O imaginário auto-depreciativo de Reginaldo Nunes
Ao chegar ao apartamento depois de uma sessão de autógrafos na menor livraria mais perto de sua casa, o Sr. Reginaldo Nunes teve uma bela surpresa.
Um homem trajando um Black tie estava sentado em sua poltrona, do lado do abajur avermelhado com o Jack Nicholson estampado que ele havia ganhado em um evento especial sobre Stanley Kubrick.
Primeiro Reginaldo se assustou e deu um grito agudo. Depois levou a mão esquerda ao peito e apertou os olhos para entender melhor o que via. Então entendeu que deveria ser mais uma daquelas muitas pessoas que ele andava vendo nos últimos 15 dias e tinha aprendido a ignorar.
Virou-se, trancou a porta e seguiu para a cozinha.
“Você não me viu aqui?” foi o homem sentado na poltrona que perguntou com uma voz perfeitamente normal – nem aguda, nem grave, nem etérea, nem espalhafatosa.
Reginaldo não respondeu e estava obedecendo a ordens médicas quando não o fez.
“Você não me viu aqui?” inquiriu novamente o homem.
Reginaldo seguiu seus atos corriqueiros, pegou uma garrafa de leite e bebeu um gole em um copo de geléia de vidro grosso e tosco.
Passou pela sala indo para o quarto e impressionou-se pelo homem ainda não ter abandonado sua poltrona, e nem sua pose, de pernas cruzadas femininamente.
No caminho para o quarto ouviu um ruído estranho e voltou-se para a imagem sobre a poltrona. Agora ele estava com um cigarro na boca, aceso. A fumaça saia dele, tornando o ar periférico turvo.
Impressionou-se com o quanto o seu novo amigo imaginário era verossímil, quase teve vontade de ir até lá e tocá-lo, mas logo viu que se entregaria a loucura se o fizesse.
Seguiu até o quarto e abriu o armário que ficava embutido na parede, pegando um pijama listrado que estava ali dentro. Como sempre, não tomou banho, apenas despiu-se e vestiu a roupa de dormir. Mas ainda ouvia os sons de tragadas do homem na sala.
“Você pode fazer o favor de vir aqui, Reginaldo, seu imbecil?” berrou o homem ainda sentado.
Reginaldo dessa vez conteve-se para não responder.
“VEM AQUI AGORA, SEU MERDA!”
“EU NÃO SOU UM MERDA!” replicou Reginaldo, mas logo se arrependeu de ter-lo dito.
Respirou fundo e passou a mão na testa, que agora suava um pouco.
Resolveu arrumar sua cama devagar.
O homem finalmente se levantou e veio caminhando a passos largos até o quarto. Parou a porta e apoiou-se com o ombro direito sobre o portal.
“Por que você não tira esse pijama ridículo e vai tomar um banho, seu porco nojento!?”
Reginaldo não respondeu.
“Eu perguntei porque você não tira esse pijama ridículo e vai tomar um banho, seu babaca!”
Reginaldo tentou manter-se impassível.
O homem soltou uma risada sádica de satisfação e voltou para a sala.
Reginaldo sentou-se na cama e ligou a televisão do quarto. Começou a zapear e encontrou um filme antigo que ele não assistia a tempos. Ficou uns 5 minutos observando a tela.
Ouviu novamente os passos se aproximarem e aguardou, nervoso.
O homem parou novamente no mesmo lugar.
“Você não tem nada melhor para fazer do que assistir a essa droga na TV?”. Silêncio. “Inútil. Inútil.”
Nunes desligou a televisão e deitou-se na cama. Apoiando as mãos sobre o travesseiro e a cabeça sobre as mãos. O homem bateu a cinza do cigarro no chão e sentou-se um uma das pontas da cama de casal.
“Olha, Reginaldo, eu não quero te importunar, eu juro.”
Reginaldo vira-se na cama, para evitando a visão do homem .
“Eu só quero que você me ouça uma vez só.”
“Eu não vou ouvir nada!” respondeu, furioso.
“Já está ouvindo.”
Reginaldo sentou-se na cama, furioso.
“Não, eu não estou. Cala a boca!”
“Viu? Você está conversando comigo. Estamos dialogando, isso é bom.”
