O TAXISTA

Geraldo voltava para casa após um dia exaustivo de trabalho. O dia todo atrás do volante de um táxi era muito cansativo e depois de quase doze horas de trabalho, Geraldo emfim podia voltar para o recesso do seu lar.

Enquanto dirigia, escutava a rádio Diário que a estas horas só tocava música romântica e antiga, as preferidas do taxista. A noite estava fresca e uma garoa fina caia sem parar.

-Oh! Chuvinha! – exclamou Geraldo, entre satisfeito e agradecido por estar voltando para casa.

A hora regulava entre meia noite, meia-noite e trinta. Ele passava pelo trecho da rodovia SC 401, vinha dirigindo devagar como sempre, quando em frente ao cemitério Jardim da paz estava uma moça. Encharcada da cabeça aos pés. Geraldo resolveu parar o táxi.

Ao parar Geraldo abriu o vidro colocou a cabeça pra fora e chamou:

-Oh moça!

A moça que aparentava ter uns dezoito dezenove anos, estatura mediana, olhos e cabelos castanhos curtos. Trajava um vestido florido azul escuro com uma estampa de flores bem miudinhas. Ela estava no outro lado da rua, portanto Geraldo não sabia qual o destino da moça.

-Está indo pra onde?

Ela apontou com o dedo indicador para o lado que Geraldo estava justamente indo.

-Quer uma carona?

A moça fez que sim com a cabeça e atravessou a rodovia. Geraldo abriu a porta do carona, ela timidamente sentou.

-O que fazia a esta hora na frente do cemitério? – indagou Geraldo assim que ela se acomodou no assento ao lado de Geraldo.

--Todos os dias eu estou por aqui. – respondeu.

-O que faz? Trabalha no Jornal? – indagou referindo-se ao Jornal O Estado que ficava na frente do cemitério.

Ela fez que não com a cabeça. Parecia um tanto arredia e por isso Geraldo resolveu não mais perturbar a moça com esta pergunta. Afinal ela fazia da vida dela o bem entendia. Geraldo não tinha nada a ver com o fato dela estar parada aquelas horas perto do cemitério.

-Como se chama?

-Sandra. – respondeu.

-Onde mora?

-Pra lá. – disse.

-Quando estivermos perto você me avisa.

Sandra meneou a cabeça positivamente.

-Tá com fome? – tornou Geraldo

Ela tornou a fazer que sim.

-Tem um sanduíche de pão com mortadela ai dentro do porta-luvas. Fica a vontade.

Ela abriu o porta-luvas e pegou o embrulho que estava lá dentro. Envolvido em um papel laminado, ela desenrolou o embrulho e pegou o pão de trigo.

- Eu sempre carrego comigo um sanduíche, que é pro caso de eu sentir fome. –explicou Geraldo enquanto a outra devorava o sanduíche.

-Você não tem medo de ficar sozinha em frente ao portão do cemitério? – indagou Geraldo.

-Não. Respondeu enquanto mastigava com voracidade o pão.

-Os mortos não assustam você?

-Estão mortos! Que mal poderiam fazer? – rebateu desviando os olhos do sanduíche e encarando Geraldo nos olhos.

-Sei lá, assustarem. Fantasmas. Buuuuuu! – Disse Geraldo sorrindo.

-Você tem medo dos mortos? – indagou Sandra terminado o sanduíche, amassando o papel alumínio e colocando-o sobre o console do carro. Em seguida abriu sua bolsa e retirou um lencinho xadrez, limpou a boca com ele e o soltou sobre o console ao lado do papel de alumínio amassado.

-Tenho. Os mortos me apavoram. Acho que se eu visse um morto eu morreria.

Sandra deu uma gargalhada, achando graça do jeito taxativo do taxista.

-Está rindo do que?

-De você. – respondeu.

-Nem todos são corajosos como você. – alegou Geraldo.

-Não deveria ter medo do que não conhece.

-Mas eu me sinto apavorado diante da probabilidade.

-E se você alguém de quem você realmente gostasse que houvesse morrido e voltasse para lhe mostrar que a vida continua.

-Não queria mais vê-lo. Se morrer fique longe de mim.

-E se fosse você o morto?

