O INVASOR
Olhou demoradamente para o diploma que se encontrava emoldurado e pendurado na parede e sorriu, quando se lembrou das enormes dificuldades que enfrentara para consegui-lo.
Sobre a mesa, além dos costumeiros livros e outros objetos próprios da profissão, havia também uma moldura, onde ele, a esposa e filho, sorriam. A foto era bem recente, fora tirada durante a festa do terceiro aniversário do seu único filho.
Parecia que havia sido ontem. Enquanto pensava, não notou que a secretária adentrou sua sala e falou:
- Doutor, doutor...
- Ah!, sim, o que você quer?
- O Dr. Fernando, seu colega, aquele médico que é clinico geral, deseja falar-lhe.
- Está bem, mande-o entrar.
- Não, senhor, é por telefone.
- Então me passe a ligação, vamos rápido!
Segundos depois o telefone toca.
- Meu caro amigo, o que deseja deste seu colega, tão cedo?
- Olha Carlo, estou-lhe mandando um cliente que apareceu aqui com uma história estranha. Como é você o médico de loucos, eu o recomendei a ele.
- Qual o nome dele?
- Deixe-me ver a ficha, um momento. Segundos depois: Ele diz chamar-se Alfredo Nascente.
- Está bem vou atendê-lo, mas ele parece ser perigoso?
- Não, apenas tentou me contar uma historia muito estranha, mas como não sou um psiquiatra, estou-lhe encaminhando para que faça uma análise detalhada dele.
- Ok., e no aspecto físico, como ele está ?
- Perfeito, parece ter a saúde de um jovem de 20 anos, embora ele apresente ter mais de 70. O corpo é de um velho, mas a saúde é de um adolescente. Eu fiz todos os exames e nada de anormal existe nele, exceto na cabeça.
- Está bem, vou atendê-lo e depois eu lhe repasso detalhes ok?
- Certo, um abraço e não se esqueça de aparecer lá em casa qualquer hora para conversarmos. Tchau.
Desligou o telefone e após colocá-lo no gancho chamou a secretária.
- Pois não, doutor, o que deseja?
- O Dr. Fernando recomendou-me um paciente que diz chamar-se Alfredo Nascente, quando ele chegar avise-me, mas não o mande entrar de imediato.
- Sim, senhor.
Quando a secretária saiu, Carlo voltou a arrumar alguns papéis que usava para fazer anotações durante as consultas e após colocá-los na gaveta, colocou todos os outros objetos nos lugares e voltou-se novamente para o computador, para terminar o trabalho que desenvolvia com as análises que fazia de alguns casos.
Durante uns trinta minutos leu, releu, e acrescentou alguns detalhes ao texto, até que foi interrompido pela secretária que anunciou:
- Doutor o seu cliente está aqui.
- Espere uns cinco minutos, depois mande-o entrar.
- Sim, senhor.
Ele precisava dos minutos necessários para que o paciente pudesse sentir-se menos importante do que poderia imaginar . Quando se atende um cliente de imediato, geralmente ele não valoriza muito o profissional, por achar que ele estará sempre disponível para atendê-lo a qualquer hora.
Depois de algum tempo, a porta se abriu e o cliente apareceu. Aparentemente nada tinha de diferente de tantos outros que o procurava todos os dias, com os mais diversos problemas. Esse, no entanto era recomendado pelo amigo, por isso deveria ter mais atenção ao seu caso. Talvez nem mesmo importância tivesse. Fernando poderia ter aumentado o grau de loucura do paciente.
Nestes segundos, enquanto o paciente entrava, viajou longe, tentando imaginar o perfil do seu novo “maluco”.
Levantou-se e dirigindo-se ao cliente que já se encontrava em frente à mesa disse:
- Por favor, queira sentar-se. E complementou: Por acaso aceita um copo com água ou um café?
