ASSALTO NUMA NOITE DE NATAL

Naquela noite tudo deveria sair de forma perfeita porque o trio de garotos havia estudado o local do assalto anteriormente com muito afinco, não tinha erro. Seria fácil passar pelo vigia na portaria dizendo que iam fazer entrega de pizza e ele, mesmo desconfiado, seria rendido e amordaçado. Enquanto os convidados daquelas tradicionais festinhas estivessem se aproveitando entre comes e bebes, não iriam se importar com o fato de não ter ninguém na recepção. Os caras da policia ficariam malucos: um prédio residencial sendo assaltado em plena noite de natal.

Johnny, o neguinho mais velho, tinha dezenove anos e era o mais estudado nas paradas: o único que já tinha sido preso, isso quando ainda era menor de idade. Foi ele quem arrumou os guarda-pós de entregador, duas garrafas de refrigerantes litro e duas pizzas. Como tinha conseguido isso, não importava. Tuta, o mais novo, tinha a pele sardenta pintava o cabelo ruivo de louro. O seu maior orgulho era roubar carros como ninguém. Tinha dezesseis anos. Cadinho, o outro neguinho que usava brinco e trancinhas no cabelo, tinha dezoito anos. Era o mais inexperiente.

- Vai na frente! - ordenou Johnny.

Cadinho entrou no pequeno hall de entrada com os dois litros de refrigerantes na mão.

- Entrega no sexto andar.

O vigia que parecia quase dormir, antes da entrada dos rapazes, levantou a cabeça e argumentou: - não tem ninguém morando no sexto andar.

- Não interessa.

Johnny lhe apontou o trinta e oito e já foi logo mandando o velho abrir a entrada que dava acesso ao elevador, em seguida o mandou deitar no chão. Tuta foi chegando e logo pisando nas costas do vigia e lhe amarrando as mãos para trás com uma cordinha de nylon, depois arrancou com força o sapato do prisioneiro, tirou suas meias, embolou e enfiou em sua boca, amarrou os pés e arrastou o infeliz até o quartinho onde se guardava material de limpeza com a ajuda de Johnny que já de posse das chaves trancou a porta do pequeno cômodo.

Cadinho ficou cismado. Tuta era o mais violento dos três. Tinha medo de acabar envolvido em homicídio sem necessidade. Desde que decidiu andar com os dois caras mais barra pesada do bairro, não pensava em outra coisa senão em “ganhar moral com as mina” e torrar o dinheiro do assalto com roupas e armas. Mas quando pensava na mãe e nos irmãos batia um certo medo, podia ser que acabasse preso ou até morto.

- Anda logo! Chama o elevador! põe esse refrigerante no chão... - Johnny despejava suas ordens.

O prédio tinha seis andares. Ficava em um conjunto habitacional mais pra classe média alta. No segundo e no quinto andar havia barulho de festa, no terceiro e no quarto, silêncio; no sexto não morava ninguém como descobriram através do porteiro. Voltaram para o terceiro e apertaram a campainha. Johnny estava seguro de que ali encontrariam o que estavam procurando. Uma senhora com cara de uns quarenta e cinco atendeu a porta e ficou espantada: - Eu não pedi pizza. Isso é um engano.

- Não é engano não minha senhora - Johnny apontou o trinta e oito e foi logo empurrando a mulher pra dentro do apartamento, Tuta e Cadinho entraram em seguida, o último fechou a porta. Sentada no sofá da sala uma moça que, pela semelhança física, devia ser filha da senhora mais velha, assistia a televisão. As duas ficaram submissas aos indesejados visitantes.

- Levem o que quiserem mais deixa a gente em paz.

- Sossega aí, tia. É natal. Agente não tem hora para ir embora - disse Johnny.

Tuta se sentou ao lado da moça mais jovem e começou a mexer nos cabelos longos dela com a ponta do seu revolver. Era metido a galã.

- O que está esperando pra olhar no quarto? - Johnny ordenou a Cadinho.

O som da música alta vinda do segundo andar até ajudava no assalto. Cadinho era visivelmente o mais perturbado dos três. Com a arma em punho entrou em um dos quartos, antes deu pra ouvir o Tuta falando: - Johnny, se esse cara aí ficar pra trás eu não volto pra pegar ele não. - As palavras de Tuta soavam tão ameaçadoras quanto depreciativas ao mesmo tempo. Dentro do quarto havia um porta-retratos ao lado de outros objetos que ficavam em frente ao espelho da penteadeira. A mãe estava junto com o marido na foto, curiosamente o homem lhe pareceu familiar. De repente percebeu que o próprio estava num canto do quarto o observando silenciosamente.

