das velas e archotes surgiu de novo, aquela estranha figura.
Debaixo de sua pesada roupa, com o rosto encoberto pelo capuz de seu hábito, ele seguiu furtivamente em direção ao abade Luigi. Luigi assim como os outros, tinha um sentimento profundo de piedade por aquela alma que ainda habitava um corpo marcado pelas chagas do fogo e pela maldade do ser humano e que ainda assim mesmo tendo sido espancado, quase que totalmente queimado e tendo tido a língua cortada, ainda nutria um profundo carinho pelo próximo e uma extrema dedicação para com seus semelhantes. Talvez por isso, a pessoa do Arcebispo de Aquitânia, impiedoso, rancoroso e preconceituoso, tenha permitido que este pobre homem permanecesse em seu convívio, a pedido do abade Constâncio.
Tendo percebido que ele o havia seguido até seu quarto, Luigi parou diante da porta ainda fechada e quebraria o silêncio da noite em seguida.
Monsenhor Vergeliere, o Arcebispo, era famoso por seu autoritarismo e por seus métodos pouco ortodoxos na hora de resolver questões políticas. O abade Luigi pouco pode ver sobre esta maldita fama do Arcebispo, mas pode perceber durante o período de sua estada no mosteiro de Aquitânia, que o terror aflorava nos olhos dos habitantes do local, sempre que ele aparecia ou que se falava seu nome. E sentiu também que algo estava para acontecer nos bastidores, pois devido seu convívio com a arte, era extremamente desenvolvida sua sensibilidade. E graças a sua sensibilidade, ele pode perceber também que havia algo de estranho e familiar na fisionomia daquela pobre e sofrida figura conhecida apenas por Raul.
- Pobre Raul, em que posso eu ajuda-lo a esta hora da noite. – Falou carinhosamente o abade Luigi, postando uma mão sobre a outra em frente a seu corpo ao ver a figura estática e encapuzada de Raul a sua frente. Em sua direita segurava um volume da bíblia e em sua esquerda um terço bizantino, herdado de sua avó materna.
A figura sombria de Raul parecia ter ensaiado um sorriso. Um sorriso que Luigi já parecera ter visto...
- Raul, Raul! Venha! – Chamou o abade Constâncio, aparecendo em uma das passagens do corredor.
Tendo ouvido o abade chamar, Luigi o cumprimentou com um aceno e fez menção de entrar, já pensativo, tendo sido seguro por Raul. Em resposta ao chamado de Constâncio, Raul fez um gesto ríspido com a mão pedindo que este esperasse e pareceu balbuciar algo, despertando a atenção de Luigi.
Tendo em vista estes novos acontecimentos, a cabeça de Luigi parecia girar, como um caleidoscópio, onde sucessivas imagens eram substituídas e Raul se tornava cada vez mais familiar... Sim, familiar. Esta era a palavra.
Constâncio não se conteve e correu em direção aos dois, pegando Raul pelo braço, dizendo – Vamos, vamos.
Raul parecia ter algo importante a dizer, mas naquele momento foi levado bruscamente pelo abade Constâncio que por entre sorrisos nervosos dirigidos ao companheiro Luigi, saiu levando Raul sem dar explicações.
Dentro de seus aposentos, Constâncio joga Raul sobre a cama e fecha a pesada porta dizendo.
- Você quer por tudo a perder? Justo agora que estamos tão próximos?
- x -
Deitado em sua cama, sozinho no escuro de seu quarto, acompanhado apenas de seus pensamentos, Luigi refletia o que aquela figura sombria poderia querer transmitir-lhe e o que de tão familiar ele tinha visto, por entre as sombras, naquele sorriso. E do que poderia ter medo o abade Constâncio? O que tramariam os dois e o que de tão importante esconderia do mundo, os corredores do mosteiro de Aquitânia?
Seus pensamentos vagaram e o sono demorou a chegar, vindo somente por intermédio de Deus, entre uma Ave Maria e outra de seu sagrado terço bizantino.
