O júri

- Ouviram um disparo forte. Eu estava ao seu lado quando do ato fatal: eu e minha inocência. Sofro hoje, três anos após o suicídio de Valter, as agruras e a dor de um processo de condenação, querem presentear-me outros como se eu fosse essa viúva assassina que tanto dizem.

Quando eu ouvi isso de Marta, me apavorei. Seguiram-se ao episódio dezoito meses sem que ela saísse de seu quarto. Uma depressão fantásmica a assustava no cotidiano e ela ia aos poucos parando de viver.

Certo dia li em um jornal de minha cidade uma manchete de notícia infiel, que punha minha filha entre aspas malignas, como se fosse realmente uma homicida. Apavorei-me. Mostrei-o a seu pai. Desse dia em diante decidi correr atrás do tempo perdido e evitar as facadas aéticas e imorais que certos seres esquisitos têm o gosto de fazer sobre o caso. Pediram a nossa família os olhos da cara. Uma malandragem que nos deixava doentes na alma.

Fiz uma carta apelativa ao relator do processo que, a essa altura, já estava no Superior Tribunal de Justiça. A praça do processo saíra de Maceió para Brasília.

- Mãe, querem condenar-me. Não lhes importa que eu diga de minha inocência. Se querem assim, eu vou me entregar.

- Cala tua boca, filha. A Virgem Santíssima é tua advogada. Tua fé te salvará. Não nos importará o que digam de ti. Espera, apenas espera. Dia virá em que se calarão todas as bocas que desdizem de tua verdade. Rezar o terço diariamente mostrar-te-á a paciência, o silêncio e a paz dos que, sem temerem, esperam a justiça.

“Não me importa escrever ao senhor, caro juiz, usando corretamente o pronome de tratamento, que, de nunca usá-lo, trago já no esquecimento. Mas o respeito é profundo, e o apelo de mãe que aqui vai escrito, maior que meu próprio amor de mãe.

Como mãe, sinto duplamente a dor que minha filha está sentindo. Essa mácula, que querem impor-lhe, machuca nossos corações, desorganiza-nos a razão e nos pede além da calma. Mas próximos estamos de vê-la justiçada. Em vossas mãos, talvez; ou noutras felizes e também justas.

Rogo-lhe debruçar-se sobre as letras mentirosas dos pareceres que enchem o calhamaço processual e enxergar nelas o que há muito além do papel frio, contendo a ortodoxia das letras jurídicas: a verdade. Esse cálice é para mim e ela o próprio amargor da desventura e o caminho de uma morte triste (como se houvesse alguma outra alegre).

Como mãe, conheço a cria, como nenhuma outra delas e não me é preciso dizer mais que, o que rogo agora, é uma verdade que andará comigo na eternidade. Deus há de iluminar vosso coração e revelar tudo o que há de igual e desigual nessas causas contadas para o bem e para o mal.”

A carta que escrevi era longa. Nela roguei, implorei. Meu coração exigia que se fizesse justiça e rapidamente. Após enviá-la, sobrou-me apenas uma longa espera de quarenta e um meses. Que espera dolorosa! Segurei na mão de Deus e fui à casa da esperança e roguei dele a força de que necessitava para a travessia silenciosa da incerteza. Muitos a queriam diferente de nós.

No dia do júri, meu marido, eu e ela vestimos preto fechado. Havia mais de vinte amigos íntimos no auditório do tribunal. Enquanto ouvia as palavras infames do advogado de condenação, rezava o terço cabisbaixa para ele e toda a sua família. Pedia ao Espírito Santo de Deus que o iluminasse e lhe tirasse essas inverdades, conclusões apodrecidas.

Com o da defesa, mergulhei em lágrimas e vi a outra face de Deus. Chegou-me um conforto firme e eu cri na absolvição de Marta. Ela permaneceu dopada, sentada – largada – na cadeira fria que suporta os réus. Mas entre suas mãos estava o terço de madrepérolas com que a havia presenteado. Era nele onde deveriam estar as esperanças do finalzinho da via-crúcis.

- Mamãe faleceu alguns minutos antes de me condenarem. Meu advogado recorreu da sentença e ainda hoje, seis anos após o júri, inexplicavelmente ainda sofro muito à espera doutro instante para, sentada à mesma cadeira, esperar alvíssaro veredicto. Papai vive sobre uma cadeira de rodas. Um derrame cerebral tirou-lhe um pedaço de sua vida. Ainda vejo o tamanho de seu amor por mim, quando, ao olhar-me, deixa embolar pela face lágrimas ralas de dó pelo que ainda sofro. Mamãe, essa reza por mim. Sinto-a viva e firme quando quero fenecer ao lembrar-me de tudo.

Há mais de um ano que sirvo, como voluntária, num presídio feminino de uma cidade interiorana. Lá, ninguém me conhece. Vez em quando ouço de quem tanto sirvo – as prisioneiras – inverdades sobre mim. Ainda bem que não sabem quem sou, apesar de adorarem o que lhes digo. Acham que sou uma iluminada: a mesma de quem desdenham sem sequer acharem a verdade que tentam roubar de mim. Minha maior tristeza é não poder ser acreditada. Quem matou o meu amor foi papai! Eu sempre aceitei os dissabores de nossa convivência. Amava-o bastante para, mesmo sofrendo, separar-me dele.