Quase um caso de amor

Eles não se gostavam há tempos. Nunca se deram e nunca iriam se dar bem, isso era um fato irrevogável.

Justin estava com dezenove anos e Richard com dezoito; desde os quatorze e treze, respectivamente, eles brigavam. Tudo começou quando a ex-namorada de Justin os apresentou no intuito de gerar ciúmes, sem muita pretensão, só por imaturidade. Mas, funcionou; Richard era um rapaz bonito e, embora também o fosse, Justin era muito inseguro. Imaturidade de um lado, imaturidade de outro, brigas constantes. Alguns anos depois, com o namoro já acabado, a rixa entre os rapazes permanecia e o ódio era constantemente alimentado.

Certo dia, Justin encontrou Richard em uma festa – sim, eles freqüentavam os mesmos lugares e, para ajudar, a cidade onde moravam era pequena – e o mesmo foi estranhamente agradável cumprimentando-o. Naturalmente, Justin ficou espantado, mas não deu muita importância até acontecer pela quinta vez consecutiva. Era sempre um “Boa noite, velho! E aí? Como ‘ce tá?” com um sorriso um tanto débil estampado. Os dois eram populares na cidade, cada um com seu grupo de “seguidores e admiradores”; o máximo que Justin podia pensar era que ele queria “ser melhor” tornando-se amigável com o inimigo, algo do tipo “eu não tenho nada contra ele, ele que não gosta de mim!”. Era isso! Só podia ser.

Numa oura noite, Justin estava na praia refletindo sua vida, sozinho, vendo as ondas acariciarem a imensidão de areia formando aquele lindo clima de amor da natureza. Era tarde, uma da madrugada; sim, mais ou menos isso. Então, Richard se aproximou sozinho também. Era até estranho encontra-los sozinhos, estavam sempre rodeados de garotinhas e namoradinhas; aquela era uma cena rara.

- Boa noite, velho! E aí? Como ‘ce tá?

- Boa noite, Richard. To bem, graças a Deus.

- Então, ta fazendo o que?

- Como você pode ver – disse com um sorriso irônico – estou olhando o mar.

- Ah, sim! Também gosto de fazer isso – dizia com aquele sorriso demente no rosto.

- Richard, o que ta acontecendo?

- Como assim, velho?

- Não se faça de desentendido! A gente nunca se deu bem e agora você vem sendo tão educado comigo; algo está acontecendo!

- Bom, Justin, não sabia que você tinha percebido, achei que estava sendo discreto.

- Discreto? – falou soltando uma gargalhada – discreta é a rainha da Inglaterra, Richard! Vamos, fale!

- Bem, vou tentar ser direto. Eu sei que não nos demos muito bem ao longo desses anos, mas depois que namorei Jessie, não sei... Ela me falava tão bem de você que decidi tentar me aproximar.

- Talvez o fato de ela ser uma de minhas melhores amigas a ajude a falar bem de mim, mas, ainda sim, namorei Reneé na época em que vocês eram muito amigos e mesmo ela falando bem de você, nunca me interessei, então, não é agora que o farei, portanto, se você me der licença... E não me olhe assim! Você não me convence!

- Vamos sair daqui, Justin; a gente conversa em outro canto, eu to de carro.

- Que idéia! – disse Justin sorrindo – é claro que não.

- Por favor, Justin, não te peço mais nada, apenas uma conversa!

- Richard implorando algo! – disse sarcástico – ta certo, vamos.

E saíram dali, deixando o belo cenário noturno de amor das ondas e da areia. Foram caminhando em direção ao carro com milhões de pensamentos borbulhando em suas mentes. Justin com o olhar desconfiando e Richard com aquele sorriso irritante no rosto. Noite estranha aquela. Chegaram ao carro e ficaram mudos por algum tempo até Justin quebrar o silêncio:

- Então? – Disse impaciente.

- Não sei como começar a falar...

- Mmmm, com a boca? – Zombou Justin

- Sempre sarcástico?

- Oh, e você me conhece tão bem, não é mesmo?

- Bem o suficiente para saber que se conversasse com você obteria uma resposta positiva.

- Você quase me assustou, Richard – disse entre risos – agora vamos, fale.

E nesta hora, Richard trancou a porta do carro e deu a partida com o mesmo sorriso débil, mas desta vez com um tanto de insanidade estampada. Não havia mais como sair do carro já em movimento. O vidro fume e a música alta impediriam qualquer tentativa de Justin chamar atenção de uma outra pessoa na rua.

- Mas o que é isso?

- Eu quero minha resposta positiva!

- Pare de sorrir, pare o carro e pergunte.

- Não, não. Vamos para outro lugar.

