O Homem do Terno Cinza

NOITE DAS BESTAS

O homem do terno cinza

A noite ia tranqüila. Caminhava com a certeza do meu dever. As luzes iluminavam a pequena praçinha, as folhas das árvores quebravam o silêncio mórbido do lugar. A sombra de um homem apareceu diante dos meus olhos sentado solitariamente num banco.

Fiquei parado por alguns segundos na tentativa de decifrar aquela cena, seria premonição?... Não, era apenas só outra alma perdida no infinito oceano da solidão. Sabia que tínhamos interesses em comum, ele possuía algo que deveria ser entregue a mim e eu o mesmo.

Voltei a andar em sua direção com a mesma convicção de antes, agora refletindo sobre tudo aquilo que me foi passado. Seria mesmo necessário? Nunca antes tinha parado para pensar no que era pago para fazer, mas hoje foi diferente, alguma coisa ou algum ser despertou em mim tal dúvida, tamanha angústia. Como? Não sei.

Quando dei conta de mim estava atrás dele: as poucas estrelas no céu transmitiam a pureza e uma noite triste como tantas outras vividas pela minha pessoa. Abri o blazer e tirei uma carteira de cigarros, na verdade o resto de uma, e em um movimento quase automático coloquei um dos cigarros em minha boca e sem perceber estendi o braço em direção ao homem que estava a minha frente.

— Cigarro? — Ofereci antes que pudesse pensar.

— Não, eu não fumo. — Respondeu sem me encarar. Pela voz pude perceber, alguma coisa saiu errado.

Guardei a carteira, sentei no banco, dei uma olhada discreta naquela figura. Devia ter uns vinte e poucos anos, trajava um terno cinza com cheiro de novo, uma gravata preta de marca que lhe caia muito bem e uma camisa tão branca quanto a nuvem, contrastando comigo um velho de sessenta anos, desgrenhado que usava terno preto já surrado, com uma gravata cinza desgastada e uma camisa amarelada pelo tempo.

Olhei o relógio era exatamente uma da madrugada. Puxei o isqueiro, desses que se compra em qualquer fiteiro, acendi o cigarro dei uma longa tragada e lancei aos ventos a fumaça da morte. — A vida é uma incógnita você nunca sabe o que vai acontecer. —

— Noite complicada? — Perguntei sorrateiramente.

— Você nem tem idéia. — Respondeu de maneira seca.

— Acredite, sei sim.

— Nunca vou esquecer esse dia, minha mente não vai permitir. — Falou o rapaz com a certeza da juventude.

Passei a observar aquele homem de outra maneira. Em sua face jovem pude perceber o cansaço, a dúvida e a solidão. Seus olhos eram tristonhos, possuíam um brilho ofuscado pela desilusão. Como sei disso? Simples, estava vendo meu auto-retrato diante daquela alma perdida de vinte e tantos anos.

— Você sabe por que estou aqui? — Indaguei.

— Sei. — Frigidamente sussurrou.

— Por que você mudou o local? — Já temia pelo o pior.

— Essa é uma longa história, não vale à pena contar.

— Cadê a encomenda? — Perguntei friamente.

— Eu a perdi. — Fiquei chocado por alguns instantes com a resposta. Ele foi encarregado de proteger, mas a perdeu.

— Você sabe das conseqüências que essa atitude pode proporcionar?

— Sei.

— Meu caro, você cometeu um grave erro.

Levantei, joguei o cigarro no chão e o pisei ficando frente a frente com o homem de terno cinza. Ele olhou fixamente para meus olhos encarava-me como ninguém nunca antes havia feito, tive medo daquele olhar, senti um frio que tomava conta do meu velho corpo. Seria a velhice? Não. Era o terror que dominava a minha mente.

— Desculpe-me.

Saquei o meu revólver prateado à luz do luar. Apontei, engatilhei e disparei em um único movimento automático. O disparo abafou a dança das folhas. O rapaz deu um breve suspiro, olhou a mancha de sangue em seu peito sabia desde o início que seu fim seria ali naquela modorrenta praçinha, então seria por isso aquela sensação de medo? Nunca saberei.

Levantou a cabeça lentamente e viu meu rosto pela última vez como se quisesse dizer: nos veremos brevemente. O sangue escorria pelo seu belo terno, o rosto juvenil caía pausadamente nos últimos instantes de vida até que pude comprovar a sua morte. Seus olhos não fecharam como se o espírito estivesse preso ao corpo.

Fiz o meu trabalho. Não era honrado e nem nobre, era sujo e envergonhava os anjos. Toda minha vida eu o fiz sem remorso, mas hoje foi diferente tive vergonha em fazê-lo. Por quê? A resposta como tantas outras nunca saberei, aliás, saberei sim, quando for a hora. Até lá esse mal continuará a consumir o meu ser.

O frio intenso daquela noite combinava perfeitamente com a trágica cena protagonizada por mim e pelo homem de terno cinza. Não tive coragem de olhar mais uma vez para o recém cadáver, com certeza não iria agüentar sabia que se tratava da perfeita encenação da vida e morte.

O jovem morre e o velho vive, não é uma troca justa, mas assim é a vida nem sempre as leis naturais são seguidas à risca, nem sempre o certo prevalece e sempre haverá uma exceção. Virei e fui embora até desaparecer completamente na escuridão levando comigo a marcante lembrança dessa noite e deixando para trás o homem sentado solitariamente no banco da praça como antes. O fim idêntico ao início. Outra piada negra da sombria e impiedosa vida.

Allan Lemos.