O testamento
"Um, dois, três...” Começou, prudentemente, como quem espera encontrar um degrau falso no caminho. No portal, perto de onde as nuvens lançam carícias sobre a torre da construção, era onde o musgo parecia terminar. Úmido e escorregadio, grudado como pele no granito, fez o homem tropeçar mais de uma vez antes mesmo de contar vinte passos.
– Inferno! Bastava ser tarde! Onde esteve com o juízo, Simão, para aceitar vir aqui?
Mesmo o Tobias havia desdenhado da tarefa. “O maldito e ganancioso Tobias”, repetia entre os dentes, o advogado. “A intuição é conselheira, camarada! Não traço caminhos perpendiculares no rumo do dinheiro fácil”. O crápula parecia estar certo, mais uma vez!
Arquejou contra a elevação, roçando as pedras com a ponta dos dedos à procura do equilíbrio, carregando a mala de couro sintético puído nos cantos, arfando.
Quando o vento soprou mais forte contra seu corpo, trazendo o frio cortante que vem com a chuva gelada e que parecia não demorar, deixou-se despencar sentado no degrau: “cento e quinze”!
Olhou sobre os ombros entrevendo, abatido, a fachada que se erguia à distancia de mais da metade do caminho.
– Se me levantar agora, farei meu próprio testamento!
O homem havia ligado pela manhã, mas a história não chegou primeiro à sua mesa. Aliás, ninguém parecia lembrar-se da sala à esquerda, no final do corredor, a menos que nenhum dos outros doutores da “Mendes & Associados” demonstrasse interesse pelo assunto. No começo, o homem alto e gordo digeriu razoavelmente a situação: era um novato, condição que herdou do Tobias. O contrato firmado com o dono do escritório, o senhor Adolfo Mendes, não exigia de si nenhuma cota de desempenho, mas era preciso sujar as mãos, de vez em quando. Além disso, ressentia-se do pouco dinheiro que tinha para comer, vestir-se e pagar o aluguel do quarto minúsculo, dividido com um gato, uma prateleira de livros de direito e uma outra cheia das ficções de Perry Rodan – com que, aos trinta e poucos anos, ainda se divertia!
– Meu próprio testamento, é o que me espera!
Começava a temer que fosse representar um dos clichês de Hitchcock, num castelo cheio de portas rangentes e segredos perdidos dentro de cômodos trancados com a recomendação para que não fossem abertos. Talvez o trabalho que o esperava não tivesse relação com o testamento de um velho moribundo, ansioso para legar suas relíquias decadentes para um sobrinho distante ou um mordomo afetado. Não! Estava prestes a ser servido em retalhos temperados no molho do próprio sangue sobre a mesa de seres vampirescos, ávidos por sorvê-lo antes que perdesse o calor natural.
A ironia criada pela frustração da sua mente exausta, ligou em Simão alguns neurônios de autodefesa. Num súbito, entendeu que a escuridão começava a ser anunciada pelas últimas aparições do sol miúdo, através das nuvens agora carregadas e das copas das árvores que ladeiam a escadaria. “Uma verdadeira floresta”, admitiu o advogado. “Uma floresta povoada por pássaros de cantos risonhos e insetos saltitantes”.
Antes que pudesse reagir, as partes desprotegidas do enorme corpo de Simão foram tomadas por mosquitos, cujas picadas criaram protuberâncias instantâneas e doloridas. Quem sabe, eles estiveram ali desde o lapso em que desmoronou sobre os degraus e o fugaz delírio de há poucos momentos, mas, agora que os havia percebido, levantou-se a contragosto, espalmou contra os visitantes indesejados e ajeitou o paletó.
Olhou para baixo e depois para cima, duvidando que ambos os caminhos lhe reservassem as melhores opções. Não é que fosse um covarde. A dúvida era se conseguiria chegar ileso ao calor de uma lareira – se é que o anfitrião fosse dado a hábitos hospitaleiros – ou se a conveniência exigia atrasar o compromisso até o dia seguinte.
Pensou, então, na despensa vazia e nos comentários sarcásticos de que seria alvo no escritório e, como quem se conforma com o destino incômodo, aumentou o passo na direção do portal.
Seria capaz de trocar todas as brochuras de Perry Rodan pela capacidade de teletransportar-se uma única vez. Melhor: ele os trocaria, de boa vontade, por um guarda-chuva, eis que a garoa, que ainda resistia a completar o ambiente soturno da sua desventura, começou, finalmente, a cair.
Custaram-lhe vinte minutos para atingir a enorme entrada, onde duas gárgulas, encravadas no muro rochoso, o saudaram pouco amistosas.
A visão da propriedade não ajudou a confortá-lo. As trilhas que margeavam a grandiosa residência, atrás da qual despontava uma torre ainda mais alta, pareciam ter sido abertas por animais. Para ir do portão, previamente escancarado, até a porta gigantesca, fabricada em carvalho carcomido, atravessaria um matagal imenso. Não havia uma calçada para guiá-lo. No chão distinguiam-se, aqui e ali, os contornos baixos do que talvez tivessem, um dia, sido os limites de um jardim.
– Santo Deus! Seria impressionante encontrar um telefone lá dentro!
Pisando sobre as pedras que definiam os cercados das plantas, e assim, quase como a percorrer um labirinto sob a chuva, cada vez mais compacta, chegou, finalmente, à soleira, na entrada descomunal do castelo.
Postadas sobre duas colunas, uma em cada lado da porta, duas esfinges esculpidas em pedra observaram, com sua apatia estática, a chegada do intruso.
As portas, que não tinham fechaduras, estavam cerradas e ninguém acudiu às batidas de Simão. “Talvez por causa do barulho da chuva”, imaginou.
Empurrou-as timidamente e as fez ceder, sem dificuldade.
Gritou, mas não foi atendido.
Não havia luz no castelo, contudo, a réstia de sol permitiu divisar, em uma espécie de painel de bronze, uma tocha presa por armação em cuja base pendia um recipiente cheio de um óleo amarelado e espesso.
Tirando um isqueiro da pasta, cuidando para não encharcar os papéis, meteu fogo no óleo, que iluminou uma parte do grande salão. Acendeu a tocha.
Não gastou muito tempo para descobrir que sua presença, ali, era um fabuloso equívoco: os móveis, cobertos por panos que há muito deveriam ser brancos, não chegavam a contrastar com o piso, onde uma densa camada de poeira fornecia a tela para que os ratos nela gravassem os seus caminhos.
As paredes eram enfeitadas por dezenas de molduras de onde deveriam ter-lhes sido arrancadas as pinturas. Menos uma, na subida de uma escadaria.
Caminhou em direção da parede oposta, aproximando-se da obra de arte para mirar-lhe o conteúdo, curiosamente brilhante em relação às demais mobílias, de aparência ocre.
Foi andando e assimilando. Pouco a pouco. Repentinamente, ao compreender a cena estampada diante dos seus olhos, parou hirto.
Na tela, um distinto cavalheiro, empunhando uma tocha, estava a fitar um espelho. Atrás de si, refletidas, as imagens de duas gárgulas e duas esfinges, caminhando em sua direção.