- Entre meu rapaz.

- Isso é um assalto...

O homem realmente era familiar a Cadinho. Estranhamente parecia ter a mesma idade da foto, enquanto a mulher que vira na sala estava bem mais jovem ali no porta retratos.

- Senta aí, meu filho.

- Não sou seu filho.

- Eu conheço seu pai... Ele teria sido um bom sujeito se tivesse tido chance.

O jovem ficou indignado. Não teve dúvidas que estava diante de um louco. Esqueceu até seu nervosismo.

- Escuta aqui, maluco, você não conhece meu pai. Ele morreu já tem uns dez anos. Para de maluquice e me diz logo onde ta escondido o ouro. Eu só quero saber do ouro.

- Tem muito ouro na minha casa. Mas nenhum vai te servir pra muita coisa.

Cadinho perdeu a paciência, começou a mexer nas gavetas e a jogar roupas e outros objetos por todo o lado. Arrancou o lençol da cama com facilidade, achou estranho porque o homem continuava lá de pé tranqüilamente. Pegou umas peças de roupas caras, todas elas femininas e fez uma trouxa com o lençol. Foi até a sala. Tuta continuava perturbando a moça. Johnny deveria lhe chamar a atenção. O líder dos assaltantes, porem, estava mais preocupado em encher sua mochila jeans com objetos roubados da casa, como um cd player.

- Então? Só arrumou roupas de mulher? – Johnny observou a trouxa de Cadinho. – Cadê as jóias? Eu escutei a sua voz, tava falando com alguém?

- Eu não achei jóia. Lá só tinha um coroa que fica falando coisa esquisita.

Foi engraçado quando Cadinho disse aquilo. As duas mulheres olharam atônitas uma para outra.

- Que coroa é este? – perguntou Johnny.

Nenhuma das duas respondeu. Limitaram-se a balbuciar coisas sem sentido.

- É o marido dela. Eu vi na foto – falou Cadinho.

- É mesmo? Há quanto tempo seu pai pirou, gracinha? – Tuta ficou provocando a moça. A mãe, no entanto, sentiu tonturas e desmaiou, precisando ser amparada pela filha.

- O que tem sua mãe? Olha, se tiver fingindo só pra gente ir embora pode desistir. – Johnny olhou pra Cadinho – Vai lá dentro e procura de novo, vê se acha alguma jóia. E o coroa? Ta bem amarrado?

Cadinho estremeceu. Como pôde esquecer de amarrar o homem?

- Ele ta amarradinho – Cadinho voltou para o quarto.

Lá ele encontrou o homem sentado no mesmo lugar. Pela janela dava para observar a explosão de alguns fogos de artifício soltados pelos vizinhos mais afoitos.

- Hoje é natal meu filho, vá pra sua casa.

- Eu não gosto de natal – cortou Cadinho enquanto procurava por mais alguma coisa nas gavetas.

- Foi numa véspera de natal que seu pai se foi, não é?

O jovem ficou impressionado. Como aquele desconhecido podia saber sobre a morte de seu pai? Havia algo de calmo e de sábio no modo como ele falava. O homem estava totalmente deslocado dos acontecimentos daquela noite e sua lógica era dos doidos, mas sua serenidade era de uma pessoa saudável.

- Escuta aqui, é melhor parar com essa conversa ou eu te estouro a cara.

O homem continuou do mesmo jeito e olhava para Cadinho como se nem se importasse com seu revólver ameaçador.

- Você não gosta de falar do seu pai, não é? Tem toda a razão, meu filho. Ele te batia muito. Ele te xingava, botava a culpa de tudo em você.

Como aquele estranho podia saber de coisas que costumavam ficarem guardadas por entre as paredes de sua casa? Quem poderia ter lhe contado aquelas lembranças tão amargas e particulares de sua vida? Não tinha a menor idéia.

- Seu pai não tinha culpa de agir assim. Era pressionado demais. Muito pressionado. Vá pra sua casa, você é especial demais pra entrar nessa vida.

- Cala a boca! – gritou o jovem.

Naquele instante ouviu-se um estouro que vinha de dentro do apartamento. Cadinho correu até a sala. No chão um cisne pintado de azul marinho florescente estava partido ao meio, deixando transparecer do seu interior um maço de notas respeitável.