Uma lágrima escorre de um dos olhos de Reginaldo que volta a deitar-se, com o rosto virado para o lado contrário de onde o homem está.
“Vamos, cara, estamos indo tão bem. Fala comigo”
Reginaldo cobriu a orelha com o travesseiro e o apertou forte contra o rosto.
“Vamos. Vamos. Só quero conversar com você...” Silêncio. “Vamos, Reginaldo.” Mais silêncio. “Fala comigo, porra, eu não estou com paciência para suas gracinhas, cara. ME OUVE! Não me ignora!”
Reginaldo voltou a sentar-se na cama. “EU NÃO VOU OUVIR NADA” perturbado passa as mãos pelo rosto, aflito. “Você não existe, você não existe. Você... não... EXISTE! Sai da minha cabeça” então começou a golpear seu próprio crânio com as mãos, forte.
O homem se manteve em silêncio enquanto ele se batia, frenético. Aguardou paciente que ele parasse. Aprumou-se dentro do terno e então proclamou. “Pronto? Você já acabou com esse showzinho nonsense ou tem mais alguma afetação pelo caminho? Porque se você vai continuar com essa babaquice...” nesse momento Nunes tapou os ouvidos com a palma da sua mão. “Me ouve. Me ouve. Eu to dizendo que...” o escritor continua com as mãos nas orelhas “Reginaldo, eu to falando com você, você pode fazer o favor de me ouvir?” Reginaldo tira a mão das orelhas, finalmente. “Pronto, parece que agora você ouviu a voz da razão, né? Agora você vai me ouvir, não vai?” Silêncio. “Não vai?”, mais silêncio. “Bom, melhor assim”
“Olha só, Reginaldo, o que eu tenho pra lhe dizer é muito simples. Vou começar fazendo algumas perguntas, pra ser mais exato. Me diz. Pra que serve a merda da sua vida?”
Reginaldo se mantém em silêncio.
“Bom, sempre que você se mantiver em silêncio eu vou considerar que você não sabe a resposta.”
“Some daqui. Sai daqui!” Reginaldo disse essas palavras com a expressão impassível.
“Reginaldo, porra, não vamos regredir, né? Eu to só tentando te ajudar a se encontrar nessa vida inútil que você vem levando. Nesse número incrível de mentiras que você tem contado pros seus familiares, pros seus colegas, pros seus amigos, se é que você tem algum, além de mim. E isso tudo só pra... fingir... que você realmente é feliz. Vamos combinar que tá na cara que é mentira. Que tá escrito na sua testa: Eu sou um completo perdedor, me matem antes que eu o faça. E é nesse ponto que eu queria chegar, Reginaldo.”
Reginaldo continua sentado, com os olhos fixos, lacrimejantes, impassível.
“Meu amigo... O que mais você imagina que vai conseguir nessa vida? Todo mundo tá vendo. Você já tá velho. Você já tá tão velho. E não faz idéia das mentiras que escreve nos seus livros. E é POR ISSO que eles não dão certo. POR ISSO que você é um ENORME fracasso. Você não viveu a sua vida enquanto podia. E agora? Agora você não pode mais. E aí o que? Vai ficar prolongando algo que já devia ter terminado? Na verdade, prolongando algo que nunca existiu?”
Reginaldo manteve-se quieto.
“Foi o que eu pensei. Agora vamos, acabe logo com isso.”
O homem se levantou e saiu do quarto. Reginaldo continuou estático por mais alguns segundos.
Depois levantou-se e caminhou fúnebre para o banheiro. Abriu a torneira e deixou a água cair na pia. Observou-se no espelho. Molhou as mãos e limpou as lágrimas já secas por sobre o rosto. Mantinha-se impassível.
Enxugou o rosto e voltou para o quarto, refletindo sobre o que dissera o homem. Depois pegou o frasco cheio de comprimidos e sentou-se na cama. Abriu o frasco e o virou na mão. Pegando apenas uma pílula. Engoliu-a a seco. E repousou o frasco no criado-mudo. Deitou-se na cama e puxou o cobertor por sobre seu corpo.
“Foda-se minha mente” pensou. E depois fechou os olhos, mas só por algumas horas. Não enlouquecera. Ainda.