Maria Aparecida no elevador

'Edifício Paraíso' era o que dizia o letreiro daquele prédio antigo. As letras em ferro já não tinham mais a presença do “E” que deixou somente sua marca por tanto tempo que ali estivera. A porta para entrada no prédio era semelhante às portas das solitárias das penitenciárias. Nas paredes do longo e estreito corredor, marcas do estado a que encontrava: mofo, riscos. E o cheiro de “umidade” era praticamente insuportável. Ao final do corredor, degraus de escada davam de frente a uma porta de madeira velha com uma janelinha gradeada. O elevador era uma das pouquíssimas (senão a única) coisas que eram positivas naquele prédio.

Ali moravam o policial aposentado José Antônio com sua mulher e seus dois filhos, a empresária falida Verônica com seu chaw-chaw e Maria Aparecida que vivia em solitária companhia. O restante dos apartamentos estavam abandonados. O prédio estava prometido de implosão.

O mês era janeiro. Passou o natal, o ano novo, e agora era o período das férias. Jose Antonio foi com sua família para o litoral e retornaria somente após o carnaval. O mesmo fez Verônica. Maria aparecida estava por ir visitar seu pai no interior como fizera todos os anos anteriores, mas neste seria diferente, pois seu pai morrera a 10 meses de insuficiência cardíaca; doença que levara, também, sua mãe e seu irmão mais velho.

A casa fora vendida, Maria Aparecida ficou sem onde passar suas férias. Na verdade, ela era dona do maior apartamento daquele prédio e, até pensara em comprar o edifício e reformá-lo, afinal, ficara com herança de toda a família no decorrer dos anos. Um vasto espaço com uma cozinha enorme logo que entra no recinto, uma sala com um sofá meia-lua repleto de almofadas, um corredor com mais cinco portas. Maria aparecida tivera dois filhos que morreram em um acidente com a Kombi escolar. Os quartos permaneceram ocupados com os pertences das crianças porem ninguém tocava ou entrava neles. Ainda havia um escritório, um banheiro no corredor e o quarto de Maria que comportava uma cama de casal, um enorme closet, um banheiro com banheira de hidromassagem, um televisor de 29”, um aparelho de DVD, um enorme tapete verde. Do encosto da cama, Maria, todas as manhã, admirava a vista da grande janela: carros passando, algumas árvores em fase de deterioração, o tempo bom e o ruim.

Um dia após todos abandonarem o prédio e usufruir férias e descanso, o telefone de Maria toca. O “alô” desanimado de Maria Aparecida foi retribuído por um “bom dia”. Maria respondeu, ainda desanimada. A voz viril do outro lado da linha perguntava se era da Funerária “Vá Com Deus”, e a mulher não pensou duas vezes antes de bater o telefone. Alguns segundos depois o “trrrriiim” deixa Maria com os nervos a flor da pele. “Alô” – ela disse - e a resposta foi com insultos e palavrões dos mais variados. Maria Aparecida, de imediato, arrancou o fio da parede. Levantou-se e, sem antes apreciar a visão catastrófica de sua janela, dirigiu-se à cozinha, abriu a geladeira a fim de encontrar algo pra comer ou beber e só encontrou uma caixa de leite desnatado aberto a uns cinco dias atrás e alguns pães de forma, alface, tomate com bolor, manteiga, presunto e queijo. Nada o suficiente para uma refeição. Foi até o escritório, apanhou uma caneta e uma caderneta, voltou à cozinha, abriu os armários e foi anotando o que faltava, foi até o quarto e anotara coisas que poderiam estar em falta também no banheiro. Era sábado e na segunda-feira era o dia da faxineira dar uma geral antes de tirar suas férias também. Dirigiu-se a porta de saída, deu uma olhadela para trás, esquecera do dinheiro, retornou ao escritório, abriu a segunda gaveta da mesa e pegou o talão de cheques. De volta à porta, deu outra olhadela para dentro, nada esquecido, puxa a porta e segue o caminho do elevador. Enquanto aguarda que ele suba, olha à sua direita e à sua esquerda e nada de vizinhos, dos poucos vizinhos. Reflete sobre suas férias e nada conclui. O som estridente anuncia que o elevador está em seu andar. Abre a porta em madeira, e puxa para sua direita, uma grade. Dois passos e está dentro do elevador. Vira-se, puxa a grade para sua esquerda, aperta o botão de seu andar, a porta se fecha e o elevador desce. Uma pequena truncada pára o cubículo por segundos, tempo suficiente para apavorar Maria. Retorna ao normal e chega ao térreo. Ela sai do elevador e vai a direção da enorme porta de ferro. No vão entre o chão e a porta, percebe um jornal, coleta-o e folheia-o ali mesmo. Em uma das páginas o titulo “As Férias da Sua Vida – venha para o Beach Park”, Maria pensa, fica por alguns minutos lendo e relendo aquela mesma página e, antes mesmo de colocar a chave na fechadura da porta, retorna seu caminho. Pensa consigo mesma: “Essas são as férias da minha vida. Não posso ficar neste lugar”. Retoma o elevador, outra truncada, mais uma leve subida, mais uma truncada e nada mais, nenhuma movimento a mais. Admirada com a página e com a decisão que tomara, Maria fica por um tempo sem perceber o que estava acontecendo. O tempo que sua mente calculara faz com que Maria Aparecida estenda o braço com o intuito de sair. Mas o que, enfim, percebe, é que não se tratava de ser a hora certa de descer. O sorriso misturado ao pavor estampava o rosto dela. Olha em sua volta, e não demora muito se dar por conta que estava presa ao elevador. Algumas batidas na grade e alguns gritos por socorro são o suficiente para perceber que não havia ninguém, além dela, naquele lugar. Tenta controlar seu pânico sentando no chão, deixando que seus olhos sejam lavados por uma fina porção de chuva e que logo inundaria seu rosto fazendo daquele pequeno espaço seu próprio oceano. Por quanto tempo ficaria ali ela não sabia, mas tinha certeza de que uma hora a achariam.

