Pavor

Sentia as pancadas em quatro lugares distintos: no peito, cabeça, estômago e costas, como se uma imensa prensa a tivesse espremendo, pouco a pouco. O medo crescia, transformava-se em pavor. Deu um passo para trás, com o repentino baque nas pernas e pisou em algo mole, viscoso. Ouviu um chocalhar irritado e teve que levar a mão à boca para não gritar. Era melhor que não gritasse. "Ele" podia voltar. Sentiu algo subindo por sua perna esquerda, provavelmente do mesmo tipo da coisa que pisara. Suas pernas ficaram geladas. Ainda não enxergava nada.

Como fora parar ali? Não se lembrava. Devia ter desmaiado.Havia saído com Hugo para ver as estrelas do campo aberto, de mãos dadas e rosto ao vento da noite. Davam risadas. Afagavam o cabelo um do outro e faziam promessas apaixonadas. Aquilo era um homem, não era? Aquela forma nublada e indefinida que escorregara para trás do observatório? O que era aquilo onde deveriam estar suas mãos? Um machado? Uma barra de ferro? Que importava? Tinham um ao outro. Eram felizes. Isso era mais importante que tudo. Mais importante que qualquer...

Dor. Seu joelho a trazia de volta à realidade claustrofóbica do

(quarto?)

local na escuridão. A coisa se desenganchara de sua perna e ganhara a mesa pela mão que a apoiava. Marina começava a sentir frio. Os guinchos e sons molhados do quarto pareciam terem sido amplificados agora. Algo roçou seus cabelos. Algo com muitas partes. Antes de querer saber o que poderia ser (na verdade não gostaria, oh Deus, não), levou instintivamente a mão à nuca, esmagando a coisa. Um estalo alto e sua mão começava a arder. Fora picada? Não sentira nada no momento que esmagara a coisa peluda e articulada, mas aparecia agora um formigamento leve na mão dolorida. Uma lanterna. Precisava de alguma luz ou iria enlouquecer ali dentro. Sentia as rédeas se sua sanidade se afrouxando pouco a pouco. O cheiro de mofo e putridez a deixava nauseada.

Um último fio de pensamento coerente passou por algum lugar entre suas orelhas. Como não morrera até agora? Quer dizer, sozinha, no escuro e rodeada de animais ou quaisquer outras coisas que estivessem fazendo aqueles barulhos e sons ao seu redor, como ainda não fora picada ou coisa assim? Porque não a atacavam como um animal desavisado que tivesse invadido o covil de algum astuto predador?

"Talvez eles queiram me deixar viva, para que veja o que vai acontecer. Mas o que?"

Perguntas.

Um som de carro se aproximando a trouxe de volta. Seria "Ele" que retornava? Mas retornava de onde? O que teria ido fazer?

Mais perguntas.

Os Pneus derrapando na brita acompanharam as milhares de agulhas e alfinetes que espetavam sua pele. seu estômago era torcido violentamente como uma toalha antes de secar. Imediatamente sons se espalharam pelo aposento em todas as direções, uma profusão de bater de asas, silvos e chocalhos, como dando as boas vindas ao que quer que houvesse se aproximado de onde ela estava. Pareciam ecoar e ganhar brilhantes amplificações na mente perturbada e vazia de Mariana. Rasgou duas tiras de sua cara blusa de tecido raiado, enchumaçou-os e enfiou um em cada ouvido.

De súbito, antes que terminasse de ajeitar os tufos, todas as suas perguntas não pareceram mais fazer sentido, pois de algum modo tinha todas as respostas.

Sim. "Ele" voltara.

"Ele" era a resposta.

E seria a última a conhecê-la. Hugo agora não passava de um borrão distante na tela da memória, sabia que nunca mais voltaria a vê-lo. Lembrava agora, ele havia levado uma séria pancada na cabeça e ela desmaiara.Era grata por não ter visto seu fim, mas por outro lado gostaria de ter tido a chance de chorar por ele, de lembrar os bons momentos que tiveram e que ainda estavam por conhecer, enfim, de se sentir mal por ele. Ela merecia isso. Oh Deus, como é irônico, mas queria se sentir mal por ele, pelo rapaz de cabelos ruivos e sorriso ludibriante. Não era a hora. Deu um murro na escuridão e ouviu estalos do que provavelmente seriam costelas de uma ratazana, embaixo de seu punho. O sangue quente e viscoso salpicara sua mão. Tinha certeza que era mesmo um rato. Não era tão ruim, perto das outras coisas que imaginava haver ali.

Não importava.

Não mais.

Algo estava à porta.