Velocidade aumentando, ruas desconhecidas, o breu tomando conta do lugar. O medo se instalando nos arrogantes olhos cor de jabuticaba de Justin. Ele nunca tinha se encontrado numa situação assim e até então não conhecia o medo de ficar a mercê de outra pessoa. O carro parou e eles desceram.

- Onde estamos, Richard?

- Não importa! Não há como você voltar sozinho e a pé daqui, mesmo porque, é tarde e perigoso; vamos entrar.

Era uma casa de esquina belíssima, embora ficasse numa rua de barro realmente deplorável. Entraram pela porta de madeira cheia de detalhes esculpidos e passando pelo hall fúnebre, porém aconchegante, Justin percebeu que havia outras pessoas ali também. Richard percebeu o receio do outro e, aproveitando-se da situação, segurou a mão dele que, aterrorizado, não percebeu malícia alguma.

- Não se preocupe, Justin, ninguém vai te fazer mal aqui; ta tudo bem.

- Você poderia ter facilitado dizendo o que queria quando estávamos na praia! O que está acontecendo, Richard?

- Calma, você já vai saber!

E subiram alguns degraus para os cômodos de cima. Várias portas, um longo corredor. Eles caminharam até a última porta e, para surpresa de Justin, era um quarto normal, embora muito aconchegante.

- Pronto, Richard! Você me tirou da praia e me trouxe para um quarto; agora me diga, o que você quer?

- Você ainda não percebeu, velho?

- O que eu deveria ter percebido de fato?

- Você viu as pessoas lá embaixo! Não reconheceu ninguém?

- Não, não reconheci e... Deixe de rodeios e fale de uma vez! – disse já sem paciência alguma.

- Então, não há o que falar! Achei que você entenderia.

- Como? – Justin sentia um arrepio na nuca e depois de ter ouvido Richard falar e deixar sua imaginação funcionar, um estranho pulsar entre as pernas... Um pulsar cada vez mais intenso olhando para os pequenos negros olhos puxados de Richard. Que com aquela camisa colada no corpo ficava tão, tão... Mas, o que era aquilo? Ele estava, constrangido, olhando para o corpo do outro; algo que ele nunca havia feito com nenhum outro homem. Então foi surpreendido quando Richard tirou a calça – Richard, o que é isso?

- Tire a camisa!

- Lógico que não!

- Tire!

- Pra que?

- Tire e não fale mais nada! Eu já vou explicar. Isso, coloque-a aí mesmo. Está vendo isso na minha perna?

- Sim, há uma rosa tatuada... E daí?

- Está vendo isso no seu peito?

- Eu sei, tenho a mesma tatuagem; eu sei que você a imitou.

- Não, não... Em que dia você a fez?

- Doze de novembro... Ainda não entendo.

- Eu também a fiz no mesmo dia e em segredo; sei que você também.

- Isso implica em... ?

- Você não percebe? É a marca!

- Ahn?

- Veja quantas semelhanças temos! Somos populares, temos muitos amigos, freqüentamos os mesmos lugares, gostamos das mesmas músicas, os mesmos filmes... A mesma tatuagem, feita no mesmo dia...

- São meras semelhanças, não vejo motivo para isso tudo.

- Não, Justin, não são apenas semelhanças. Não podem existir semelhanças. Não existe lugar pra nós dois!

- Então o que você me propõe? Que sejamos um só? – disse tocando a tatuagem na perna do outro com um sorriso malicioso de canto de boca.

- Você está louco?

- Você acha que eu não percebi o que você queria me tirando da praia, me trazendo ao seu quarto numa casa onde pessoas desconhecidas participam de uma orgia na sala... ? Claro que eu percebi. E, tudo bem, Richard, já que você insiste, não vou me opor a seu desejo; não me custa nada lhe dar um pouco de prazer – já que você o sente dessa maneira.

- Ta certo, agora você me convenceu de sua loucura! Trouxe você aqui porque sabia que você não poderia fugir, as pessoas lá embaixo são as pessoas que mais te odeiam... Se fazem o que fazem agora é porque certamente estão entediadas, não me interessa... Minha intenção te trazendo aqui é apenas acabar com você porque, como eu disse, não existe lugar para nós dois.

- Agora eu realmente não estou entendendo mais nada, mas, de qualquer forma, você acha que pode fazer alguma coisa contra mim sem que ninguém perceba minha ausência? Melhor me levar de volta, Richard! – disse com certo temor na voz. O medo estava se instalando no rapaz.

