O sequestro...
Da sacada do meu quarto observo o fim de tarde... A vista apresenta o campo a frente dos meus olhos onde um pequeno rebanho de gado é a única mancha no tapete verde... A cena me transmite calma e passo a recordar quatro anos atrás...
São onze e meia da manhã... Volto da loja que tenho no centro da cidade pra almoçar em minha casa num bairro próximo. Distraído em meu carro, aproveito o sinal vermelho pra trocar o disco no toca-cd’s. Com isso não percebo se aproximar sorrateiramente por trás do meu carro um casal que pela direita invade o carro com facilidade, pois as portas não estavam travadas... A primeira coisa que percebi tão logo a porta se abrira fora o brilho de um pistola inox apontada para minha cabeça... Um contraste com o esmalte vermelho nas unhas longas das mãos daquela mulher... Uma loura de cabelos longos e lisos, olhos claros, o olhar fascinante e belo... O flash desse reconhecimento terminou com sua voz nervosa me ordenando:
- Vamos! Acelere esse carro! Siga para a estrada velha da Chapada. Não reaja senão morre! É um seqüestro...
O reflexo ante a violência foi o de obedecer às ordens e durante o trajeto me ocupei com a estrada e em observar pelo espelho o homem atrás, que entrar pela porta traseira, o comparsa da loura...
O rosto dele estava encoberto por uma touca preta com buracos nos olhos... Ele trajava uma camiseta preta com a frase de um pensador famoso do passado: “Desejando coisas incertas acabamos perdendo as certas...”... E ele ainda usava uma calça jeans azul e pelo vão dos bancos, observei que ele usava um coturno marrom, do tipo que se usa na prática de pequenas escaladas... Aquela roupa me intrigava... Me trazia uma impressão de algo que eu não sabia dizer...
Na estrada deserta a loura ordenou que eu parasse o carro e assim que o fiz fui retirado por ambos do veículo... Fui amordaçado, vendado e tive meus pulsos atados por finos cabos de aço como os usados nos freios das bicicletas... Pela fricção dos cabos, meus pulsos sangraram... Nesse instante achei que ia ser executado friamente, mas não... Fui posto no porta-malas e o carro seguiu por pelo menos mais duas horas por uma estrada esburacada tal os solavancos que enfrentava o veículo...
Assim que o carro parou, em poucos instantes fui retirado do porta-malas por quatro mãos. Fui posto de pé somente para que a coronhada que me deram fosse mais certeira... Caí de joelhos, à frente, quase desmaiei... Um ponta-pé me atirou o rosto ao chão... Fui arrastado pelos pés para dentro de uma casa. Assim que senti meu corpo deslizar por um assoalho, julguei estar em meu cativeiro... Ainda arrastado pelos pés fui conduzido por uma escada que levava abaixo. Meu corpo sentia as pancadas dos degraus, mas a mordaça sequer me permitia gemer...
Ao final da escada em poucos metros meus “rebocadores” pararam... Ouvi o ruído de uma fechadura ser destravada e o rangido de uma porta se abrir... Tiraram apenas minha mordaça e com sarcasmo ouvi a voz da loura me dizer:
- Aqui você pode gritar à vontade... Ninguém vai te ouvir... Mas eu garanto que a fome e a sede irão calar a sua boca...
E ordenou ao comparsa mascarado:
- Jogue-o na cafua!
Fui atirado num cômodo estreito com um empurrão seguido de outro ponta-pé... Caí batendo a cabeça no chão sem ter as mãos para me defender da queda. Desmaiei...
Logo que recobrei os sentidos compreendi minha desgraça... Compreendi o que era uma cafua... Tratava-se de um cubículo sem janelas, onde não dava para ficar de pé devido à baixa altura e tampouco deitado esticado, pois era curto no comprimento e na largura... Era obrigatório em qualquer posição dobrar as pernas... Uma grossa porta de madeira de mais ou menos um metro de largura era o único caminho para a luz e a liberdade, mas estava trancada...
