Em Meio ao Silêncio

Às vezes o silêncio é tudo o que eu desejo. Gosto de pensar em silêncio.

Sento à minha poltrona captoné, acendo meu charuto Cohiba e depois molho a garganta com minha bebida preferida: um bom pisco. Meu irmão sempre chega neste momento, batendo à minha porta. Há anos e anos isso se repete. “Entre”, é o que digo sempre, mesmo desejando dizer o contrário.

Rangem os gonzos. Igual ruído faz a madeira sob seus pés que se arrastam. Pedriscos, sob o couro da sola de seus sapatos, também se permitem ouvir, enquanto agridem o meu parquet. Porque arrasta os pés sujos, definitivamente é uma coisa que não compreendo. O fim da sinfonia se dá, quando Aldo escorre pelo encosto de meu sofá, até se acomodar sobre o veludo mostarda.

Como pode nosso próprio sangue ser tão truculento, é uma pergunta que repito à exaustão, principalmente ao ver os sapatos dele repousando, onde não deveriam nem mesmo passar perto. Tenho meus brios. Resolvo sair da sala, mas assim que ameaço erguer-me, ele inicia o palavrório.

– Porque não vem comigo, Berto? És tão glorioso, meu irmão, que crê mesmo que viverá para sempre? Rememore nossa vida antes de meu acidente. Éramos felizes juntos. Não me importa que tenha crescido. Venha comigo. É fácil, basta usar uma arma, veneno ou cortar os pulsos – falava com voz inocente.

– Entendo seus motivos, caríssimo irmão, porém já lhe afirmei ontem, antes de ontem, e durante todos esses anos em que me atormentas: para ir contigo, necessitaria estar morto. E não quero morrer.

Os olhos dele se abrem e me fitam. Olhos baços e sem vida. Olhos profundos e pesarosos. Olhos de um fantasma. Nessa hora eu me lembro que é isso o que é: apenas um fantasma.

– Está bem, Berto, – geme displicente enquanto se eleva nos quadris e põe-se de lado – mudemos de assunto então. Sei que um dia virá comigo para outros lugares mais interessantes.

– Tu és morto, irmão. Compreenda isso. És um fantasma e pertence sei lá eu aonde. Não quero discutir novamente esse tipo de assunto. Morreu! O que é tão difícil de entender?

Tomo um gole tão grande de meu Pisco que engasgo e a tosse me aflige por vários instantes. Daí pra frente tudo se torna amargo e modorrento. O charuto não tem mais sabor. O ar parece espesso. Sentimo-nos mal um com o outro. A conversa descamba para assuntos funestos. O tempo custa a passar. Eu e Aldo empurramos a conversa até que os primeiros raios de sol tocam os vitrais da sala. Esse é o ponto em que diariamente ele parte, sumindo na névoa, e o meu querido silêncio retorna. Alegro-me com sua partida, mesmo penalizado por sua condição. Não sei para onde parte quando o sol nasce, mas todos os dias vêm aqui me aborrecer com suas lamúrias e chamados.

Observo meu charuto que ia chegando ao fim e esfrego a brasa do toco no fundo do cinzeiro. Mal faço isso, vejo o bolor verde-acinzentado em tudo o que Aldo tocou. Se apenas isso me irritasse, estaria bom.

Enquanto pego as velas e traço com carvão, palavras e símbolos, que vou copiando do livro macabro que tenho em mãos, lembro de como éramos felizes quando jovens. Ao recitar as palavras de exorcismo, sinto pena de meu irmão, mas eu preciso ter meu silêncio de volta. Ele morreu, portanto é um fantasma, deixando de ser meu parente. Termino o ritual e fecho o livro com lágrimas nos olhos.

A noite chega. Realizo o mesmo ritual de todos os dias. Hoje escolhi um brandy. Quando tomo o primeiro gole e repouso o cálice, fico aliviado. Nenhuma batida na porta se faz ouvir. Nada de Aldo quebrando o silencio que me apraz. Sei que irá sofrer onde quer que esteja, mas ao menos assim não ficará mais me tentando diariamente a partir com ele. Que descanse em paz, então.

De olhos fechados, relaxo em minha poltrona, como há tempos não conseguia fazer. Levo o cálice aos lábios com um leve sorriso, desfrutando do nada ao meu redor. Nesse momento então, sinto o toque gélido em minha nuca. Para minha tristeza, reconheço os dedos de Aldo. Dedos que deveriam estar no inferno neste momento. Para meu desespero, sinto a pressão esmagadora que o ódio imprime em suas mãos, e sei que dessa vez não terei escolha: partirei com ele.

Fim.

Richard Diegues é escritor, autor do livro "Magia - Tomo I", colaborador dos sites "Círculo de Crônicas" (www.circulodecronicas.com) e NecroZine (www.necrozine.blogspot.com), além de moderador dos Grupos "Tinta Rubra" e "Fábrica de Letras" pelo Yahoo!

Richard Diegues
Enviado por Richard Diegues em 14/04/2005
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