DIÁRIO ELETRÔNICO DE UM AMOR PLATÔNICO
09 DE JANEIRO, NOITE.
No terraço do meu prédio. Suzana é a coisa mais linda desse mundo. Não sei o que faria se ela não tivesse aparecido em minha vida de maneira providencial. Eu andava muito mal, pensando mesmo em morrer, acabar com tudo. Entupia-me de barbitúricos e vodka para não sentir aquela dor insuportável, mas de nada adiantava. Minha cabeça latejava, tinha constantes suores noturnos e mal encontrava forças para me levantar da cama pela manhã. Até que ela apareceu, assim, do nada: um encontro casual, uma simples troca de palavras, e tudo desapareceu como que por encanto: num dia já não sentia mais o desânimo, a vontade de acabar com tudo e de me entupir de remédio tarja preta. Ela foi a minha salvação, o cais do porto na minha tempestade.
Observo como ela escova o cabelo, em meio a uma conversa, o sorriso que se insinua no canto dos lábios, quase posso sentir o perfume que o vento me traz à distância. Tão pouco tempo, e eu já não saberia viver sem ela.
12 JANEIRO, MANHÃ.
Estar apaixonado é a experiência mais sublime que um homem pode experimentar. A vida subitamente adquire outro sentido, as pessoas parecem mais bonitas e agradáveis aos nossos olhos. Até minha famosa irritabilidade parece ter desaparecido, Suzana me transformou num homem melhor e mais gentil. No trabalho, meus colegas comentam a minha mudança de atitude, eles brincam que eu devo ter encontrado uma mulher dominadora que me transformou num cordeirinho dócil e apaixonado. Eu não ligo, eles estão com inveja da minha sorte. Ah, Suzana, Suzana, como a vida pode ser maravilhosa ao seu lado...
15 DE JANEIRO, MANHÃ.
Passeando no parque. É sábado, o sol brilha, refletindo a luz que rouba dos seus cabelos. Está linda naquele vestido branco, de alças cruzadas nas costas nuas. Corpo perfeito, pernas maravilhosas e delgadas, seios irrequietos e bicudos, como a me provocar. O rosto limpo, apenas um leve e discreto batom, para realçar os lábios deliciosos. Ela não precisa de mais nada. Depois de meia hora passeando sem destino, ela para no sorveteiro e pede um picolé de chocolate. Sem querer, meu olhar é atraído por seus lábios, agora úmidos. Ela parece perceber e sorri, enquanto aperta um lábio contra o outro, atiçando-me. Meus olhos brilham de desejo. Um dia perfeito.
16 DE JANEIRO, TARDE.
Shopping. É domingo, decidimos almoçar fora. A comida italiana está deliciosa, mas não chega nem aos pés de Suzana. Observo, hipnotizado, os seus olhos cor de mar, a coisa mais linda que jamais vi. Ouço extasiado a sua risada divertida. Com ela, tudo parece ter mais graça, mais cor. Eu amo loucamente essa mulher, seria capaz de qualquer loucura para não perdê-la.
20 DE JANEIRO, NOITE.
Cinema. Ela escolhe assistir a um filme de suspense, "Encurralados", com o ex-agente 007 Pierce Brosnan. Confesso que não é meu gênero favorito, como dizem: "casa de ferreiro, espeto de pau". Chego atrasado por causa do trânsito, a sessão já começou, mas consigo localizá-la na sala iluminada apenas pela tela, pois sei onde gosta de ficar. Ela parece muito concentrada, tanto que não me vê sentar-se e só nota que estou ao seu lado quando o filme está quase terminando.
Na saída, ela está estranhamente silenciosa, não sei se ficou chateada por eu não ter conseguido chegar a tempo de fazer-lhe companhia. Volto para casa com uma sensação esquisita de que tivemos nossa primeira briga.
23 DE JANEIRO, MANHÃ.
Algo não está bem com Suzana. Sinto-a arredia, parece preocupada com alguma coisa. O vinco na testa demonstra essa preocupação, mas ela não comenta com ninguém. Infelizmente tenho que trabalhar, não posso ficar com ela o tempo todo. Que pena. Meu coração se despedaça cada vez que tenho que me afastar dela.
