30 LONGOS SEGUNDOS

Minha cabeça estava pesada, um sono quase sepulcral caía sobre minhas costas, resultado das nove horas em pé atrás daquele carrinho de cachorro-quente. Tudo o que mais queria naquele momento era pegar o busão, chegar em casa, dar um beijo na mulher, passar os olhos pelas crianças, engolir um arroz com feijão e dar uma “comparecida”, afinal, mulher nenhuma, por mais sensata que seja, compreende o “cansaço” do homem; sempre dá um jeitinho de criar uma outra que só existe mesmo na cabeça dela! Apoiado à parede, observava cada veículo que passava como se fosse o meu; a cada negativa, minha impaciência dobrava a ponto de querer chamar um pivete que estava ao meu lado à briga, por ele insistir em ouvir às alturas uma mesma e cansativa canção num desses walkmans de grã-finos – certamente roubado!

_DESLIGUE ISSO! – exigi, com os olhos transtornados. Não estou agüentando de tanta dor de cabeça...

_SE LIGA MALUCO!- desafiou o rapaz, retirando um punhal da cintura. O VASO É RUIM E PRA QUEBRAR TEM QUE SER FORTE...

Frente a frente, olho no olho, duas figuras que poderiam ser pai e filho, mas como nos tempos das Cruzadas, prontos para se agredirem, dar o primeiro bote e levar o sangue derramado sobre os ossos como o troféu da vitória. Quanta insensatez!

_ Vai encarar? – insistiu o pivete, com sede de morte visível nos grandes olhos negros, diante da multidão que se aglomerava ao redor.

_OLHAAAAAA O BUSSSSSSSÃOOOOOO!!!!!!!! – gritou alguém, certamente, tentando fazer daquele alerta a minha própria salvação.

Como não reagi, o garoto foi se afastando, sorrindo, como se visse um covarde, um desses que você chama de “mariposa”, “guarda-cama”.

A porta se abriu, o tumulto foi geral, carteiras trocaram de bolsas, sacolas ficaram mais leves... O dia estava terminando! Ao pisar o pé sobre o primeiro degrau da escada, senti o beijo da morte oscular minha alma. Por um minuto, não sabia se prosseguia ou retornava; era uma sensação desagradável, estonteante, que tomava meu peito, sufocando-me...

_Tá com medo do pivete? – perguntou-me um rapaz, talvez com a mesma idade, com uma dessas mochilas de camelô nas costas. Venha, ele não é de nada!

O que me impedia de prosseguir nada tinha a ver com o incidente de outrora, bem...não sabia explicar, era como se eu estivesse entrando em uma cova, sendo enterrado vivo! Por acaso você já sentiu isso alguma vez?

_Ô, bacana, tu vai entrá ou vai ficá?- esbravejou o motorista. Não tenho a noite toda!

Do mesmo degrau, li na lateral “Viação Rubanil”, trajeto Passeio-Irajá, via Penha, zona Norte do Rio de Janeiro. Mesmo contrariado, entrei, afinal, se ficasse, teria de aguardar mais de meia hora para pegar o outro coletivo e  a que horas chegaria em casa? A mulher ficaria preocupada demais e as crianças - ah, as crianças, essas talvez nem dormiriam, pensando que o pai não fosse mais voltar, como tantos que também não voltam por motivos tolos, neste Rio, cujo Céu há de ter piedade.

Passei pela roleta e fui me sentar bem no fundo, lugar de onde dificilmente aquele garoto pudesse me ver. Encostei minha cabeça sobre o vidro e foi de lá que, pela primeira vez, olhei o céu. Não havia estrelas, apenas manchas...Manchas? Sim, de uma coloração forte e de difícil discernimento. Nunca tinha visto! As casas foram passando, as vitrinas...cochilei! Acordei algumas quadras à frente! Nada de anormal! Algumas senhoras do meu lado desceram e, à minha frente, um senhor cedeu o lugar a uma jovem mãe com sua filhinha. A menina era tão espertinha, dava um “trabalho” para a mãe que, com uma paciência deveras divina, sorria, enquanto aguardava a parada.

_O senhor tem horas? – perguntou-me a mãe da garotinha, virando-se.

_Claro! São...- as vistas estavam meio embaçadas - são... 21h49.

_É...Quase dez horas! Vinte e nove de novembro, né?

_Isso mesmo! O tempo passa, logo será natal!– sorri. É sua filha? – indaguei, bastante impressionado com a saliência da pequena.

_Sim! É nossa filha!- respondeu, apontando-me seu esposo, que estava do outro lado do corredor.

_Desculpe, não tive a intenção! Aliás, como ela se chama?

_Vitória! Vitória Oliveira Barbosa.

_Bonito nome! Esperta, né? Quantos anos?

_Um ano e dois meses.

Os minutos foram passando...Novamente cedi aos encantos do senhor dos sonhos.

_DESCE!!!!!!! DESCE!!!!!DESCEEEEEEE!!!!!!- acordei assustado, o povo estava em pânico, até então pensei que fosse um assalto; mas ao perceber o cheiro de gasolina, dei-me conta de que se tratava de algo pior... Muito pior!

Adolescentes encapuzados jogavam gasolina por todo o ônibus, em seguida, ateavam fogo, fechando todas as portas para que ninguém sobrevivesse ao atentado. A gritaria era ensurdecedora, ninguém entendia nada! Não bastasse, dois coquetéis molotov foram lançados, cuja explosão retorceu a ferragem do ônibus, cozinhando pessoas vivas, enquanto outras eram pisoteadas e umas poucas, encorajadas talvez por um Deus certamente conhecido na juventude, chutavam os vidros e se lançavam contra as chamas...Ao chegarem do outro lado, à espera, oito criminosos com metralhadoras em punho - agindo como anjos da morte, enviados do inferno - prontos para deportá-los ao abismo dos excluídos.

A insanidade do momento era tamanha que não percebi minhas pernas arderem em fogo; só me dei conta do ocorrido quando ouvi as sirenes das viaturas policiais se aproximarem. E sobre alguns corpos - entre eles o do garoto de há pouco, cuja valentia me fizera temê-lo e cujo walkman ainda tocava aquela melodia detestável, agarrei uma vara de aço e pulei a janela. Os bandidos já iam longe. Sem força, desfaleci, recobrando os sentidos horas depois, num quarto de hospital.

Eu nunca tive o dom de Nostradamus, mas fui avisado por alguma força desconhecida de que aquele ônibus não era o apropriado para seguir viagem, afinal, dezenas de passageiros morreram e outras dezenas, assim como eu, ainda ardem nas UTQ’s dos hospitais públicos do Rio de Janeiro, sem falar de Vitória, que pela boca de minha esposa e na presença de meus dois filhos, fiquei sabendo que havia sido dizimada juntamente ao corpo de sua mãe. Que fim trágico! E o motivo desta barbárie: briga entre facções rivais pelo controle do tráfico de drogas.

O que mais me dá medo é saber que esta trágica cena, cuja duração se estendeu por longos 30 segundos, tão logo voltará, porque no Rio, infelizmente, quem manda é o Governo do Pó e não o Governo do Povo.