PLANTAS DE ESTUFA

(esse texto faz parte de meu livro - inacabado - "O Quiromante de São Valentim")

Breno admitiu que a biblioteca continuava sendo seu lugar predileto na casa.Quando criança, ficava ali, horas a fio, até que a velha empregada lhe chamasse para o jantar, sempre lhe recomendando que não "forçasse a vista" lendo sem acender as luzes quando entardecia.

A ampla estufa de plantas ali na biblioteca, era na verdade um jardim interno, separada dela por um enorme vitral. Sofisticados controles climáticos garantiam a qualidade das espécies. Nunca fora bem aceita por Breno e por sua irmã.Talvez porque aquelas plantas pareciam ser mais importantes para seu pai do que eles, ou porque desde que foi concebida, os dois ficaram proibidos de usarem a biblioteca como esconderijo nas brincadeiras de esconde-esconde.

Agora estava ali, com um livro que ainda não lhe cativara o interesse, e o habitual enfado que o acometia todas as vezes em que ia visitar seus pais. Perguntava-se porque havia nascido de pessoas tão absolutamente incompatíveis com ele... Quando adolescente, cultivava, intimamente satisfeito, a fantasia de ser filho biológico de outro casal. Afinal, sempre tentaram enfiar-lhe uma alma que não era a sua...

A irmã, assim como ele, trazia em sua essência uma tristeza crônica, a mesma que via naquelas plantas de estufa...Nunca perguntara à irmã se ela amava os pais, mas se os amasse, não seria, desde criança, dona daquele olhar tão sombrio...

A noite caía depressa, trazendo pelo vitral cores e formas que, projetadas nas estantes de livros, pareciam ter vida própria. Nuvens pesadas responsáveis por uma tarde abafada, começavam finalmente a cumprir seu dever, despejando uma chuva pesada. Tinha o costume de observar o anoitecer, sem acender as luzes e perguntou-se se isso também o tornava um "voyer" da natureza. Abriu ainda mais a cortina de uma das janelas , observando agora o ritmo frenético da dança dos pingos na vidraça. Observar - somente observar - lhe dava enorme prazer.

Morava na Espanha e já fazia algum tempo que não vinha à Valentim. Não avisara sobre sua visita, mas ainda assim estranhara o fato da casa estar tão vazia; apenas Inácio, o jardineiro, o recebeu. Inácio era como uma das árvores enraizadas ao redor da casa e assim como elas, certamente morreria ali. Soube por ele que sua mãe havia viajado - um tanto melhor - já que cumpriria sua obrigação apenas pela metade. Começou a preparar-se para ficar a sós com o pai - tarefa para ele sempre penosa. Gostaria que Lucio tivesse sido apenas um pai ausente, mas sua arrogância e prepotência estavam presentes até em seus silêncios...

Ouviu um barulho de carro até que o portão da garagem fosse aberto. A pouca claridade e a chuva impediam-no de ver o interior do veículo. Pensou em acender as luzes, mas não o fez. Ficaria ali, junto à janela, aguardando que seu pai entrasse. Alguns minutos depois ouviu sem muita clareza a voz de uma mulher e risos abafados... O que tornava a situação clara como o dia...

A ausência de afeto pela mãe não minimizaria a repulsa que tomou conta de Breno. Levar a amante para a própria casa, para a própria cama...

O suor, da fronte ao pescoço, exigiu-lhe que desabotoasse o casaco. Os passos, agora mais próximos, era a garantia de que o casal entraria ali, a qualquer momento. Assim, pegou o livro, fechou cuidadosamente a pesada cortina e escondeu-se atrás dela, desejando ardentemente estar mais magro.

O calor e a repulsa misturavam-se agora à excitação que antecederia o que certamente iria presenciar.

A porta da biblioteca foi aberta por seu pai que acendeu as luzes, conduzindo a mulher para dentro. A moça de uns vinte e poucos anos, completamente embriagada, em outra situação, poderia facilmente ser confundida com uma colegial.