- Não, doutor, quero apenas conversar com o senhor, já que seu colega disse que é o melhor especialista na área psiquiátrica da região.
- Olhe, senhor Alfredo, não quero que se sinta constrangido em falar do seu problema, não precisa achar que está louco ou coisa assim.
- Tudo bem, doutor, não se preocupe, eu apenas desejo falar do meu problema para alguém que me escute. Essa foto aqui é de sua família?
- Sim, é minha esposa e meu filho, ele já tem três anos completos.
- Bom... muito bom!
- O que é bom senhor Alfredo?
- A família.
- Certo, mas vamos ao que o trouxe aqui, pode falar o que quiser que estarei ouvindo e se permitir irei gravar. Posso?
- Sim, sem nenhum problema.
Discretamente acionou o dial que fazia o gravador funcionar e iniciou o diálogo:
- Pronto, senhor Alfredo, pode começar a falar tudo o que deseja.
- Bem, doutor, tudo começou há mais ou menos trezentos anos atrás, quando descobrimos que estávamos em processo de degradação física.
- Como, trezentos anos ?! Por favor, seja mais claro, que não consegui entender nada do que disse.
- Bom, doutor, vou tentar começar tudo de novo e de outra forma:
- Ok. - Então comece, não precisa ter pressa, fale devagar.
- Há mais ou menos trezentos anos atrás, nosso povo descobriu que estava em processo de degeneração celular acelerada, em decorrência da influência de um cometa que havia passado perto de nosso planeta.
- Você quer dizer da Terra?
- Não doutor, eu não sou da Terra.
- De onde você é?
- Fica difícil fazê-lo entender se não tiver conhecimento astronômico suficiente. Eu até já tentei encontrar entre seus astrônomos algum que pudesse fazer um mapa celeste onde pudesse localizar a estrela, em torno da qual gira o meu mundo.
- E não conseguiu nenhum?
-Não, ninguém na terra ainda tem conhecimento suficiente para encontrar o meu sistema e muito menos meu planeta.
- Ora, senhor Alfredo, e como foi que chegou até aqui?
- Fácil. Para nós é muito fácil, deslocarmos a longas distâncias em pouco tempo. Em termos comparativos, posso dizer apenas para situá-lo melhor que o meu mundo está a uma distância de mais ou menos 700 mil anos luz da terra.
- E você diz que veio para a terra em pouco tempo?
- Sim, nós conseguimos viajarmos em qualquer direção do universo com nossos veículos em questão de horas. Embora eu não possa provar isso é um fato.
- Sim, mas o que veio fazer na Terra.? A pergunta era apenas para dar prosseguimento a conversa que mantinha com aquele “doido varrido”.
- Como eu dizia, nosso povo entrou num processo de degeneração em virtude da passagem de um cometa que espalhou sobre o planeta elementos contidos nele que alterou por completo nosso metabolismo. Por isso nós emigramos em várias direções do universo para tentar encontrar a cura em outros planetas e tentar reverter o processo. Acreditamos que se continuarmos do jeito em que nos encontramos, em pouco mais de mil anos, de nosso mundo, o que representa mais ou menos 3.000 anos da Terra, estaremos completamente extintos fisicamente.
- E o que eu posso fazer para ajudá-lo?
- Doutor, eu preciso de um novo corpo; este que agora eu uso já se encontra bem desgastado devido à alta vibração de minha energia.
- Sr. Alfredo, parece que não entendi bem o que realmente o senhor deseja, por isso explique-se melhor.
- Doutor, eu preciso que encontre um novo corpo para mim, para que eu possa me transferir e continuar a executar o meu trabalho de pesquisa.
- Olhe, parece que realmente o seu problema é realmente muito sério. Será que não entende que não se podem comprar defuntos para usar?
- Mas, eu não quero defunto, eu preciso de um corpo novo e vivo.