23 DE JANEIRO, NOITE.
Ligo para saber se está tudo bem, mas quem atende é sua colega de quarto. Não gosto dela, parece uma mulher vulgar, dessas que pintam a cara com profundo mau gosto e adoram se meter na vida dos outros. Preciso conversar com Suzana sobre ela. Não me parece uma companhia recomendável, talvez fosse melhor procurar outro lugar para morar. Desligo sem dizer uma palavra. Subo ao terraço, estou preocupado com Suzana. Sento-me e fico a observar a paisagem urbana, enquanto fumo um cigarro. A noite é fria, o barulho distante do tráfego vai diminuindo e as luzes dos apartamentos vão se apagando. Não consigo deixar de pensar nela, mas tenho que ir dormir.
24 DE JANEIRO, MANHÃ.
Vejo Suzana bem cedinho. Não pude dormir direito, pensando no que poderia estar tirando o sossego da minha amada, mas ela não parece disposta a se abrir. Continuo observando, tentando descobrir nos seus gestos algo que possa dar-me uma pista daquilo que a aflige, mas é inútil. Tenho que ir trabalhar sem ter descoberto o motivo de tanta preocupação. No trabalho, não consigo me concentrar direito, estou disperso e monossilábico. Meus colegas percebem, mas não ligo. Ninguém precisa saber o porquê da minha impaciência.
24 DE JANEIRO, TARDE.
Dou uma escapulida na hora do almoço para encontrá-la no restaurante em frente ao local onde ela trabalha. Suzana almoça ali diariamente, mas quando chego não a encontro. Procuro com os olhos entre as mesas mas ela não está lá. Penso que talvez esteja muito atarefada e não tenha tido tempo para almoçar, mas não deixo de registrar o fato como estranho.
24 DE JANEIRO, NOITE.
Fumo sem parar um cigarro atrás do outro. Estou há duas horas parado em frente ao seu prédio e ela não chega. Olho o relógio, já são nove e quinze da noite, a essa altura ela já está atrasada quase duas horas.
Meia hora depois, um carro aproxima-se, e, espantado, vejo Suzana descer na companhia de um homem que eu conheço de vista, um colega de trabalho dela. Escondo-me atrás de uma pilastra, não sei o que está acontecendo, mas o sangue me sobe à cabeça ao imaginar que ela pode estar me traindo. Não quero acreditar, deve haver alguma explicação lógica para vê-la chegar, tão linda, acompanhada por outro homem. Suzana, a minha Suzana, jamais me trairia. Ela me ama. Mas toda a minha esperança vai por água abaixo quando ela o beija à entrada do edifício. Meus olhos, espantados, fitam o beijo cinematográfico sem poder acreditar no que veem.
Os dois entram no prédio. Fico na calçada vazia, só e desesperado. Eu deveria ter feito alguma coisa, eu deveria tê-los interpelado, ter provocado um escândalo, qualquer atitude que impedisse os dois de ficarem juntos...
Da calçada em frente, vejo a luz do apartamento de Suzana acender.
25 DE JANEIRO, MADRUGADA.
Perambulo pelas ruas da cidade à esmo. Ainda não consigo crer no que presenciei! Em minha imaginação posso vê-los dormindo juntos, as mãos dele acariciando o corpo nu de Suzana... Minha vontade é apertar com toda força aquele pescocinho delicado. Como ela teve coragem de me trair assim, sem motivo algum?... Estou desesperado. E agora, a dor, a maldita dor de cabeça, resolveu voltar com força total. Por que, Suzana, por quê?...
25 DE JANEIRO, MANHÃ.
Vou trabalhar sem dormir, estou péssimo. Meu humor piorou muito, voltei à antiga condição de irritado número um no trabalho. Meus colegas estranham minha recaída, explico que não consegui dormir na noite passada, mesmo assim eles me evitam o quanto podem. Estou me sentindo sujo, barba por fazer, minha roupa amassada é a mesma da noite anterior. E, infelizmente, o meu desejo de matar Suzana também.