Ao raiar de um novo dia, Luigi ainda se lembrava dos acontecimentos da noite anterior e estava ainda intrigado com o que poderia perturbar o abade Constâncio. Levantou-se de sua cama, fez sua higiene matinal, como de costume e se dirigiu à sala de refeições no intuito de interrogar Constâncio e de uma vez por todas, impedir que este novo problema venha a lhe afastar o sono outra vez.
Na grande mesa de madeira rústica onde era servido o desjejum, procurou atentamente com os olhos pela figura de Constâncio, achando-o, logo em seguida, mordendo um pedaço de pão e conversando com outros padres. Pode perceber no entanto, que sua fisionomia se alterara, no instante em que seus olhos se cruzaram.
Serviu-se com o leite fresco e uns dois pedaços de pão e se dirigiu sem chamar muita atenção para sentar-se próximo a ele. No percurso, entretanto, fora chamado pelo próprio Arcebispo, para conversar em particular. Constâncio escapou por hora...
- Vamos, Beranger, levante-se! Tenho palavras importantes a trocar com o abade Luigi! Este nobre visitante em missão de valorização da Santa Igreja, nomeado diretamente por sua Santidade o Papa! – Esbravejou Vergeliere para seu acólito, que muito a contragosto, deu seu lugar ao lado do Arcebispo para o abade Luigi.
Beranger era uma figura esquálida, não muito alto, cabelos escuros, meio longos, o que era estranho para um seminarista. Possuía uma franja reta e os traços finos de seu rosto unidos a seu corte de cabelo e suas mãos delicadas, faziam-no parecer não com um rapaz, mas sim com uma frágil donzela.
Sem o menor interesse nas palavras do Monsenhor Vergeliere, Luigi sorria e tentava sempre manter a boca cheia para que em nome da boa educação, não fosse obrigado a responder as indagações idiotas proferidas pelo Arcebispo e ao mesmo tempo tentava controlar com o olhar os movimentos de seu colega de batina, Constâncio. Este, assim que pode, tendo entrado no jogo de perseguição visual proposto pelo abade Luigi, se desvencilhou dos serviços culinários por uma porta lateral e desapareceu completamente de suas vistas pelo dia inteiro.
- Carlos, tem que ser hoje!
- Sei disso, Constâncio, sei disso.
- Não podemos fraquejar.
- Mas e Beranger? Somente ele me preocupa.
- Pois esqueça suas preocupações. Nesta tarde enquanto fugia dos olhares persecutórios do abade Luigi, encontrei-o rezando na capela do lago, peguei-o de jeito pelo braço e nosso dialogo seguiu dessa forma:
- x -
- Venha, Beranger, você precisa se confessar.
- Que é isso abade Constâncio, já me confessei esta semana... abade, o senhor esta machucando o meu braço.
- Cale esta boca seu frutinha! O que tenho para você são planos para salvar sua vida.
- Como ousa me chamar...
- Já mandei calar-se! Escute! Muito faz quem ouve do que quem faz asneiras. Tu foste descoberto e também Vergeliere, abade Luigi veio a mando do interventor e não do Papa. Muitos estão contra ele e tu sabes que o povo o odeia e a ti por conseqüência.
- Que posso fazer padre? Amo aquele homem.
- És um imbecil! Não por amar outro homem, coisa que é comum na Igreja, não que eu goste ou admita este fato, entenda bem, é inevitável. Mas ele é um crápula, um assassino.
- Pois eu também sou, santo padre, matei por ele, menti por ele, roubei por ele e estou amarrado a ele até o final de minha vida.
- Não digas isso jovem sem cérebro! Ou Deus te castigará e o amarrará a ele de verdade para uma eternidade de sofrimento.
- Deus já me castiga padre, por ter que vê-lo com outras mulheres e homens em suas orgias.
- Pois isso acabará e esta noite. Esta é a sua chance de se libertar.
- Não sei se vou conseguir.
- Vai conseguir ou eu te mato. Você é inteligente e muito melhor do que ele. Ainda há tempo para que você redima seus pecados e se torne alguém de verdade dentro da Igreja. O que tem que fazer é entrete-lo, dar-lhe bastante vinho e não deixar que ele saia do mosteiro esta noite.