Richard não falou mais uma palavra, apenas saiu do quarto e deixou Justin sozinho, trancado. Milhões de coisas passavam por sua cabeça tola. O mais interessante era o medo que ele sentia que não era de morrer, efetivamente; era de ter sido passado pra trás por seu rival. Saber que estava preso e a sua mercê lhe causava um mal estar terrível e ele tinha que pensar em algo; até porque tinha de sair vitorioso dali para sair contando vantagem, é claro. Observou o quarto de poucos móveis de imbuia, uma cama de casal com um enorme e aconchegante edredom branco e um grande guarda-roupa no mesmo estilo; aonde ele encontraria algo que o salvasse? Revirou as gavetas do guarda-roupa, mas não encontrou nada que não roupas, tirou tudo de dentro da pequena gaveta do criado-mudo e nada também; aonde? Aonde? Debaixo da cama, logicamente! Nada... Ah! É óbvio! Se eles eram tão parecidos assim, ele guardaria uma faca debaixo do travesseiro, afinal, os invejosos estavam aos montes por aí. Correu até a cama e, cautelosamente, olhou debaixo do travesseiro; lá estava, a faca! Não é que as semelhanças eram muitas, de fato? No tempo certo! Quando ajeitou a cama afim de que o outro na percebesse nada, a porta destravou.

- Onde você estava?

- Você não está em posição de me perguntar nada, Justin! Mas, vou matar sua curiosidade. Fui garantir que nada aconteça comigo caso saia algo errado.

- Acabe logo com isso, Richard! Quer me matar, pois me mate!

- Não quer fazer nada que você tenha vontade antes? É sua última chance e ainda estou sem calças! – disse com um largo sorriso.

- Por que não?

Justin foi se aproximando e sentiu seu sexo tocar o dele já rígido, foi encostando seus lábios nos de Richard e tirando, sutilmente, a faca de suas costas. Quando esta prestes a cravá-la no outro, Richard foi mais rápido e tomou das mãos dele, cortando um de seus dedos num movimento rápido.

- E você acha mesmo que eu não imaginei isso?

- Veja o que você fez com minha mão! – dizia Justin entre berros e lágrimas – você cortou meu dedo!

- E vou abrir todo o seu corpo!

Justin se desviou de uma outra facada e pulou em cima da cama, deixando-a como obstáculo entre eles. Ele tinha que se livrar daquela situação mesmo com aquele corte horrendo em sua mão! Era só cortar as duas mãos do outro e então ele estaria em vantagem; e foi pensando nisso que foi pego de surpresa por Richard que atingindo seu outro braço, pintou de escarlate a colcha branca que cobria a cama, mas quando o fez, desequilibrou-se e caiu. Era a hora. Justin, mesmo sangrando e debilitado, pulou em cima do outro que, de costas para cima, não pode se soltar.

- E agora, Richard? Como você se sente aí imóvel?

- Não seja patético, Justin, deixe-me acabar logo com isso!

- Quem está com a faca sou eu agora e não ou deixar, em hipótese alguma, você sair daqui com menos cortes que eu.

E arrancando gritos de dor do outro, foi passando a faca com força em suas costas, fazendo um desenhado “J” para que ele jamais esquecesse de quem o fez. O sangue aumentava ali e mal podia se ver algum lugar que já não tivesse sido manchado pelo confronto dos dois. Enquanto sentado nas costas de Richard, além de esfregar seu sexo nas nádegas do outro afim de o humilhar, Justin ainda cortou outras partes de seu corpo, sem piedade alguma, preocupado apenas em deixá-los com mais cortes que ele. Sim, esta era a única coisa que passava por sua cabeça enquanto os gritos do outro, que soavam mais como sinfonias de Paganini, chamavam a atenção dos que estavam no andar de baixo. De forma abrupta a porta se abriu e, num ímpeto, Justin saiu das costas de Richard, e só nesta hora pôde ver com atenção quem eram as pessoas que estavam ali. Adolph, May, Wesley e Marcus. Foram estes os quatro que subiram e se horrorizaram ao ver Richard inconsciente e ensangüentado no chão; Justin sabia que estava perdido. Eram outros inimigos mortais, na verdade, grandes invejosos que nunca puderam sair da sombra de Richard, eram, definitivamente, incapazes disto.

- O que você fez com Richard? – gritava um Adolph com olhos marejados.

- Ora, eu não procurei nada disto! Agora vamos, já que ele não pode responder por si só, ajude-me – dizia, esperançoso – e arrogante - Justin.

- Você está fora de si! Eu vou acabar com você, Justin! – berrava May. Mas, nesta hora, Richard recobrou os sentidos.

- Amarrem ele! – foram as palavras de Richard, desfalecendo.

- Você disse que isto era somente entre nós, Richard! Você não pode...

E sem poder terminar de falar, os quatro fiéis “amigos” de seu inimigo mor o imobilizaram e o deixaram desacordo com um tanto de éter forçado em seu nariz. Quando acordou, ele se viu preso a uma cama, num outro quarto, enquanto Marcus cuidava dos ferimentos de Richard e os outros três o observavam imóvel. Ele ainda poderia escapar; sim, poderia! Não sabia como, mas o faria!... Ou não.