-Cruz credo! Garota! - Geraldo fez o sinal da cruz e beijou a medalhinha da nossa senhora que trazia pendurada num cordão de ouro.

-É se fosse você quem estivesse morto e desesperado precisando falar com alguém que ainda continuasse vivo e se alguém tivesse esse medo absurdo de você. Como agiria?

-Vou deixar para pensar nisso quando eu morrer, certo?

-Certo.

-Estamos muito longe da sua casa?

-Da casa do meu pai.

-Por que você não mora com ele? Parece ser ainda tão novinha.

-Estou sempre aqui.

-Quantos anos têm?

-Nem sei. Acho que uns vinte.

-Como assim? – perguntou Geraldo rindo.

-Deixa pra lá. Entre naquela rua ali. – disse apontando para uma viela de estrada de chão. -A última casa é a do meu pai. –concluiu.

Geraldo parou o carro diante de uma casa de madeira pintada de azul. Uma cerca de arame contornava o quintal gramado. Desligou o motor.

-Obrigada. – disse Sandra estendendo a mão para Geraldo.

-Quer que eu a acompanhe até lá dentro? Sei lá o seu pai pode achar ruim de você estar chegando a estas horas e eu posso explicar.

-Não se preocupe meu pai nem vai perceber a minha presença.

-Sei... – disse Geraldo confuso.

-Ele está dormindo. – corrigiu Sandra.

-Então tá.

Sandra inclinou-se e beijou Geraldo na face.

-Nossa que lábios gelados! – exclamou Geraldo.

-É que estou com frio. –respondeu Sandra.

-Então tchau. – disse Geraldo ainda sentindo o beijo de Sandra em seu rosto.

-Tchau. Ela saiu do carro e fechou a porta. Geraldo ficou esperando enquanto ela abria o portão de madeira e entrava no quintal.

Ela foi andando em direção a porta da frente.

Geraldo ligou o carro e arrancou. Ao se distanciar da casa de Sandra ele foi pensando naquela carona pra lá de inusitada. Uma noite chuvosa uma garota parada em frente ao portão do cemitério.

-Aquela doidinha! – exclamou para si mesmo rindo.

Já estava saindo da viela e retornando a SC quando viu que Sandra havia esquecido o lenço xadrez no console do carro. Pegou o pequeno tecido na mão e o levou de encontro ao nariz, aspirando um perfume de flores, parecia ser jasmim. Apesar de ser uma moça estranha e misteriosa, Geraldo gostou dela, achou-a meiga e diferente. Aquele lenço serviria de pretexto para voltar a casa dela e revê-la. Talvez até marcassem um encontro. Geraldo era solteiro e no momento estava sem namorada e a Sandra era bem bonitinha.

Já estava chegando ao portão de casa quando pensava nisso. Colocou o táxi na garagem e entrou em casa levando consigo o lenço de Sandra.

No dia seguinte, Geraldo trabalhou até as cinco da tarde, não via a hora de rever Sandra. Havia pensado nela a noite inteira, dormira agarrado ao lenço dela.

Voltou a viela onde ficava a casa do pai de Sandra, agora de dia ficava mais fácil de localizar. Sabia que a casa ficava no final da viela. Dirigia devagar temendo não encontrar ou estar na rua errada, mas foi aos poucos reconhecendo, pois ao lado da casa do pai de Sandra havia um galpão abandonado. Ele reconheceu a casa amarela sendo cercado por uma cerca de arame, portão de madeira e quintal gramado.

Geraldo parou o carro, desligou o motor e desceu. Trazia no bolso da calça o lenço xadrez de Sandra, o coração palpitava na ânsia de rever a garota para quem havia dado carona na noite anterior. Ele abriu o portão de madeira e adentrou no quintal. Chegou à porta da casa e tocou a campainha. Depois de dois toques, Geraldo percebeu que a fechadura da porta se mexia era sinal que alguém viera atendê-lo.

-Pois não?

Geraldo sorriu um tanto quanto decepcionado por não ter sido recebido por Sandra. No lugar dela apareceu um senhor já de idade avançada.

