O Mecânico
A lua já estava alta no céu quando Paulo Molinero ligou o motor do seu Chevette. Ele havia fechado vários negócios durante os últimos dias e agora precisava pegar a estrada. Era representante comercial e viajar era sua rotina. Mas mesmo após anos nesta ocupação, ainda sentia pela esposa uma imensa saudade, que se tornava mais forte a cada hora longe de seus braços. Ele já havia decidido: voltaria à sua cidade ainda esta noite. Afinal de contas, sessenta quilômetros não era uma distância tão grande assim e a estrada era sua velha conhecida.
O motor do carro respondia bem, e a vegetação passava pela janela como um borrão iluminado pelos faróis, para logo em seguida sumir na escuridão. Pensamentos agradáveis tomavam conta da mente de Paulo. Ao chegar das viagens, sua linda mulher sempre o esperava com um delicioso jantar – sopa de legumes, suco de laranja, pão com queijo. Ele podia sentir seu perfume suave, suas mãos delicadas e o doce beijo vindo dos lábios vermelhos. O rosto angelical da bela dama parecia se materializar em frente aos olhos do apaixonado motorista, emoldurado por longos cachos castanho-escuros.
Súbito, um barulho inesperado despertou Paulo de seu devaneio. Inicialmente ele não identificou de onde vinha, mas logo percebeu que o carro perdia força e uma fumaça esbranquiçada escapava pelas frestas do capô. A prudência fez com que ele parasse e estacionasse no acostamento. Por alguns instantes, parecia não acreditar no que estava acontecendo. Seu automóvel estava parado, quebrado! Como poderia ser? O carro era novo e, além disso, ele não estava correndo tanto assim que pudesse forçar demais o motor. Suspirou e olhou em volta. A escuridão o envolvia como um manto negro.
Após alguns instantes, lembrou que tinha uma lanterna no porta-luvas. Pegou-a, desceu do carro e abriu o capô. Buscou com o facho de luz alguma coisa que estivesse fora do lugar. Foi em vão. Ele quase nada entendia de mecânica. Aquele emaranhado de fios, mangueiras e partes metálicas mostrava-se impenetrável. A fumaça havia se dissipado, deixando apenas um leve odor de queimado no ar. A lua havia se escondido por trás de nuvens espessas, que anunciavam ameaçadoramente chuva para breve.
Ao longe, surgiu o brilho de um farol. Na medida em que o clarão ia ficando mais forte, Paulo começou a acenar. Em sua ânsia, colocou-se de pé no meio da estrada e gritou, agitando os braços desordenadamente. O caminhão em alta velocidade buzinou, desviou bruscamente e por pouco não o atropelou. Em poucos segundos, suas luzes vermelhas traseiras sumiam no horizonte. Paulo sentiu um aperto no peito. A sensação de abandono era sufocante. O desespero começava a se instalar em seu coração.
Ficou de pé, sem saber o que fazer, por vários minutos. Durante todo esse tempo, nenhum outro veículo passou por ele. Em um dado instante, lembrou-se de sinalizar o local. Foi até o porta-malas, tirou o triângulo e andou alguns metros para trás, armando-o na posição correta. Pelo menos agora um carro identificaria o sinal à distância e poderia parar para ajudá-lo, de alguma forma.
Após armar o triângulo, Paulo voltava cabisbaixo, pensando em como sua esposa ficaria preocupada por não vê-lo chegar na hora marcada. Ao levantar os olhos, um susto: vislumbrou a silhueta de um homem em pé ao lado do carro, e parou instintivamente. Parecia um sujeito alto, usando uma espécie de jaqueta e um boné. Ao tempo em que sentiu uma sensação de alívio pela iminência da provável ajuda, angustiou-se em pensar que poderia tratar-se de um ladrão. Assaltos eram comuns nas estradas e, vulnerável como estava, certamente seria um alvo fácil. Mas o que poderia fazer, na situação em que se encontrava? Decidiu seguir em frente e, quando estava a poucos passos do carro, falou: “Boa noite”.
O estranho levantou o rosto e o encarou. Sua fisionomia revelava um homem com cerca de 40 anos. Os cabelos grisalhos escapavam pelas laterais do boné, e as mãos estavam enfiadas nos bolsos da jaqueta jeans, surrada. Da sua garganta saiu um pigarro e a frase: “Foi uma correia”.
Paulo ainda recuperava-se do choque. De onde saíra aquele homem? Não havia nenhum veículo estacionado. Nem mesmo uma bicicleta. Respirou fundo, deixou essas indagações momentaneamente de lado e perguntou: “Correia?”
“Sim, uma correia partiu, mas posso arrumar pro senhor, se quiser”, disse o homem. Paulo sequer compreendia direito o que estava acontecendo. Seu raciocínio estava confuso, mas a alegria de ouvir essas palavras superou o medo que ainda se fazia presente. “Claro, claro… mas eu não tenho nenhuma ferramenta aqui comigo, e muito menos uma correia nova, como o senhor vai…”
“Não se preocupe”, interrompeu o estranho. “Sou mecânico há muito tempo, esse serviço é simples e não preciso de ferramentas. Apenas segure a lanterna para que eu possa enxergar melhor”, pediu.
Paulo meneou a cabeça afirmativamente, sem saber o que falar, e apenas fez o que o homem lhe havia solicitado. O mecânico então arregaçou as mangas da jaqueta e as colocou entre os exíguos espaços do motor. “Meu nome é Paulo Molinero, e o seu?”, perguntou, tentando iniciar uma conversa. O homem, sem se virar, respondeu: “João Alcântara. Mas não ouço esse nome há tempos”. Paulo não entendeu essa observação, mas antes que pudesse levantar qualquer tipo de questionamento, o mecânico pediu grosseiramente que não mexesse a lanterna. Paulo não gostou da maneira como o estranho falou, mas ponderou que não estava em posição de fazer exigências com relação à etiqueta. As costas arqueadas do mecânico não o deixavam ver o que se passava, mas ele definitivamente parecia saber o que estava fazendo, ainda que não usasse ferramenta alguma.
Alguns minutos depois, o estranho levantou-se. “Ligue o motor, resolvi o problema”, disse com firmeza. Paulo entrou no carro e girou a chave no contato. O ronco do motor, agora normalizado, era como música para seus ouvidos. Em meio a um sorriso, Paulo falou com o homem: “Está funcionando! Que maravilha… o senhor é realmente um excelente mecânico! Quanto lhe devo?” O estranho balançou a cabeça negativamente em uma expressão sóbria, e disse apenas: “Nada. Pode ir agora… dirija com cuidado”.
Paulo imediatamente abriu a porta do carro, disposto a protestar, já levando a mão à carteira. Mas quando se pôs de pé e levantou a vista, o estranho havia desaparecido. Em seu lugar, apenas a infinita escuridão da noite. Paulo olhou em volta, e ainda gritou o nome do mecânico algumas vezes. Sua resposta foi um profundo silêncio.
Sem mais o que fazer, Paulo entrou no Chevette, que parecia pedir para que a primeira marcha fosse engatada. Deu uma última olhada para fora do carro, apenas para constatar que era o único ser vivo naquele lugar. Fechou a porta, afivelou o cinto e, em poucos minutos, o rosto de sua amada esposa já preenchia novamente seus pensamentos. No local onde o carro se encontrava, ficou apenas o frio da madrugada e uma pequena cruz de ferro onde, se ele houvesse posto os olhos, teria lido as palavras… 'João Alcântara'.