Março, o mês estava iniciando, as férias acabadas, as festas que agitavam o carnaval chegaram ao fim. A rotina estava voltando ao normal. O momento das famílias retornarem aos seus lares, de retomarem suas atividades, de estudo. O Edifício Paraíso terá seus moradores de volta e os poucos apartamentos que se mantêm ocupados receberão seus entes novamente. Verônica é a primeira a passar a chave na porta e entrar no prédio depois de um longo e gostoso período de férias. Logo ao entrar, seu olfato detecta um cheiro insuportável. Pensa consigo mesma sobre o estado daquele prédio, mas que não deveria ser pra tanto assim. No entanto, toma por si e por seu pensamento que chamaria, o mais rápido possível, alguém para dar uma geral naquele lugar. O lindo cãozinho corre para o elevador e passa a latir desesperadamente. Verônica chega até a porta manda que o bichano cale a boca, sente que o cheiro forte vem de dentro do elevador. Imagina um bicho morto por lá. Aperta o botão para que desça. Nada acontece. Sobe pelas escadas até o quarto pavimento, direciona-se ao seu apartamento, toma o telefone e o guia. Procura pelo operador que conserta elevador. Dentro de alguns instantes o homem já está lá, com suas ferramentas em mãos. Verônica o direciona até o terraço do elevador para que resolva o problema. Passado alguns minutos, José Antônio chega com a família e constatam o cheiro insuportável. Problema resolvido, o homem desce com Verônica a fim de testarem o equipamento lá embaixo. Dão de vista com José Antônio com sua mulher e filhos, cumprimentam-se. José indaga para o que estaria acontecendo e a resposta lhe vem sem que alguém citasse uma só palavra. O homem aperta o botão do elevador e constata seu “perfeito” funcionamento. Ao abrir a porta, a cena mais arrepiante é presenciada por todos. O grito das crianças, a mão da esposa de José vai à boca insinuando enjôo e contensão do grito que estava para encher seus pulmões e os latidos do cão fazem com que José mande a mulher subir com os filhos e que Verônica faça o mesmo com o seu animalzinho. José Antônio puxa a grade e observa, com frieza, o corpo que ali estava: sua vizinha, com uma caneta na mão, deitada, totalmente contorcida e sobre um vasto lençol vermelho. Todas as paredes riscadas e manchadas de sangue. O que mais apavorou o policial aposentado foi o braço esquerdo da mulher: dois enormes buracos que deixavam a carne e osso à vista, a boca embebida de sangue e com pequenos vermes caminhando em sua volta. O homem não se conteve e pôs a vomitar ali mesmo. José Antônio subiu e pediu à mulher que ligasse para a policia e para o hospital mais próximo. Retornou ao lugar e percebeu que o homem chorava lendo as coisas rabiscadas na parede do elevador. “Hoje é sábado, irei dormir, pois já deve ser noite e assim posso controlar minha fome, segunda-feira a faxineira aparece e me tira daqui”.

A policia chega juntamente com a ambulância, o apartamento de Maria Aparecida é vasculhado, José Antônio é chamado para depor sobre o que havia visto. No relatório do advogado e na constatação de José Antônio estava:

“Pela única folha que sobrara em sua caderneta, Maria Aparecida de Jesus fora fazer compras, não chegara até o mercado e voltara com o jornal daquele mesmo sábado de janeiro o qual restavam apenas algumas folhas. O elevador tranca e em estado de intenso pavor, começa a usar de sua caneta para que o tempo passe mais depressa e a segunda-feira chegue e alguém a presenciasse lá. Nem mesmo a faxineira chega, pois pensa que talvez tenha ido para a praia tirar umas férias, afinal, não atende ao telefone. O desespero lhe toma conta e então resolve escrever cada momento ali dentro. Até o som de seus sentidos. Nas paredes e em seu próprio corpo. O sol não chegara aos seus olhos e por isso, nem mesmo diferira o dia da noite. Seu organismo já solicita vitaminas ou algo que a mantivesse viva até que chegasse alguém. A caderneta é sua primeira vítima para suprir a vontade de comer algo, restara apenas a capinha de papelão e a página onde anotara as necessidades de seus armários. O jornal foi logo depois, talvez dias. O que mais nos impressionou foram os enormes buracos no seu braço esquerdo e a boca e dentes com vestígios da própria carne; esse devera ter sido o momento mais desesperador daquele pesadelo”.

Thiago Charme
Enviado por Thiago Charme em 05/09/2008
Código do texto: T1163436
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