Os arquivos do mal

Preferia nunca ter sabido acerca dos arquivos deste passado infernal. Não sei o porquê de ter ido atrás, caçar notícias de tão velhos tempos.

Quando eu falava para Nogueira, ele sempre se furtava a minhas perguntas. Não sei se não queria falar por ser um militar de carreira, acostumado à rígida disciplina dos quartéis, ou por não gostar. Eu insistia demais, também. Se pudesse arrancava dele toda a história dos tempos da repressão e, assim, poderia achar notícias do meu irmão desaparecido.

- Nogueira, o que vocês fizeram com os documentos da repressão?

- Não tenho nem nunca tive acesso a tais documentos. Não sei nem se ainda existem. Não quero falar desse assunto. Já me basta passar o dia todo no quartel. Quero falar é de nossa família.

- Você bem que poderia ajudar-me a encontrar notícias de Ivo e Gabriela. Já os dou como mortos, mas não sei o que fizeram com seus corpos.

- Reze por eles, é o melhor que tem a fazer. Não queira afogar-se no passado. Às vezes nós procuramos a nossa própria infelicidade.

- Eu realmente não entendo você. Saber dos meus, isso é caçar infelicidade?

- Dê-los como desaparecidos em definitivo. Não traga mais esse assunto à tona. Esqueça-o!

Dos nossos filhos apenas Mardem lançou-se a essa busca. Debruçava-se na internet à procura de informações, diariamente. Quando descobria alguma pista, corria e vinha dizer-me.

- Mãe, o governo vai pôr os arquivos do velho SNI na internet.

- Tudo?

- Não. Apenas o superficial.

- Não me interessa isso.

- Acalme-se. Promete fornecer a possibilidade de os familiares dos desaparecidos terem acesso às informações completas.

- Quando isso?

- Breve.

- Tomara que não tenham nos roubado as informações mais importantes.

- Esse é o meu medo também.

- Seu pai continua desinteressado. Quando lhe indago acerca desse assunto, noto que se irrita e despista.

- Papai foi programado pelos seus superiores para não falar nada.

- Mas para mim?

- É isso que não entendo. Bem que ele poderia, ao longo destes anos, ter tentado conseguir informações, vasculhando documentos secretos. Afinal, ele é tenente-coronel. Tem patente e peso para isso.

- Ah! Seu pai, se depender dele, não saberemos sobre seus tios nunca.

- Então, mãe, só nos resta o governo. Quem sabe?

- Vou fazer de conta que acredito. Mas não me custa nada esperar.

- Qualquer coisa eu lhe digo.

- Mas a conta telefônica, no fim do mês, é que é ela!

- Se pouparmos, não avançaremos.

- Não. Prefiro que use e abuse buscando informações.

Em onze de abril, o governo pôs, conforme havia prometido, na internet, as informações possíveis acerca dos desaparecidos. Além de amplo painel de informações, dava, a partir daquela data, a devida permissão para que os familiares dos desaparecidos pudessem, através de um pedido formal, saber do que havia acontecido com seus entes queridos, vítimas da ditadura. Os pedidos de indenização se multiplicavam, e a sociedade finalmente pôde desvendar velhas histórias que há até pouco representavam o mais sigiloso bolo de informações dos governos militares.

- Seu pai é um monstro, meu filho. Vou deixá-lo para sempre.

- Eu lhe acompanho, mãe. Sua omissão nos foi venenosa demais.

Sargento Nogueira, à época, havia sido incumbido de levar para alto mar duas dezenas, aproximadamente, de comunistas paulistas, pegos de supetão reunidos num bangalô próximo à estação da Sé. Deveriam ser mortos e jogados em alto mar. Ainda tentou evitar essa missão, mas não lhe foi possível. Era ir ou ir.

Um dos encapuzados o reconheceu àquele dia.

- Nogueira, sou Gabriela, sua cunhada, não deixe que façam isso comigo.

Todos morreram. A ordem era para ser cumprida à risca. Não tentou porque de nada lhe adiantaria fazê-lo. Ela e seu irmão Ivo foram jogados ao mar de mãos dadas. Ainda lhe disse:

- Monstro, sabe quem é esse que morrerá comigo? Seu cunhado. O tempo se encarregará de furar seu coração. Monstro! Estúpido! Não sei como minha cunhada foi engraçar-se de um sujeito tão mau quanto você.

Nogueira enlouqueceu, após ter se submetido a rigorosa cirurgia plástica. Mudaram-lhe os documentos de identidade e passou a morar em lugares incertos. Foi o mínimo que o governo fez por ele. A família só foi comunicada no dia de sua morte.

- Alô!

- Com quem quer falar?

- Com quem falo?

- Com a dona da casa.

- Aqui é do oitavo comando militar.

- O que o senhor quer?

- Comunicar que o Tenente-Coronel Nogueira faleceu às sete da manhã de hoje. A família interessa-se pelo funeral?

- Jogue-o no mar. É o seu lugar mais justo. Ou então queime-o!

Meus filhos nunca souberam desse telefonema que recebi. Achei que tinha o direito, assim como eles, de ter meu próprio arquivo. O diabo é que a notícia me entristeceu e meu dilema é não saber se Nogueira podia ou não tê-los livrado da morte. Afinal, naqueles idos, ele nem oficial o era ainda.