Lucio afrouxou a gravata, jogando-a sobre a poltrona e, ofegante, começou a beijá-la. A moça livrou-se de seus braços e numa dança sinuosa e trôpega, começou uma espécie de strip-tease. Abriu a saia, deixando-a escorregar pelas pernas e tirou a blusa, deixando a mostra seios de adolescente. Alternava as mãos sobre seu sexo quase desnudo numa minúscula tanga, como se o ensinasse o que Lucio deveria fazer. Seu corpo esguio e seu eu rosto pálido e comum contrastavam de maneira trágica com cabelos negros e lisos que acompanhavam o som de uma música imaginária. Inclinou-se, pegando a gravata e enlaçou Lucio, puxando-o para perto de si e ele que até então limitara-se à contemplação, deixou-se despir por ela.

Nesse momento, Breno, embora excitado, quase deixou escapar uma gargalhada ao ver o pai nu apenas de meias e sapatos de cromo alemão, tentando passos de uma dança ridícula, que o assemelhava a um palhaço decadente...

- Quero fazer aquilo de novo, patinho...pedia a jovem.

- Não, hoje não... já bebeu demais...

- Então não tem jogo... só se for daquele jeito...

Breno perguntava-se intrigado sobre o que estariam falando.

- Tenho um na minha bolsa...

- Não, é perigoso...

- Mas foi você quem me ensinou...

Impaciente e excitado, deixou que a moça pegasse algo em sua bolsa . Depois, na poltrona, sons abafados e cadenciados num ritmo crescente deram lugar ao silêncio, onde apenas a respiração de Lúcio era ouvida.

Breno havia ejaculado num lenço e o livro por pouco não caíra de sua mão. Esperava ardentemente que saíssem logo dali.

- Você está bem? Você está bem? Para com isso, levanta...

Lúcio sacudia a jovem, retirando alguma coisa de sua cabeça, provavelmente o tal objeto que ela pegara em sua bolsa. Por algum tempo, descontrolado, tentou reanimá-la. Pegou o telefone, digitou uns dois números e desistiu, afastando a idéia de pedir ajuda. Andava de um lado para o outro, atônito. Examinou-a várias vezes, tentando sentir-lhe o pulso e a respiração.

Pela primeira vez, Breno via seu pai despido de corpo e alma, como um bicho acuado...Naquela sala, havia envelhecido muitos anos em poucos minutos...

A moça poderia estar em coma alcoólico, mas a expressão de Lucio não deixava portas abertas para nenhuma dúvida: ela estava morta...

Teve ímpetos de sair de seu esconderijo, mas por motivos óbvios estava preso àquela cortina. No momento certo, sairia de seu cativeiro. O tempo havia parado e congelado aquela cena... Seu pai vestiu-se, lançou um olhar melancólico para suas plantas de estufa, desligou as luzes e fechou a porta, trancando-a.

Breno tinha um nó no lugar do estômago, maldizendo a hora que resolvera ficar ali, espiando. Passo a passo, caminhou lentamente , tateando o que pudesse estar a sua frente, agradecendo o fato de seu pai ser tão conservador quanto à disposição da mobília. Devolveu o livro - com certeza sujo de esperma - à estante, sentindo com desconforto o lenço molhado em seu bolso. Aproximou-se da moça o suficiente para sentir-lhe o peso da morte e encostou o pé em alguma coisa caída no chão, percebendo tratar-se de um saco plástico. Afastou-se com cuidado até chegar a porta trancada, admitindo que aquela estava sendo a noite mais difícil de sua vida...

Pular a janela não estava em seus planos, mas considerou que naquele momento talvez fosse a melhor idéia. Ouviu passos no corredor e pensou em receber o pai ali, no meio da sala, mas tão absurda lhe parecia a idéia, que tratou de abrigar-se novamente na cortina.

Lucio trouxe algo que encostou no nariz da moça, tentando em vão, reanimá-la. Passou a mão pelo rosto, olhou para os lados como procurasse nas paredes uma solução, aproximou-se das plantas de estufa e saiu novamente. Dessa vez, para alívio de Breno, não havia trancado a porta...

Belinda Tiengo
Enviado por Belinda Tiengo em 05/07/2008
Reeditado em 19/08/2008
Código do texto: T1066242
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