Virou-se para a direita e tateou cegamente o tampo do que julgou ser algum tipo de eletrodomestico, uma máquina de lavar ou um tanquinho comum. Com o silêncio providenciado pelo proterores em suas orelhas, a escuridão parecia ser ainda mais intensa. Por incrível acaso do destino ou uma brincadeira maldosa de Deus naquele momento, pegou algo cilíndrico com uma saliência retratil. Balançou levemente o objeto e pôde ouvir o sacolejar abafado de pilhas em seu interior.

A coisa continuava à porta.

Um inseto cascudo e incrivelmente pesado passou-lhe correndo pelo braço. Soltou um pequeno grito agudo e puxou mecanicamente o braço.

O barulho na porta aumentava. A coisa parecia estar com mais pressa para entrar. Parecia falar seu nome em uma língua morta, pastosa, há muito erradicada da superfície terrestre - se é que algum dia existira.

No movimento do braço derrubara a lanterna.

"Merda"

Agachou e começou a tatear o chão desesperadamente como se a chave para todos os mundos, o fabuloso e mitológico Bálsamo restaurador de Gilead, capaz de curar todo o mal que se encontra na terra, estivesse ali naquele momento. Dadas as condições que se encontrava, não estaria de todo errada em pensar deste jeito. Seus dedos resvalavam de leve em coisas afiadas e cascudas, do tamanho de sua mão.

"Não. Não Marina" - se ouviu dizer com a respiração entrecortada. - "Não são escorpiões. Não EXISTEM escorpiões deste tamanho".

E existia a situação em que se encontrava agora? Seria ela mais real que supostos escorpiões de dez centímetros de comprimento? Qual é mais verdadeiro: o sonho ou a ilusão?

Sua mão esbarrou em algo e ela agarrou. Era leve e poroso, um barulho oco quando partido.

"Carvão" - pensou. "Claro. Se estou em algum lugar perto de onde tudo começou, perto do campo do observatório, possivelmente deve ser em algum chalé ou tipo de cabana. Nada mais natural que uma lareira para aquecer

(Ele)

quem quer que morasse aqui. Genial Marina. Mesmo sob estas circunstâncias seu poder dedutivo não está nada mal" - e permitiu-se dar um pequeno sorriso na escuridão.

Não demorou nada até que esquecesse a lanterna e encontrasse o atiçador de brasas ao lado do pé da lareira. "Deus escreve certo por linhas tortas" - lembrou sua mãe dizendo certa vez.

---

Abre os olhos. Demora um pouco até que se ambiente e reconheça o campo e o observatório mais adiante.Não sabe o que lhe acontecera ao certo.

Está sozinho, onde está ela?

É noite e sente frio. Seus ombros e nuca latejam da pancada recente.

Lembra-se de ter visto um chalé pelo caminho. Parecia décadas atrás.

Levanta-se e sai cambaleante para lá.

Sabe muito bem o que tem de fazer.

---

Marina levanta a peça e sente-se como num conto policial, num filme que vira certa vez onde o mordomo executa o velho e rico senhorio com um atiçador de brasa. Exatamente como esperava fazer agora.

"Só que não acho que receberei alguma gorda herança" - pensa, espantada com o próprio humor mórbido.

Arranca rapidamente o tecido de um dos ouvidos apenas para distinguir a direção da porta. Está alguns passos à frente. A população da sala vibrava com um frenesi descontrolado, como um cachorro que observa seu dono com um belo osso de bisteca à mão, pronto a ser atirado. Daí eles poderiam se divertir.

Sentia estralidos e coisas se partindo embaixo de seus tênis, como gravetos sendo partidos pela sola de borracha. Não ligava mais para eles.

Enquanto caminhava, a porta se abriu.

O luar penetrou violentamente, denunciando uma silhueta alta de cabelos desgrenhados e roupas rasgadas. Estava ali. Aquela era sua chance.

Jogou-se contra a figura, mostrando os dentes enquanto arrancava das tábuas do assoalho em direção à porta. Enquanto bramia alto nomes que não ousara jamais dizer a ninguém, suspendia e baixava repetidamente a barra de ferro com um anzol na ponta.

Em seu cego pavor, Marina não reconheceu nada.

Não reconheceu os cabelos ruivos, agora mais vermelhos e empastados do sangue que lentamente se apoçava embaixo do corpo; nem os olhos brilhantes de esperança que agora jaziam baços e vítreos em suas órbitas idiotas.

A meia distância viu a figura correndo à luz da lua. Em breve estaria ali.

Risadas, incrivelmente humanas, ignoraram os rolos de tecido em seus ouvidos, era como se soassem diretamente em sua mente, vindos de dentro do chalé.

E então Marina, pela primeira vez na vida, compreendeu que estava realmente apavorada.

Opus Magno
Enviado por Opus Magno em 05/09/2008
Reeditado em 27/02/2010
Código do texto: T1163159
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.