-Desculpe incomodar. –começou Geraldo meio embasbacado. - Eu sou motorista de táxi e ontem a noite eu dei carona a uma moça que disse morar nesta casa, quer dizer ela disse que o pai dela morava aqui. Ela está? – perguntou de uma vez.

-Perdão, mas não sei de que moça o senhor está falando.

-Como assim? A moça que eu trouxe ontem... Sandra.

O homem parecia ter visto um fantasma e ao ouvir aquele nome foi como se tivesse levado um soco no estômago, pois ele logo empalideceu.

-Por favor, queira entrar. - disse o senhor afastando-se da porta para que Geraldo pudesse passar.

Geraldo entrou na casa modesta. O senhor lhe ofereceu uma cadeira para que ele se sentasse. Ele sentou sem compreender muito bem a reação daquele homem que lhe pareceu por demais estranha.

-O moço disse que deu carona à uma moça ontem a noite e que ela disse que morava nesta casa. – o homem fez uma breve pausa como se quisesse encontrar o ar para lhe preencher os pulmões. – disse que ela chamava-se Sandra.

-Sim A Sandra eu a peguei por volta de meia noite e meia, na frente do cemitério, chovia e eu fiquei com pena, ofereci carona ela aceitou.

-Moço esta moça, Sandra ela é minha filha.

-Eu sei, ela me disse. Onde ela esta? Eu poderia ver ou falar com ela, quero entregar algo que ela deixou no meu táxi.

-Ela está morta há mais de dez anos.

-Eu sei!Ela... O quê? Quê... Como? Eu não entendi?

-Ela morreu atropelada na frente do cemitério. Tinha quinze anos

-Não. Ela entrou no meu carro comeu o meu sanduíche. Não devemos estar falando da mesma pessoa, não é claro que não...

O homem foi até um cômodo e voltou de lá com uma fotografia muito antiga e entregou à Geraldo. Que olhou para aquela foto e lá estava à moça de vestido florido azul escuro sorrindo, ele tremia e seu estomago estava revirado. Olhou para as mãos da moça e ela trazia um lenço xadrez. O lenço xadrez que ela deixou no táxi.

-Não eu não posso acreditar...

-Foi muito doloroso pra mim. Esta foto foi tirada no dia que ela morreu...

-O lenço...

-Este lenço xadrez ela o adorava. Foi um presente da madrinha.

-Está comigo. Eu vim entregar! – Geraldo levou a mão ao bolso da calça e o lenço não estava mais lá. Ele se levantou e suas mãos nervosas vasculhavam o bolso da calça e nada.

-Ela deixou o lenço...

-Foi um dia muito triste pra mim. – contava o senhor. Era véspera de finados tínhamos ido ao túmulo de minha falecida esposa que havia morrido alguns meses antes. Sandra estava tão feliz naquele dia. Enquanto eu terminava de rezar ela pediu para dar um pulinho no Jornal. Ela gostava de ir lá visitar a redação. Coisa de menina moça. Ela atravessou e um carro vinha ultrapassando o outro em alta velocidade, atingiu minha filha em cheio. Eu corri para socorrer mais era tarde.

-morta. Aquele papo de não ter medo dos mortos. – Geraldo falava sem ao menos ouvir o som da própria voz. Estava desorientado.

-Vou mandar rezar uma missa.

-Ela usava este vestido. –dizia Geraldo segurando a foto com as mãos trêmulas.

-Ela se enterrou com ele.

-O lenço, o vestido. Ela comeu meu sanduíche. O beijo. Ela me beijou o beijo era gelado. O beijo de uma morta. –A cabeça de Geraldo dava voltas, a imagem de Sandra não saia da cabeça dele.

-Moço o senhor está se sentindo bem?

-E se fosse você o morto? Ela perguntou... Estou louco, fiquei louco...

-Moço.

Geraldo deixou a foto de Sandra cair e saiu correndo para longe dali. Ao alcançar a rua estava enjoado e vomitou.

-Moço.

A voz do senhor ecoava em seus ouvidos e ele se desligou. Em sua cabeça somente a imagem da moça que ele deu carona parecia ser a única coisa realmente real.

-Sandra... Morta... O lenço.

Nunca mais Geraldo foi o mesmo homem.

FIM!

Autora: Patrícia Mackowiecky Carpes