Carlo pensou em dizer: “você é louco ou coisa assim?”, mas ficou quieto, porque nenhum maluco admite este estado. A história dele era um verdadeiro absurdo, própria das pessoas que precisam de imediato tratamento psiquiátrico, sob pena de vir a fazer algum mal a outras pessoas. Precisava, portanto ser sagaz, para evitar a violência ou outro ato de insanidade que pudesse colocar sua vida ou de outros em risco, por isso, olhou para o gravador e viu que ainda gravava, então falou:
- Meu caro, eu não sei como ajudá-lo, talvez se voltar outro dia, quem sabe nós possamos tentar encontrar o corpo de que você precisa.
- Doutor, eu vim aqui para tentar explicar meu problema ao senhor, mas vejo que acredita que eu esteja louco. Posso, no entanto, garantir-lhe que não estou louco e não precisa ficar preocupado, eu nunca uso a violência.
- E se eu não conseguir o corpo de que necessita o que irá fazer?
- Terei que usurpar, ou seja, entro nele e domino o EU ali existente e ocupo o seu espaço.
- Como você faz isso?
- Eu apenas desejo o corpo e logo me transfiro para ele, nada consegue impedir-me de fazer isso.
- Quer dizer que você mata o ser que ocupa o corpo e fica no lugar dele?
- Embora eu não mate, é mais ou menos isso que acontece. O EU ocupante, que vocês chamam de espírito, se afasta e eu fico no lugar dele.
- E “esse” Eu, vai para onde?
- Volta à dimensão dele, que alguns de vocês dizem ser mundo espiritual.
- Você acha certo fazer isso sem permissão do EU, dono do corpo?
- Doutor, é uma questão de sobrevivência de minha espécie e o EU que se afasta pode retornar depois em outro corpo através do renascimento. Alguns de vocês chamam esse processo de reencarnação.
- E por que você não faz o mesmo?
- Eu não posso perder tempo e tampouco esperar dezenas de anos, ademais não pertenço à dimensão destes espíritos. O meu mundo é outro e minha forma também.
- Como é sua forma?
-Acho melhor não tentar descrever, pois sei que iria chocá-lo e talvez nem possa entender. Para resumir, posso afirmar-lhe que não parecemos em nada com vocês, humanos.
- Não há problema, pelo menos tente.
- Não, prefiro não fazê-lo, eu desejo que me ajude, pois este corpo já não pode me agüentar por muito tempo. Já estou nele há mais de setenta anos de seu mundo.
- Você já ocupou outros corpos antes deste?
- Sim, vários. O primeiro que ocupei, quando cheguei aqui, foi de um bovino, somente depois me transferi para os corpos humanos.
- E por que veio até mim, se disse que basta desejar para logo ocupar o corpo?
- Mesmo que eu possa assim fazer, temos por obrigação de avisar a alguém do planeta onde estamos, sobre nossa intenção?
- Para quê?
- É uma questão de dever, faz parte de nossa cultura.
- Quer dizer que se desejar matar alguém você avisa primeiro e depois mata?
- Embora não sejamos assassinos é mais ou menos isso. Temos o dever de avisar sobre nossas intenções.
- Sr. Alfredo, se é esse mesmo o seu nome, sua história é muito absurda e totalmente fora de lógica. Agora que já lhe disse que nada posso fazer para ajudá-lo, o que pretende fazer?
- Doutor, eu cumpri minha obrigação de avisar, agora tenho que ir, preciso dirigir-me para a minha nova morada.
Sem se despedir, levantou-se e em poucos segundos saía porta afora.
Carlo chamou a secretária e mandou:
- Ligue para o Dr. Fernando, preciso falar com ele.
Depois que o colega se comprometeu visitá-lo à noite para conversar, Carlo, olhou o relógio e notou que ficara com “aquele louco” por mais de duas horas.