- Até que enfim! – Johnny pegou as notas de dinheiro americano, guardou no bolso da mochila e ordenou a Tuta que trancasse as mulheres no banheiro e que Cadinho desse uma última olhada no quarto.

Pouco depois Tuta se encontrava no banheiro amarrando as duas vítimas. Mexeu nos cabelos da filha e a chamou de amorzinho. A moça se encolheu de medo. Cadinho surgiu de repente e aliviou a barra:

- Deixa a moça em paz.

- O que? – Tuta se voltou para o parceiro – agora deu pra dar ordem? Eu não vou fazer nada com a moça, seu tonto. Cadê o tal coroa?

- Eu não sei. Ele sumiu.

- Cadinho, Cadinho! Você ta vacilando, o cara! Sabe o que o Johnny falou? Ele disse que se você ficar para trás ele não volta pra te buscar. Eu sou teu amigo. Fica esperto – sem se preocupar se o companheiro havia acreditado ou não em suas palavras, Tuta mudou de assunto: - E o homem? Saiu voando pela janela?

Nesse momento a música no quinto andar deu uma parada. No segundo a festa continuava a toda. Era possível que algum “intrometido” do quinto tivesse dado pela falta do vigia. Cadinho foi até a cozinha e deu uma olhada pela janela. Duvidou que o coroa tivesse tido coragem para pular na escuridão do jardim.

Um pouco depois o trio se reuniu na sala, decidiram que não procurariam pelo homem desaparecido – apenas Cadinho havia notado sua existência - e nem iriam assaltar os outros andares. Juntaram todos os objetos roubados e chamaram o elevador. Assim deixaram o terceiro andar e conseguiram descer até a garagem. Quando a porta abriu Johnny e Tuta logo foram carregando os objetos para fora. Cadinho ficou para trás, pensativo. Foi quando aconteceu algo de estranho: a porta do elevador fechou, conduzindo Cadinho de volta ao terceiro andar, deixando os outros dois delinqüentes na garagem.

Nesse momento a musica parou também no segundo andar. Cadinho sentiu que o assalto definitivamente havia sido descoberto. Ainda assim preferiu entrar de volta no apartamento que acabara de assaltar, precisava confirmar algo que o incomodava. O rosto do homem misterioso lhe parecera familiar desde o começo, mas agora tinha certeza de que o conhecia. Foi direto até o banheiro, tirou a mordaça da boca da mulher mais velha e fez uma pergunta:

- Me responde rápido, aquele homem que estava no quarto é seu marido, não é? Ele tem uma transportadora, não tem? Ele comanda um monte de motorista, não é? Vai, me responde!

- Calma, eu vou responder... – a mulher falou assustada, arregalando os olhos verdes -...o meu marido realmente era dono de uma transportadora. Eu e minha filha vendemos tudo. Não sei de quem você está falando. Meu marido não está no quarto.

Cadinho ficou confuso de novo. Amordaçou a mulher novamente e saiu em disparada até o quarto de casal. Voltou de lá com o porta-retratos na mão. Ofegante, tirou a mordaça da boca da mãe novamente e perguntou afoito:

- Esse aqui na foto é seu marido?

- Sim, mas...

- Então ele estava no quarto, eu vi. Pra onde ele foi eu não sei. Se a senhora estiver me escondendo alguma coisa...

Nesse momento a filha começou a chorar silenciosamente, por baixo da mordaça. A mãe parecendo tão confusa quanto Cadinho resolveu falar:

- Esse era meu marido realmente, mas ele não estava lá no quarto, ele não está em lugar nenhum. Meu marido morreu com um tumor há sete anos.

Na garagem Johnny discutia com Tuta se deveriam ou não esperar pelo companheiro.

- Esse cara vacila demais, ele já devia ter voltado. Ouvi um barulho de carro lá fora. Sinto cheiro de polícia.

- E se eles pegam o Cadinho e babaca entrega nós dois?

- Eu mato ele. Não quero nem saber.

- Tá legal. – Johnny abriu o portão com as chaves do vigia e deu uma olhada. Fez um sinal para o parceiro, havia policiais na recepção. Tuta, com sua habilidade inquestionável, abriu um Fiat azul marinho e colocou os objetos na parte de trás com a ajuda de Johnny. Depois entrou e ligou o motor. Johnny, ainda de pé, ficou atônito ao ver um policial uniformizado do lado de fora do portão:

- É polícia!