- Marcus, deixe isso para depois. Ele acordou.

- Sim, sim, Rick, mas não faça muito esforço, nem é preciso.

- Eu sei. – falou decidido – Então, Justin, veja só o que você fez! Estou todo marcado e devo lhe dizer que, (in)felizmente, você não sairá daqui em melhor estado que o meu. Vou lhe dar algumas alternativas. Número um: você se desculpa e implora para que eu lhe solte enquanto Adolph filma; número dois: eu o mato enquanto Adolph filma. O que você prefere?

- Eu nunca, mas NUNCA vou lhe pedir nada, seu idiota! Prefiro que você me mate, ainda sim morro com dignidade.

- Enfim, já que você prefere assim... Adolph?

- Sim?

- Traga-me os cigarros.

Enquanto Justin maquinava todas as formas possíveis de se livrar da tortura que viria, Richard acendia um Carlton para usá-lo de outras formas, que não o fumando. Olhos amedrontados, olhos maliciosos; os dois se fitavam intensamente sem nenhuma palavra enquanto Richard encostava o cigarro em várias partes do corpo já marcado do outro que não soltava um gemido de dor sequer; ora desciam lágrimas solitárias, ora sorrisos debochados enfeitavam seu rosto. Os vermelhões nos braços, nas pernas e na barriga do outro iam ficando mais intensos a cada vez que o cigarro tocava sua pele.

- Você acha que vai me abalar assim? – E um murro bruto o calou.

- Adolph, o que você acha que está fazendo?

- Ele está te afrontando, Rick!

- Não importa, idiota! Você não pode encostar nele! Saia daqui!

- Não vou deixá-lo sozinho com ele!

- Como? – Até então Richard não havia o encarado, mas neste momento virou-se e o olhou – O que você está dizendo?

- É isso mesmo! Não vou!

Era o que precisava para iniciar um outro confronto naquele quarto. Richard partiu para cima de Adolph e começou a esmurrá-lo enquanto ele apenas tentava desviar-se, não queria bater em seu “amigo”, mas Richard não se importava, partia para cima dele com toda a agressividade que pudesse encontrar, e os outros tentavam separá-los; foi a deixa para Justin que depois de muitas tentativas conseguiu puxar um cigarro ainda aceso caído no chão para a corda, queimando-a e conseguindo enfim soltar-se. Ninguém havia percebido e ele olhou em volta e viu a arma que Richard certamente usaria contra ele: um Tauros, trinta e oito, antigo, com o tambor meio carregado, provavelmente comprada nas ruas. Num movimento sutilmente rápido, Justin pegou a arma e gritou:

- PAREM TODOS! A-GO-RA!

Até então ninguém realmente havia percebido que ele estava solto. Nesta hora Richard olhou para o lugar onde ele estava amarrado e viu as cordas queimadas, olhou para o criado-mudo onde tinha deixado a arma e viu que era aquela que agora estava em poder de seu inimigo.

- É, você conseguiu. Estamos em suas mãos agora! O que você vai fazer, Justin?

- Não passa pela sua cabeça? Legitima defesa!

E atirou na perna dele, de Adolph, Wesley e Marcus; May, aterrorizada, saiu correndo do quarto. Caídos no chão, agonizando, não tinham palavras para um Justin com ar de superioridade que os olhava com desdém. Alguns outros tiros, e May desesperada tentando encontrar a chave da porta da frente, e Justin indo a seu encontro.

- May querida, não fique com tanto medo! Não vou lhe fazer mal algum, a não ser que você queira.

- Por favor, Justin, não faça nada e me deixe sair! Eu não queria fazer nada...

- Agora vejo como o ser humano pode ser repugnante! Se encontra-se em perigo, desafia toda a hombridade de quem lhe ameaça. Mas pior mesmo sabe, May, é ver como você trai seus ideais com facilidade.

- Não, Justin, é sério!

- É sério, May! Mesmo sabendo que poderia morrer depois de torturas, eu disse tor-tu-ras, eu não traí o que acreditava e você, miserável, para salvar-se, humilha-se desta forma!

- Justin...

- Você não merece viver! – E com apenas uma bala estourou a cabeça da garota, manchando o belo tapete que cobria o hall da casa – aquela casa realmente era bonita – era o que ele pensava.

Com as chaves da porta na mão, saiu da casa, dirigiu-se ao carro e saiu daquele ambiente ridículo de manipulação e atentado a seu brio. Estava feito, eles nunca, nunca mais iriam importuná-lo. O carro saiu em alta velocidade com uma música alegre tocando em todo volume, enquanto um Richard debilitado observava, lânguido, da janela um quase caso de amor.