25 DE JANEIRO, TARDE.
Lá está ela, com o mesmo sujeito da noite anterior. Eles almoçam e conversam animadamente, ela sorri com aquele mesmo sorriso cândido que tanto me enganou. Não tenho raiva dele, não passa de um pobre-coitado como eu, que vai ser usado e descartado em duas semanas, quando o próximo aparecer. Como dizem nos dias de hoje, a fila anda.
Ah, essa maldita dor de cabeça está me matando.
Preciso acabar logo com isso, preciso fazê-la sofrer como ela me fez. Quero olhá-la bem no fundo daqueles fingidos olhos azuis e dizer tudo o que sinto, todo desprezo e tristeza que tenho na alma.
Aproximo-me da mesa por trás dela. Em dois segundos estou apertando sua garganta com força calculada, para que ela não consiga fugir de mim, mas também não morra depressa. Eu quero vê-la morrer em minhas mãos.
28 DE JANEIRO, TARDE.
- Nome.
- Alice Peixoto.
- Idade.
- Vinte e cinco.
- Profissão.
- Atendente de telemarketing.
- Qual a sua ligação com a vítima?
- Nós dividíamos um apartamento no centro da cidade e trabalhávamos na mesma empresa.
- O que você pode nos dizer sobre o crime que vitimou Suzana Alves de Souza na tarde do último dia vinte e cinco?
- Eu... Eu vi tudo. Estava numa mesa próxima à dela, almoçando, quando aquele louco entrou.
- A senhora o reconheceu?
- Não, ele usava um capacete de motociclista na cabeça.
- E não achou isso estranho?
- Não, é comum boys buscarem refeições para entregar nos escritórios. Eles não tiram o capacete, na maioria das vezes, com pressa. Eu não podia saber... (pausa) Pobre Suzana. Se ela soubesse que acabaria assim não teria dado bola para ele.
- Como assim "dado bola"? A vítima conhecia o assassino?
(Pausa)
- Só pode ter sido ele. TEM que ter sido ele...
- Ele quem, minha senhora?...
- O sujeito que a seguia pra tudo quanto é lado.
- Espere um pouco: ela estava sendo seguida? E sabia disso?...
(Sinal positivo com a cabeça)
- Mas por que então não nos procurou, não deu queixa?...
(Pausa)
- Acho que ela... Achava o cara bonito. Disse-me que ele era um gatinho, só que muito tímido. Tinha esperanças de que ele criasse coragem para falar com ela.
- Deixe eu ver se entendi: a vítima sabia que estava sendo seguida, mas não só não denunciou como ainda incentivou o provável suspeito a se aproximar?
- O senhor não entende... Ela era uma pessoa muito solitária, estava na cidade há apenas um ano, vinda do interior. Eu era sua única amiga, mas nossos horários não coincidiam na maioria das vezes, pois trabalhamos por escala, então ela passava a maior parte do tempo sozinha, em casa. Ela só queria uma companhia para se divertir um pouco.
- Como a senhora soube que ela estava sendo seguida?
(Pausa)
- Há cerca de um mês, ela chegou em casa excitada, disse que atendeu um cara com quem ficou paquerando pelo telefone. Depois disso, ela me contou que percebeu um sujeito alto e bonito parado do outro lado da rua, na hora da saída do trabalho, mas apesar da troca de olhares insinuantes, nada diziam um ao outro. Isso aconteceu três ou quatro vezes, antes dele começar a segui-la.
- E depois?
- O senhor vai achar estranho, mas... Ela se divertia tentando conquistar esse cara. Ele passou a segui-la de binóculo. Aonde quer que ela fosse, nos finais de semana, lá estava ele, observando de longe tudo o que ela fazia. Às vezes até mesmo durante a semana. Ele esperava bem cedinho que ela saísse, depois a seguia até o trabalho e sumia. Isso durou umas duas, três semanas.
- Eu confesso que não posso acreditar no que a senhora está me contando. Ninguém poderia ser tão ingênua assim, a ponto de se deixar seguir por um desconhecido por semanas sem denunciá-lo à Polícia. Agora, dizer que era um voyer torna o caso bem pior. Se ele a vigiava de binóculo, está caracterizado a invasão de privacidade, com agravante de cunho sexual. Ele iria para cadeia por um bom tempo, e sua amiga ainda estaria viva. Isso foi uma tremenda irresponsabilidade da parte de vocês.
