Contando Ninguém Acredita

Contando Ninguém Acredita

Ana Esther

7 de julho de 2003.

Olaf Kraus

Blumengarten Strasse, 65-B

D-13465 München

Deutschland

Departamento de Cultura e Turismo

Caros Senhores,

Meu nome é Olaf Kraus e estive visitando o Taiti, em minha lua-de-mel, no mês de março passado. Seu país é realmente encantador e minha esposa e eu aproveitamos muito nossa estada.

O motivo dessa carta, contudo, é pedir-lhes um favor que terá o poder de evitar meu divórcio tão súbito. Meu casamento está em suas mãos e pode chegar ao fim se meu pedido não for atendido. Peço-lhes que me enviem uma cópia do filme taitiano A Última Festa, dirigido por Sebastien Didier, bem como algum material publicitário. Sei que soa muito estranho mas é de vital importância e peço-lhes urgência no envio do mesmo; faço questão de pagar toda e qualquer despesa que os senhores venham a ter devido ao meu pedido.

Agradeço-lhes antecipadamente pela atenção.

Olaf Kraus

Bärbel e eu nos casamos em março e decidimos passar nossa lua-de-mel em um lugar paradisíaco, para dar um início todo especial a nossa nova vida que estava por começar. Após muita indecisão diante de tantas opções, decidimo-nos pelo Taiti. Nossa agência de viagens nos deu uma notícia não muito ‘confortável’, teríamos que sair da igreja diretamente para o aeroporto se quiséssemos aproveitar o preço promocional do pacote turístico. Mesmo tendo que desistir da festa que estávamos planejando concordamos, e até gostamos da idéia, pois poderíamos utilizar esse dinheiro em passeios no Taiti.

Tudo saiu exatamente como queríamos. Nossos parentes e amigos nos abraçaram na própria igreja e alguns até nos seguiram ao aeroporto com brincadeiras para o embarque dos recém-casados. Foi um dia de grande felicidade para nós dois. Com determinação nos resignamos a fazer o longo vôo bem comportados pois nossas poltronas ficavam ao lado de um casal de velhinhos, muito simpáticos porém muito conversadores para o gosto de um casal em lua-de-mel... Só podíamos trocar discretos e ocasionais beijinhos.

Finalmente, desembarcamos em Papeete onde o nosso grupo deveria pegar o transporte que nos aguardava. Após algumas confusões estávamos nos dirigindo ao hotel, todos pareciam tão exaustos que nem apreciamos a vista do caminho. Instalamo-nos em nossos quartos e, embora tivéssemos uma janta de cortesia desistimos. Bärbel e eu queríamos curtir um ao outro, estávamos a sós, inacreditavelmente, após tantas horas da cerimônia de nosso casamento.

Nossa alegria estampava-se em nossos rostos por mais que tentássemos disfarçar. Exploramos a ilha por nossa conta, sempre que possível, somente nos juntávamos ao grupo quando o passeio estava incluído no pacote. Foi o que ocorreu em nossa última noite no Taiti. Como confraternização e despedida do grupo estava previsto um jantar com festa em um cruzeiro. Na hora em que a van passou em nosso hotel para nos levar até a marina, o senhor Max sentiu-se mal e eu fui acompanhá-lo até seu quarto. Bärbel embarcou na van para pedir ao motorista que esperasse por nós alguns instantes. Eu acomodei o senhor Max na cama e ele me assegurou que o que sentia era apenas exaustão e que uma simples noite de sono era seu melhor remédio. Deixei-o, então, na esperança de juntar-me ao grupo, mas qual não foi a minha surpresa quando percebi que a van já havia partido... com Bärbel dentro!

