O CHORO DOS INOCENTES

O rádio ligado ecoa “Como é grande o meu amor por você”, de Roberto Carlos, enquanto o carro segue pela via, conduzido por uma balzaquiana de cor amorenada, cujo cansaço se evidencia pelas grandes olheiras. No banco detrás, na cadeirinha, um garotinho de uns dois meses dorme em paz... "Graças a Deus!" - pensa a mãe, afinal, ele havia passado o dia todo no hospital,  com febre batendo nos quarenta graus, vítima de uma virose qualquer, dessas que vem e vão sem qualquer explicação.
 

Aproxima-se o farol e o carro para aos poucos. A rua está deserta! Nenhuma alma penada para contar histórias, trocar receitas ou informar as últimas do além. O céu, enebrecido como só visto em dias de temporal, oculta a lua e as estrelas. Reina o breu!  A mulher olha uma ou duas vezes para o relógio, impacienta-se, queria estar em casa, ao lado do esposo, deitada, descansando... Estava ausente de casa há muitas horas.

 

O sinal continua fechado! Irrequieta, pensa avançá-lo, ninguém iria vê-la e, mesmo se a visse, pagaria apenas uma leve multa, dessas que qualquer “poupancinha” é capaz de quitar; todavia, a consciência – o ser que vive em nós como se fôssemos a sua morada eterna, a proíbe, pois além dela, o carro levava também o fruto de seu amor... E se, por acaso, algo lhe acontecesse, resquício de um suposto acidente? Jamais se perdoaria!  Melhor esperar! E assim faz! Novamente olha o relógio, passam das vinte e duas horas.

 

O sinal abre. Ela avança, sua casa está a algumas quadras. Ao fazer a curva, um novo sinaleiro se fecha. O carro novamente para! Um relâmpago corta o céu, momento em que um jovem passa à sua frente e algo lhe chama a atenção àquela figura estranha, meio cadavérica, com as calças caídas mostrando a cueca e um boné vermelho sangue contrastando com a luzerna intermitente que se reflete de um longo colar preso ao pescoço.  Por alguns instantes, perde-se a analisá-lo, é neste momento que um frio lhe corre a espinha. O sinal permanece fechado! A emissora de rádio, a pedido de outra ouvinte, por incrível que pareça, repete a mesma canção do rei . De relance, ela vê o filho... Está tudo bem! Ele dorme como um anjo! Ao retornar a atenção à figura, não mais o encontra.

 

_VÁ LOGO! VÁÁÁÁÁ!!!!!! – A porta do passageiro se abre com violência! Lá está o rapaz de há pouco,  aparentemente sob o efeito de algum entorpecente, com uma pistola nas mãos, berrando para que saia logo dali. _VÁ LOGO! SE NÃO QUER QUE EU LHE META UMA BALA NA CABEÇA!!! NÃO ESTÁ ME OUVINDO, SUA... SUA...??? – indaga, com a arma rente à cabeça da mulher, que, alucinada pelo medo, troca o acelerador pela embreagem e afoga o carro. _VAMOS!!! SAIA JÁ DAQUI!!! SAIA!!!

 

A algazarra acorda a criança, que atormentada pela situação, emite um choro fino, estridente, de alguém que está em desespero, prestes a ser alçado à cova do esquecimento. Surpreso com a presença do bebê - algo que ele não havia se atinado ao invadir o veículo, volta-se à mulher com a saliva descendo pela boca:

 

_DESGRAÇA! Com isso eu não contava – sussurra para si mesmo. _CALE A BOCA DESSE INFELIZ, SE NÃO QUISER QUE EU META UMA BALA NAS FUÇAS DELE! VAMOS, SUA... VOCÊ... ELES, CAMBADA! CALE A BOCA DESSA CRIATURA! JÁÁÁÁÁ!!!!!!

 

Ela tenta, sem sucesso, acalmar o pequenino, enquanto religa o carro. 

 

_Fi-fi-lho... João... é...é...a mamãe...calma fi-filho!“Nana neném, que a cuca vem pegar...” – cantarola, numa voz quase inaudível; pensa tranqüilizá-lo, evitando que ambos acabem vítimas do infeliz e “horror urbano” nas páginas policiais dos jornais do dia seguinte. Percebendo ser em vão,  volta-se para o bandido e implora:

 

_Deixe-nos, mo-ço, por favor! Leve o carro, a bolsa, esta pulseira... não é de ouro, deve valer alguma coisa,  mas nos... nos...nos deixe viver! -  começa a chorar, _Deixe-nos, por favor! EU IMPLORO!

 

_CALE ESSA BOCA! – Acerta o queixo dela com as costas da pistola, uma ferida se abre e o sangue desce, sem rumo, pelo vestido cinza escuro que havia ganho do esposo. _NÃO QUERO CARRO ALGUM! SE EU FICÁ COM ELE, OS HOMI ME CATA LOGO... PENSA QUE SÔ TONTO? QUERO GRANA! CADÊ? FALE, LOGO!!!

 

_De-baixo do banco está minha bolsa, pegue-a e se vá... POR FAVOR! – Suplica ao pressentir que seu filho não se calaria.

 

_SÓ ESSA MISÉRIA???- diz, abrindo a carteira dela com violência_ VAMOS PRO BANCO... VOU LEVAR TUDO!!!

Mesmo com a arma apontada à cabeça, ela tenta manter a calma  e prossegue o trajeto na busca angustiada por um caixa eletrônico, antes que uma desgraça de fato lhes aconteça.  Cada vez mais encolerizado com o choro, o rapaz surta de vez e desfere uma coronhada contra a cabeça do bebê, que desfalece após convulsionar, levando a mãe a abandonar o volante para atacar o marginal.  Dono de uma força deveras maior, ele a agarra pelo pescoço e a comprime contra a porta do motorista, enquanto a outra mão, com a pistola, encontra a cabeça da pequenino.

 

_VOCÊ NÃO VALE NADA, A ÚNICA COISA QUE LHE SOBRARÁ SERÃO OS MIOLOS DESSA PORCARIA DE GENTE... – sentencia.

 

 Suas pretensões são alteradas pelo destino, quando o carro invade a calçada e colide contra um muro. Sem cinto, o infeliz é atirado contra o vidro, que se estilhaça com a pancada, enquanto a arma cai do lado de fora e dispara sem rumo.

 

 Após segundos desacordada, a mulher recobra os sentidos, empurra o indivíduo para o lado e salta para o banco de trás, na falsa esperança de que João terá um final menos cruel.

 

Com ele sufocado pelo próprio vômito em mãos, ela grita, grita, grita tanto, que se é possível ouvir de muito longe. Os lábios arroxeados e olhos sem brilho dizem tudo...João já não mais faz parte desse mundo!

 

Me desespero a procurar /Alguma forma de lhe falar...” – continua a canção de Roberto Carlos, agora na voz da mãe em prantos. _“Como é grande o meu amor por você...”