- Você é louco, Constâncio. Pode ter posto tudo a perder!
- Louco? Eu tinha de fazer alguma coisa e fiz. E você sabe muito bem do meu poder de persuasão.
- Mas como você bem sabe e disse, ele ama o arcebispo.
- Ama muito mais sua própria vida. É uma miniatura de crápula isto é o que é. Talvez sem Vergeliere ele se endireite, se não se endireitar, matamos ele também.
- Eu mato não é Constâncio.
- Aos olhos do Deus dos homens, ambos somos culpados, aos olhos do verdadeiro Deus, somos apenas mensageiros de sua glória.
- Me divirto com você Constâncio, você e seus verbetes ilustrativos. Somos assassinos, isso sim.
- Somos cavaleiros, Carlos, em busca da honra, da paz e da glória do reino na terra.
- Tudo bem, mas não precisa usar o seu poder de persuasão comigo. Matar Vergeliere vai ser um prazer, seja pela glória ou por ser cavaleiro. Se serei herói ou assassino pouco importa, o que importa é faze-lo pagar pelos crimes que a muito vem cometendo.
- Fique aqui. Não saia daqui. Se perguntarem por você direi que esta doente ou coisa do gênero. Não podemos perder o que pode ser nossa última oportunidade. Mais importante ainda do que mata-lo é sairmos ilesos desta empreitada. Você conhece os planos e a justiça divina. Aja corretamente e o povo será recompensado.
Constâncio saiu do aposento e a tarde já se fazia noite, como combinado, cobri-me com a pesada manta e deitei-me no quarto. O silêncio me levou ao mundo dos sonhos, interrompido horas depois pelo ranger da porta.
- Constâncio? É você?
Tendo sido acordado de forma tão abrupta, não pude perceber de quem era a voz que falava próximo a meus ouvidos e sem me controlar respondi:
- Quem está ai?
- Essa voz!
- Luigi, é você?
- Você não é mudo, Raul! Farsa! – Num impulso, o abade Luigi que já havia desconfiado de alguma trama, se pôs a sair em direção à porta, ato que impedi num reflexo. Peguei-lhe o pulso e disse:
- Calma, Luigi, olhe para mim, me escute.
- Não, não quero escutar nada. Largue-me, me deixe ir.
- Padre eu quero me confessar.
- Nunca! Não escutarei a confissão de um morto.
- Não, tem que ser desta forma, Luigi. Por favor.
- Tem que ser da sua forma, sempre. Você não sabe o que é o amor?
- Sei e tanto sei que não queria te fazer sofrer e preferi trazer comigo este sofrimento.
- Por que Carlos?, por que não me contou?
- Escute Luigi tinha de ser assim.
- Chorei sua morte e você só me diz que tinha de ser assim?
- Espere Luigi! Não foi você que viu seus homens morrendo numa emboscada diante de seus olhos e não pode fazer nada?
- Você está morto Carlos e morto para mim vai continuar. Era você quem devia ter morrido lá e não eles.
- Sei que não é isso que quer pai, mas...
- Pai? Como ousa me chamar de pai?
- Foi o único pai que tive e é assim que irei lhe chamar sempre Luigi.
- Pois chame do que quiser, esta farsa irá acabar, custe o que custar.
- Os mudos não falam.
- Carlos não é mudo.
- É um morto padre, que vai levantar do tumulo para levar consigo Vergeliere.
- Por que não me disse?
- Lhe disse padre, em confissão.
- E agora, como eu fico? Sabendo que quem estava morto está vivo e correrá novo risco de vida ao tentar matar o Arcebispo de Aquitânia.
- Faça o que quiser padre.
Com lágrimas nos olhos e com a voz que quase não saiu, Luigi se soltou e da soleira da porta falou:
- Farei o que tiver que ser feito, mas o tempo mostrará, que não é assim que as coisas têm que ser. – Saiu aos prantos e cambaleando de tontura, chegando a cair na porta de seu aposento, de joelhos, mas pode ouvir as últimas palavras de Carlos ressoando em sua cabeça, pois sabia que jamais as esqueceria.
– Que assim seja e que Deus nos abençoe.