I - A Folha no Carpete
Lucas era uma pessoa normal, normal até onde se pode considerar uma pessoa com uma vida milimetricamente sistemática como extremamente normal. Não era desses de conferir se a porta estava trancada girando a maçaneta quatro ou cinco vezes, mas era realmente difícil, para não dizer impossível, encontrá-lo realizando alguma atividade diferente daquelas cotidianas, como comprar pão, molhar o jardim e varrer o quintal.
Aquela manhã o despertador não tocou: havia acabado a energia durante a noite. Ao acordar, dez minutos mais tarde que o planejado, Lucas julgou que seu dia já seria horrível.
“Como não pensei que isso poderia vir a acontecer? Que catástrofe, perdi um tempo valioso do meu dia, meu Deus.... vou telefonar agora mesmo para a CPFL e...” mal terminou seu pensamento quando notou alguma coisa totalmente fora da paisagem habitual de sua sala: uma folha de papel repousava delicadamente sobre o canto do tapete impecavelmente limpo e uma leve brisa soprava pela fresta da porta entreaberta.
Com horror, Lucas ficou observando o papel e a porta, não preocupado com quem ou o que o deixara ali, mas desesperado com o que faria naquele instante. Era uma coisa completamente nova em seus dias de marasmo: uma folha de papel no tapete. Seria patético se não fosse extremamente sério para aquela figura parada ali, ainda de pijama e olhos inchados, que estava começando a travar um conflito psicológico com os batalhões de seu cérebro porque seu general não lhe dava nenhuma idéia de como agir com o inimigo: a folha de papel.
Gritou de desespero e voltou correndo para o quarto, se enfiou embaixo das cobertas e permaneceu ali, ofegante, por dois longos minutos. Engoliu seco e decidiu voltar, talvez as coisas tivessem voltado ao normal por ali e ele já poderia começar a realizar suas tarefas tão importantes — agora mais rápido, já que estava atrasado.
Dirigiu-se cautelosamente ao batente que levava à sala, ancorando suas costas contra a parede, como um policial preste a infiltrar-se em um covil de traficantes. Espiou de rabo-de-olho e por um instante segurou a respiração: ela ainda estava ali. Percebeu que suava. Uma gota lhe escorreu pelo nariz. Neste instante a porta bateu e foi como que houvesse sido disparado um tiro ao seu coração. Estava assustado. Medo.
Não poderia fazer nada hoje enquanto não se livrasse daquele empecilho, daquele monstro que estava no tapete da sala. E o tempo trabalhava a favor do contratempo.
Virou à direita, entrou no banheiro, deu duas voltas na chave e mirou-se no espelho.
“Ah, vamos lá, é só uma folha de papel. E ela nem é tão grande assim...” — esboçou um sorriso.
“Mas e se ela está ali justamente para que eu a pegue?”
“Mas se você não se livrar dela será pior, já pensou não poder ir à padaria e ter que ficar sem comer?”
“A questão não é pegá-la ou não, a questão o é: ela nunca esteve ali.”
“Vamos, seu estômago está roncando e você está cada vez mais perto da morte enquanto fica aí pensando”.
Milhares de idéias lhe passaram pela cabeça enquanto esteve ali, mas a que mais lhe assombrou foi “você está perdendo tempo enquanto decide o que fazer para não perder tempo. Faça alguma coisa, MEXA-SE”.
Reuniu toda a coragem que tinha e foi pisando duro até a sala. Pisou o taco morno e se posicionou no canto do tapete. “Muito bem, viu como de perto ela nem parece tanta coisa assim?”. Agachou-se e pegou a folha com o polegar e o indicador — nessa hora sem saber porque lembrou que havia assistido a um filme que dizia que o ser humano era um ser racional pois possuía duas qualidades essenciais, uma delas, a de ter o polegar opositor. Pensamento engraçado.
Trouxe a folha até a altura dos olhos e então viu que ela não estava em branco: havia algo escrito, em letras estranhas, com uma tinta vermelha.
É MELHOR NÃO SAIR DE CASA HOJE...