Ansioso por não perder o iate, chamei um táxi e pedi ao motorista que se apressasse. Tudo ia bem até chegarmos ao entroncamento para a avenida de acesso a marina. Era um mar... de automóveis! Todos parados, um atrás do outro num engarrafamento gigantesco – considerando-se a população local. Comecei a suar frio, já estávamos esperando há 10 minutos e não parecia que tão cedo sairíamos dali. Mas o motorista vendo que eu era um turista europeu, desviou o carro e andou por cima da calçada assustando quem, por ventura, passasse perto de nós. A causa do transtorno fora um carro esporte que colidira contra uma árvore fazendo-a cair bem no meio da rua. Devido a sua manobra corajosa chegamos na marina e vimos o iate atracado, que alívio. Obviamente, dei uma super gorjeta ao dedicado motorista e saí correndo para embarcar no iate.

Tive muita sorte de subir a bordo bem no momento em que não havia ninguém para checar os tíquetes pois o meu ficara na bolsa de Bärbel. Uma vez seguro no convés tentei procurá-la. Havia muita gente vestida com sofisticação, nem pareciam turistas e, surpreendi-me ao escutar as conversas em francês e não em alemão, onde estariam as pessoas do meu grupo? Eu não estava reconhecendo ninguém. Escutei uma gritaria e percebi uma agitação e correria por parte da tripulação. De repente uma moça veio conversar comigo em francês, ela me chamava de Richard e começou a me abraçar e beijar. Fiquei meio aturdido e não sabia o que fazer, e se Bärbel visse? Tentei me livrar de seus braços, porém ela me agarrou e me puxou pela mão até perto de suas amigas. O iate havia recém abandonado a marina e navegávamos à luz do luar e do céu estrelado. As amigas da minha ‘atacante’, ao me verem, correram desesperadas ao meu encontro, me abraçaram, todas ao mesmo tempo, brigaram por me agarrar e acabaram por rasgar minha camisa. Por mais que eu tentasse falar, empurrá-las para longe de mim e pedir que me deixassem em paz, elas não me ouviam, seguiam como doidas a brigar por mim.

Por um instante pensei ter me livrado delas, foi então que um rapaz as afastou, passou o braço em volta de meu ombro e começou a falar comigo em francês sempre me chamando de Richard. Pelo que pude compreender ele referia-se a uma última noite de solteiro... uma festa surpresa... garotas de programa, amigos comemorando... Nisso, alguém o chamou e lá se tocou ele deixando-me aos cuidados das três moças que, insaciáveis, me beijavam furiosamente sem parar. Como em um pesadelo eu tentava em vão descobrir Bärbel em algum canto do iate. Para meu terror, surgiram vários homens encapuzados, armados até os dentes atirando para todos os lados. Tentei me esconder, corri como um desesperado pensando onde estaria Bärbel, eu tinha que encontrá-la e colocá-la a salvo desses bandidos perigosos. Eles seguiam atirando sem cessar, as moças que haviam me sufocado de beijos estavam agora sufocadas de balas... estiradas no chão em meio a uma poça de sangue. Que loucura, onde estaria Bärbel, eu berrava seu nome, estava alucinado.

Parecia que os bandidos tiveram sucesso em matar todos a bordo com exceção de mim. Ainda tive tempo de ficar admirado com a má pontaria deles, teriam tido chance de me matar a qualquer momento. Fui, finalmente, cercado pela gangue. O suor escorria por meu rosto, onde estaria Bärbel? Berrei, em alemão, querendo saber de minha mulher. Eles entreolharam-se e disseram-me, sempre em francês, palavras que eu pouco podia fazer sentido devido ao meu nervosismo. Algo como hora de morrer! Miraram, todos eles, em mim e atiraram em minha direção rindo freneticamente. Senti uma pressão em meu peito, vi sangue escorrendo pela minha camisa, amedrontado atirei-me ao chão... eles não paravam de atirar em mim e, no entanto, eu não parecia estar morrendo. Embora eu devesse estar mais perfurado por balas do que um coador de massa eu me sentia muito bem a despeito do pânico.