Desligou o gravador, depois repassou o diálogo que havia mantido com ele. Passou tudo para o programa do computador e depois gravou em CD. Levantou-se, chamou a secretária e deu ordens para que remarcasse todas as consultas do dia. Aquele dia havia sido muito desgastante, precisava repousar e ir para casa para ver a mulher e o filho, já que à noite teria a visita do amigo.
Estacionou o carro, pegou o elevador e subiu direto para seu apartamento. Desta vez nem iria passar pela portaria para ver as correspondências do dia. Depois cuidaria disso.
Ao entrar no apartamento encontrou a esposa lendo um livro e antes mesmo que ela pudesse lhe falar qualquer coisa, ele disse:
- Querida, essa minha profissão é de amargar, você nem imagina que tipo de louco esteve no consultório hoje.
- Então me conte, senão a curiosidade me mata.
- Não vou contar nada.
- Por quê?
-Porque você vai escutar tudo, eu trouxe comigo a gravação que fiz, com autorização dele.
Ela ouviu atentamente o diálogo e depois exclamou:
- Meu Deus! Esse sujeito é louco de pedra, imagine, ser de outro planeta e roubar corpos para viver. Cruz credo, cuidado com ele, meu bem.
- Não se preocupe, parece que ele não irá voltar, segundo ele, precisava encontrar um corpo com urgência. Deve estar perambulando por aí ou já na casa dele.
- É mesmo, eu ouvi, e o Fernando, o que disse para ele?
- Ainda nada, vou lhe mostrar a gravação para ter certeza que não somos nós, os loucos. E o Júnior, tudo bem com ele?
- Sim, está deitado, ele chegou meio estranho, estava com febre, dei-lhe um analgésico e o coloquei para dormir, ele parecia muito cansado. Eu até pensei em lhe ligar, mas ouvi dizer que está havendo um verdadeiro surto de virose, por isso não liguei.
-É, pode ser isso, mas é bom ficar atenta.
Enquanto conversavam, o telefone tocou.
Quando Carlo atendeu ao telefone a voz do outro lado falava em tom de brincadeira. Era o Fernando. - Doutor sabe quem morreu aqui na porta do meu consultório?
- Não sei e como eu haveria de saber, você tem tantos clientes e eu não conheço nenhum.
- Nenhum, esse você conheceu!
- O quê, não vá dizer que foi o lunático que esteve comigo hoje?
- Exato !
- Morreu de que?
- Ainda não sei, apenas apagou, deve ter sido o coração.
- Pois era sobre ele que eu queria conversar com você aqui em casa hoje à noite e também lhe mostrar a gravação de nosso diálogo.
- Sinto muito, mas vai ficar para amanhã, esse imprevisto vai-me trazer aborrecimentos, mas fica marcado para amanhã.
- Está bem, até amanhã.
- Até.
A esposa havia ouvido o diálogo e falou:
- Quer dizer que o seu louco, que parecia ser forte, morreu?
- É o que parece. Espere que eu vou ver como está meu filho.
Quando abriu a porta do quarto o menino estava sentado, brincando com uma bola que havia ganhado no aniversário. Quando sentiu a presença do pai, virou-se e, olhando fixamente nos olhos do pai, disse;
- Tudo bem, doutor?
- Ah! É você meu filho?
- Claro, e quem haveria de ser?
- Tudo bem com você, já passou a febre?
- Sim, isso sempre acontece quando me mudo!
- Você se muda! O que quer dizer com isso?
- Nada, pai, é que eu me mudei de sala hoje.
Ficou no quarto da criança alguns minutos, mas resolveu ir embora, pois andava muito preocupado com outros assuntos. Levantou-se e antes de sair falou:
- Vou falar com sua mãe, mas se precisar de alguma coisa é só chamar. “Ele está muito estranho, deve ter sido a febre”, pensou.
Depois que o pai saiu e fechou a porta, o menino, ao ficar sozinho, abriu um largo sorriso e sussurrou para si mesmo:
- Aqui estamos, doutor.
04-08-08-VEM.