Acho que já fazia vinte e quatro horas que eu estava preso ali... Minha cabeça doía muito pela coronhada... Estava com fome, mas terrível mesmo era a sede... O silêncio daquele lugar e o ar abafado me desesperavam... Nas primeiras horas naquele lugar gritei pedindo que me dessem água, mas parecia não haver ninguém por perto. Eu não tirava da mente o homem que acompanhava a loura, mas o que me intrigava eram suas roupas... Dormi nesse silêncio até que percebi que não estava só... Senti pequenas mordidas no meu pulso machucado pelos cabos de aço. Numa explosão de repugnância me levantei esquecendo a altura da cafua. Bati a cabeça o que fez aumentar a minha raiva. Num acesso de fúria me agachei e tateei pelo chão em busca do rato que me mordera e mesmo de mãos atadas quando o retive entre meus trêmulos dedos o esmaguei... Nessa hora a porta se abriu e ouvi a loura dizer:
- Que horror! Quanta violência... Sente-se! Estenda as mãos e tome dessa caneca d’água...
Devido a sede que sentia obedeci piamente as ordens e tão logo senti o frio da caneca nas minhas mãos virei o líquido na minha boca com desespero e foi aí que percebi a armadilha em que havia caído... A água estava salgada...
O riso da loura foi abafado pelo fechar da porta o que não impediu meus impropérios...
- Desgraçada! Quem é você?! Desgraçada! Covarde! Desgraçada... Desgraçada...
Lágrimas de ódio me calaram... Permaneci por horas sentado num canto da cafua com a cabeça entre o joelhos...
A sede mais terrível ainda me fez recordar a minha casa... Minha família, meus amigos... Mesmo de olhos fechados assistia um filme passar à minha frente... Como eu não dera valor a tantas coisas boas na minha vida... Como eu desprezara pessoas e oportunidades... No começo a revolta me fazia achar injusto estar preso sofrendo atrocidades numa cafua, mas agora a consciência me culpava por ter desperdiçado a vida com pessoas e coisas superficiais... E agora? Eu iria morrer? Será que era mesmo um seqüestro? Mergulhado nesses pensamentos adormeci de novo...
Quando acordei, horas infinitas deviam ter se passado... Minha companhia agora era uma barata nojenta que caminhava pelo meu rosto onde o sangue que escorrera pela minha testa devido à coronhada estava já coagulado... Ainda assim interessava como refeição àquele ser desprezível... Uma sacudida com a cabeça bastou para me livrar dela...
Parecia que eu estava ali há séculos... Sentia tontura pela fome e pela sede... Náuseas pelo cheiro podre do rato morto... Mas o que mais me atormentava era a consciência...
A pressão era tanta que quebrei meu orgulho e fiz algo que não fazia há muito tempo... Rezei com fé! Pedi a Deus que se Ele me tirasse dali eu mudaria meu jeito de ser, não seria tão egoísta e orgulhoso...
Passei horas recolhido em prece... Reconheci erros, pedi, implorei... Até que não resisti ao cansaço e a fraqueza... Desmaiei de novo...
Acho que tive um sonho. Nele eu estava me vendo dormindo na minha casa, na minha cama... Parecia que meu espírito assistia meu corpo dormir...
De repente despertei vendo meu corpo e espírito se unirem novamente... Meus olhos se abrindo percebiam cores, deviam ser flores... E eram! Estupefato observava o vaso no canto do meu quarto...
Assim que despertei completamente vi passar saindo closet, minha mãe... Ela trazia nos braços uma trouxa de roupas envoltas numa toalha de banho...
Dei um pulo da cama e falei com ela:
- Oi, mãe! O que tem aí nessa trouxa?
Ela me respondeu com a atenção de sempre:
- As roupas sujas que você usou durante esse seu sumiço... Estão imundas...
Perguntei curioso e intrigado:
- Roupas sujas? Sumiço?
- É... Veja...
Ela colocou a trouxa no chão e abriu... Para meu espanto viu um coturno marrom, uma calça jeans azul e uma camiseta preta com a frase: “Desejando coisas incertas acabamos perdendo as certas...”...
- Viu? Suas roupas imundas que eu vou lavar...
E saiu descendo as escadas...
Bem, até hoje não sei dizer se aquele seqüestro foi real ou não... O que eu sei é que nunca mais eu vi aquela loura e que não me recordo como saí daquela cafua... O curioso disso tudo é que trago comigo cicatrizes nos pulsos e no supercílio esquerdo...
O melhor disso tudo é que mudei minha vida...
Por isso todo fim de tarde vou à sacada ver o campo, o gado manchando com seus corpos o tapete verde...
Então aproveito e rezo agradecendo a Deu por estar vivo e estar melhor...