Por fim, os bandidos pararam com o tiroteio. As moças mortas começaram a se levantar do chão. Vieram todos em minha direção e me abraçavam, me cumprimentavam, batiam palminhas em meu ombro. Todos se abraçavam, riam, tomavam cerveja, cantavam, pulavam. E eu ali, sem entender nada. Teria eu morrido sem ter sido avisado? Enquanto tentava me refazer dos últimos segundos de minha vida, um homem aproximou-se de mim, bateu palmas conclamando as pessoas ali presentes para escutá-lo. Começou a fazer um discurso num francês bem claro que eu podia compreender perfeitamente. Dirigiu-se a todos agradecendo sua presença e dedicação extrema. Comunicou-lhes que a filmagem havia sido um sucesso, não seria necessário repetir nada pois tudo saíra como planejado, 100% natural, uma técnica inovadora de cinema experimental, um marco na história do cinema no Taiti! Virou-se então para mim e me agradeceu a participação em seu projeto e revelou aos artistas que o grande ator Schultz Fomm havia concordado em fazer este papel de graça tendo seu cachê doado à instituições de caridade do país. Aplaudiram-me delirantes e exigiram que eu fizesse um discurso.

Dando-me conta de minha gentil, porém inconsciente, participação em um filme... senti-me no dever de revelar minha verdadeira identidade e desfazer o engano. Risadas, não acreditaram em mim e me consideraram um cômico nato. Fui salvo pelo celular do Diretor Sebastien Didier que tocou. Vimos o rosto dele se transformando em um ar de incredulidade: acabara de ser informado do acidente que impedira a presença de Schultz Fomm ao set de filmagem. Seu carro batera em uma árvore... Aquela árvore! Mas e quanto a Bärbel, onde estaria? Sebastien Didier explicou-me, então, que uns minutos antes de partirmos havia um outro iate na marina que zarpara carregado de turistas... Relaxei e encorajado pelo surpreso Didier e seu grupo de artistas resolvemos festejar esta noite incrível em nossas vidas enquanto retornávamos à marina. Dancei com minhas ‘atacadoras’ que desta vez mostravam-se bem civilizadas e conversamos inclusive com os simpáticos ‘bandidos’.

No retorno à marina, desembarcamos do iate como se pertencêssemos a uma grande família. Didier informou-me que eu poderia receber uma cópia do filme, se fosse de meu interesse, dentro de alguns meses através da Secretaria de Cultura e Turismo. Trocamos endereços pessoais e nos despedimos. Um dos artistas me deu carona até o hotel e, assim, finalizei minha noite de astro de cinema. Na recepção do hotel, soube que Bärbel encontrava-se em nosso quarto, acompanhada por uma colega do grupo, muito nervosa. Agradeci ao rapaz e corri até o quarto, louco para vê-la e poder explicar tudo.

Bärbel quase desmaiou ao me ver, pensara que algo horrível houvesse me acontecido. Todavia, percebeu minha camisa rasgada, baton no resto de tecido e cheiro de perfume forte. Narrei o insólito episódio detalhe por detalhe, incluindo meu desespero em não encontrá-la. Minha alegria era tamanha em revê-la que não notei a mudança em seu rosto. Ela não acreditou em mim, preferiu crer que eu estivera em uma festa obscena me divertindo sem pensar nela. Fechou-se para mim. Não quis me escutar e recusou-se a fazer as pazes. Nosso regresso a Alemanha, no dia seguinte, foi marcado por sua indiferença e olhos raivosos.

Nossa vida tornou-se um inferno e Bärbel somente concordou em uma trégua até o momento em que eu lhe mostrasse o ‘suposto’ filme. Ela resolveu fingir que acreditava em mim, mas não era a mesma. Sofri demais. Soube por Didier que o filme estaria a disposição na Secretaria de Cultura e Turismo do Taiti a partir do mês de novembro; haviam resolvido manter aquela mesma versão pela originalidade e naturalidade de interpretação dos artistas. Hoje escrevi a carta à Secretaria fazendo o pedido de remessa do filme... com sorte meu casamento voltará ao normal... ou acabará de vez se Bärbel não gostar das cenas picantes... Que Deus me ajude!

*Este é o Conto 44 parte integrante do meu primeiro livro "Terapia Ocupacional - Contos" publicado em 2004