O jovem atirou primeiro, fazendo com que três estampidos ecoassem pelo ar da garagem. Pelo menos uma das balas acertou o policial que caiu ferido e se arrastou para trás de um fusca alaranjado, o carro mais velho guardado ali dentro. Um outro militar mais precavido se agachou junto à parede da entrada e atirou quatro vezes contra Johnny que tombou sobre o Fiat e depois se desmoronou pelo chão já sem vida.

Tuta arrancou o carro ainda com a porta aberta, mas ao sair na rua se chocou com a viatura de polícia que estava estacionada muito próxima à garagem, obstruindo a passagem, afinal havia muitos carros na rua devido às festas de fim de ano. Pegou a arma e atirou várias vezes contra o militar que acertou Johnny, obrigando-o a se refugiar na garagem. Mas um terceiro policial, apareceu de surpresa pela janela do lado do passageiro e atirou três vezes. Uma bala atravessou o interior do veículo e se perdeu na rua. As outras duas porem, acertaram o peito de Tuta que tombou vencido sobre o volante. Logo o quarteirão inteiro ficaria agitado.

Cadinho escutou o tiroteio. Olhou pela janela do quarto do casal e viu toda a movimentação da rua. Voltou até o banheiro e um pouco desnorteado chegou a perguntar a mulher se o marido dela não tinha um irmão gêmeo. Diante de uma resposta negativa, amordaçou a boca da prisioneira mais uma vez e foi até a cozinha. Pela saída dos fundos observou o jardim escurecido. Havia uma árvore cujo um dos galhos encostava-se ao prédio só que dois metros abaixa de onde estava Cadinho. Se conseguisse agarrá-lo na queda talvez se pendurasse nos galhos mais baixo e assim chegaria ao solo. Primeiro jogou a arma. Depois se pendurou na janela e por fim arriscou o salto. Conseguiu agarrar com o desespero de um animal em fuga, fazendo-o curvar. Como havia muitas folhas suas mãos escorregaram, acabou batendo as pernas em outro galho mais baixo. Com o impacto virou-se no ar e sentiu que cairia com a cabeça voltada para baixo e então quase que instintivamente pegou um graveto fino que lhe surgiu na frente e que logo se quebrou, mas pelo menos conseguiu fazer com que suas pernas voltassem para baixo e assim chegou ao solo.

Levantou-se com o corpo dolorido e viu que teve sorte. Tirou o guarda-pó de entregador de pizza e depois encontrou o revólver. Logo os policiais estariam dando buscas naquela parte deserta do conjunto habitacional. Havia um gramado que levava até um fosso logo adiante, por onde Cadinho escorregou até chegar ao muro. As dores aumentaram. Percebeu que havia quatro fios de cerca elétrica o separando da fuga. Tirou um cordão que ganhara da namorada e atirou nos fios. Não houve reação: - Ta desligado! Graças a Deus! – pensou. Subiu como pode e caiu do outro lado. A rua de trás estava quase vazia. Havia lojas de autopeças, uma agência bancária, um depósito de pneus... Nada que ficasse aberto numa noite de natal. Um casal de namorados nem sequer tomou conhecimento de Cadinho e continuou se agarrando atrás de um poste.

O jovem subiu a rua correndo e pegou um ônibus que se dirigia para o centro da cidade. Tinha uns trocados no bolso. Pagou o trocador que lhe observava desconfiado e desceu no centro da cidade que estava vazio de gente. Ficou andando por quase uma hora a esmo pensando no homem-fantasma. Ele tinha sido patrão do pai de Cadinho e vivia pressionando o empregado a ponto de não deixá-lo em paz. Numa véspera de natal, o patrão cismou que uma certa carga deveria ser buscada numa cidade vizinha de qualquer jeito, mesmo se sabendo que no outro dia seria feriado. O motorista precisava de uma folga porque vinha trabalhando demais e chegava em casa nervoso, brigando com todo mundo, mas ainda assim, sob pressão, foi buscar a tal carga. Acabaria virando o caminhão e morrendo na estrada. Isso foi quando Cadinho tinha oito anos.

Finalmente deu meia-noite. Cadinho parou em cima de um elevado. Ficou observando os fogos de artifício que se misturavam com as estrelas de um céu de natal tropical. Um espetáculo bonito de se ver. Pegou o revólver e o atirou no fundo do ribeirão. Prometeu a si mesmo que nunca mais pegaria em outra arma e jamais tentaria roubar alguém de novo.