EU VEJO GENTE MORTA (2° EDIÇÃO)

Era início de dois mil e quatro, eu tinha acabado de passar no vestibular pra Letras, em Pelotas e precisava encontrar um lugar pra morar, pois sou natural de Santana do Livramento e pra fazer o curso tinha que me mudar com urgência. Por questões financeiras, eu não podia alugar um apartamento e por isso estava procurando um quarto em alguma pensão pra estudante. Foi quando cheguei na pensão Maranata, indicada por um amigo. Era uma casa enorme e muito velha. Eu nunca tinha visto nada parecido, pois na minha terra natal já não existem mais construções tão antigas. O teto era altíssimo, as portas eram enormes e tudo ali lembrava o século retrasado. Fiquei encantada com a casa. A dona do local me alugou um quarto por um preço módico e nessa pensão eu fiquei morando durante todo o tempo de faculdade.

Antes de dormir eu sempre me perguntava: em que ano será que foi construída essa casa? Quantas pessoas já devem ter vivido e morrido aqui? Será que era uma casa de família antes de se tornar uma pensão? Quem sabe era um orfanato ou um asilo? Os outros estudantes também faziam essas mesmas perguntas. Depois de alguns meses, descobrimos com o vizinho do lado, que a casa havia pertencido à família dele e que foi construída em mil oitocentos e oitenta e dois. Mas ele não soube nos informar a quem ela pertencia antes de ser da sua família.

Quase todos tinham medo de andar pela casa de madrugada e poucos eram os quartos que ficavam perto do banheiro. Eu mesma tinha que atravessar um longo e escuro corredor, por isso, ter que levantar no meio da noite pra fazer xixi, era um problema pra maioria de nós. Todos tinham medo de ver fantasmas, mas ninguém nunca viu, exceto uma pessoa. Adivinha quem foi?

Pois é! Se você leu o primeiro conto, deve saber que eu vejo gente morta, ouço gente morta, enfim, parece que os mortos têm uma afeição especial pela minha pessoa. Por quê? Eu já disse que não sei. Pergunte a eles.

Fazia dois meses que eu estava morando nessa pensão (até que demorou muito pra acontecer), quando em uma noite fatídica, minha companheira de quarto resolveu sair pra dançar e me deixou sozinha. Pra ser sincera, eu não estava com medo e adormeci rapidamente, pois estava muito cansada. O meu quarto era o maior de todos e havia três camas, uma ao lado da outra.

No meio da noite eu acordei com vontade de ir ao banheiro, pra variar. Quando sentei na cama e olhei pro lado, lá estava ela, olhando pra mim e sorrindo aquele sorriso horrendo.

Eu estou acostumada a ver fantasmas, mas dessa vez tomei um susto grande, porque geralmente vejo pessoas normais, como eu, como você, algumas até bem bonitas, apenas estão mortas. São tão normais que na maior parte das vezes eu só percebo que estão mortas quando desaparecem no ar.

Era uma mulher negra e muito gorda. Estava escabelada, pálida, tinha os dentes estragados e as roupas em frangalhos.

Eu abria e fechava os olhos, sacudia a cabeça na esperança de que ela sumisse, de que fosse só uma ilusão de ótica. Talvez fosse um sonho, talvez eu ainda estivesse dormindo, mas não estava. Ela não sumiu, continuou ali, sentada na cama ao lado da minha, me olhando, não dizia nada, apenas sorria.

Comecei a entrar em pânico, nunca uma visão tinha custado tanto a ir embora. Levantei e corri pelo corredor escuro na direção do quarto da Vanise, a única pessoa com a qual eu tinha intimidade o suficiente para acordar no meio da madrugada. Bati na porta:

- Vanise, acorda! Acorda por favor! Acorda, me deixa entrar.

Não sei se ela não me ouviu ou se não quis abrir a porta. Eu não queria gritar, não queria fazer escândalo. As outras pessoas que moravam na pensão ainda não me conheciam direito, podiam pensar que eu era louca.

Lentamente, voltei pro quarto, acendendo todas as luzes que encontrei pelo caminho. Tomei coragem e espiei na porta, a mulher já não estava mais lá. Naquela noite, eu não consegui mais pegar no sono.

No ano seguinte a pensão mudou-se pra outro lugar, pois a casa precisava ser restaurada, estava tão velha que havia risco de desabamento.

A Alquimista
Enviado por A Alquimista em 12/06/2008
Reeditado em 26/11/2009
Código do texto: T1030415
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