(Pausa)
- Sim. Só agora eu sei. Talvez se eu a tivesse aconselhado melhor antes do que aconteceu no cinema...
- Antes do quê?
- Bem, como eu já disse, ele a seguia por toda parte. Ela achava aquilo muito romântico, coitada, e estava disposta a dar uma chance a ele. Jogava charme quando sabia que estava sendo observada. No parque, no shopping... Às vezes o telefone tocava e quando atendíamos, ninguém respondia. Só o som de uma respiração entrecortada, mais nada. Foi aí que eu percebi que ele era meio louco, sabe? Ninguém em seu juízo perfeito tem essa obsessão platônica de amar à distância. O cara pode ser tímido, mas no fundo, o que ele quer é se dar bem, chegar junto, beijar, transar... Esse aí não, parecia que ele só sentia prazer em observá-la de longe, muito longe. Eu fiz o que pude, disse-lhe para parar de brincar com quem não conhecia, mas aí já era tarde, parecia ser um desafio conquistar aquele louco. Ela devia estar desesperada para arrumar um namorado. Foi então que aconteceu o lance do cinema.
- O que aconteceu no cinema?
- Era mais uma estratégia dela para fazê-lo se aproximar. Deixar-se seguir até o cinema e esperar que ele se decidisse. A escuridão talvez fosse um bom remédio para a timidez do cara. E quase deu certo, ele entrou e sentou-se bem ao lado dela. Só que, ao invés de se declarar, de beijar ou pelo menos rolar aquele roça-roça habitual dos cinemas, ele...
(Pausa)
- O que ele fez?...
- Ele começou a se masturbar, entende?... Ali, ao lado dela, sem nenhuma timidez. Foi então que Suzana se deu conta que não estava lidando com um homem tímido ou romântico. Ele era um tarado, um maníaco sexual.
- E o que ela fez a partir daí?
- Começou a evitar o sujeito, trocou de turno no trabalho, passou a almoçar no refeitório da empresa... Pediu a ajuda de um amigo para fingir que estava namorando e assim fazer com que ele desistisse de segui-la. Tínhamos pedido também a troca do número do telefone de casa. Só que aí já era tarde demais, ela deu corda a um louco e quando quis pular fora não deu... Pobre Suzana, no fundo era uma pessoa muito carente, talvez esse tenha sido o seu maior erro.
- A senhora sabe de mais alguma coisa que possa ajudar na elucidação do caso? Não se lembra de mais nada na cena do crime? Ele conseguiu fugir em meio a dezenas de clientes do restaurante, depois de estrangulá-la. A senhora não poderia dizer mais nada que nos ajude a identificá-lo?...
- Não, sinto muito. Eu nunca o vi pessoalmente, sabia apenas o que Suzana me contava. Desculpe se não posso ajudar, eu daria tudo para que aquele maníaco fosse parar na cadeia, mas...
- OK, falta apenas a senhora assinar o depoimento, dona Alice. Obrigado. Se porventura lembrar-se de mais alguma coisa, por favor, procure-nos imediatamente. Não cometa o mesmo erro da sua amiga.
- Está bem. Boa tarde.
(Fim do depoimento)
31 DE JANEIRO, TARDE.
Saio pelas ruas sem destino. A cabeça ainda me dói, mas pelo menos já consigo me concentrar melhor no trabalho. Meus colegas dizem que estou precisando arrumar outra namorada, pois desde que levei o último fora estou insuportável.
Ao atravessar a rua, esbarro sem querer nos livros de uma colegial que andava tão distraída quanto eu. Os livros caem e eu me desculpo atabalhoadamente, enquanto tento apanhá-los do chão e colocá-los em seus braços novamente. Ao me levantar, percebo que ela me olha, sorridente, com seus lindos olhos azuis. Agradece e continua seu caminho.
Fico paralisado por instantes, em seguida dou meia volta e sigo na mesma direção que a linda estudante. Ah, como as mulheres são belas quando amadas de longe...
Hoje não tenho plantão na delegacia, minha dor de cabeça desapareceu, a testemunha não sabe de nada que possa me ligar ao crime, um lindo anjo de olhos azuis me sorriu.
E eu acho que estou apaixonado outra vez.